Em 1915, Eurico de Seabra dedicou
um dos capítulos do seu livro Cartas a
Mulheres ao “feminismo e ao sufragismo”. Tal como o resto do livro, este
capítulo também foi escrito como se se tratasse de uma carta dirigida a uma
mulher, onde o autor se revelava como conselheiro e confidente. Dirigida à “Boa
Ângela”, a sua longa epístola surgia como um manifesto antifeminista, uma
resposta a uma mulher que se “assustara” ao saber da existência do movimento
sufragista que, sobretudo em Inglaterra, nas primeiras décadas do século XX, se
manifestava de múltiplas formas.
O acesso das mulheres aos espaços
de educação, aos espaços de decisão política, assim como aos seus direitos jurídicos
já era discutido publicamente desde há muito, mas é, na última década do século
XIX e nas primeiras duas décadas do século XX, que se torna mais visível. Este
crescente activismo, disperso e com múltiplas faces, desenvolveu-se nalguns
lugares mais do que noutros. Mas as suas propostas ultrapassavam fronteiras,
chegando a muitos lugares, e também a Portugal. Para serem apropriadas, para
serem rejeitadas, ou simplesmente ignoradas. Por vezes, também, para acomodar
umas mudanças e recusar outras.
As crescentes manifestações de um
feminismo organizado e notório fizeram aumentar o antifeminismo, exposto em
jornais, livros ou na força de um senso comum que persistiu num rasto
insistente pelo século XX (e XXI) adentro. As acções, ideias e personagens deste
movimento tornaram-se objecto privilegiado do jornalismo britânico mas também
da imprensa nos muitos outros lugares que se fizeram eco deste fenómeno British. A cobertura jornalística
caracterizava-se pelo tom jocoso, pela ironia, e pelo ridicularizar das
pretensões feministas. Muitas vezes, a fotografia ou a litografia vinham
reforçar estas ideias, expondo nos jornais mulheres descontroladas, histéricas,
agressivas, violentas, com as expressões faciais em esgares que as aproximavam
da fotografia utilizada nas patologias da psiquiatria.
O Eurico Seabra de 1915 foi mais
uma dessas tantas vozes que tentaram resistir – e incentivar as mulheres a resistir
– à força política da vaga da “nova mulher”, que não parecia disposta a
renunciar às suas reivindicações. Para enfrentar este modelo, ameaçador, havia
que reificar o verdadeiro modelo de mulher, aquele onde eram projectadas todas
as categorias que, enquanto inatas e naturais, havia que preservar.
Astutamente, Seabra atribuiu a uma mulher – uma Ângela verdadeira ou inventada
– o seu instrumento de contra-resistência, a sua bandeira contra as mulheres
que queriam deixar de o ser:
Tu,
que és moça e que és linda, escreves-me, apavorada e quasi lacrimosa, uma carta
que me comoveu. Acabas de ler os
jornais de Londres (que Miss Hughes, a tua mestra, pôs inconscientemente, sobre
o teu regaço) e neles vês notícias que te aterraram.
Que leste tu, minha doce amiguinha, nas gazetas britânicas que folheaste?
Nada
mais, como vejo das tuas linhas, que os relatos desenvolvidos das últimas façanhas
das sufragistas. Miss Pankurst, a soberana delas, tem alentado os maiores atentados.
Para ti, todo o temeroso drama se sintetiza neste espectáculo horrível: muitas
mil mulheres revolucionarias esqueléticas, frementes, e de bengala na mão, e uivando,
berrando, partindo, destruindo! A fúria dessas mulheres enche-te de tristeza e espanto.
E
cheia de viveza e de pitoresco aquela passagem da tua carta em que tu aludes a
uma sub-chefe ou lugar tenente de Pankurst, que, vestida meio de homem, meio de
mulher, esbofeteou um ministro britânico e arrancou pelos do bigode a um velho lord inglês. Ri com o episódio dessa
outra que, fumando cachimbo, e de chapéu alto sobre a trunfa dos cabelos
revoltos, pregava, num square londrino,
encavalitada num pião de pedra, a
necessidade de que as esposas fizessem, dentro dos lares, a greve dos maridos.
É
delicioso, adorável de graça, tudo o que me dizes a respeito das diabruras praticadas
pelo sexo frágil inglês. Achei interessantíssima toda a tua mal reprimida cólera
contra essas criaturas, que, abandonando os ateliers
e as fábricas, empunhando bandeiras e empunhando chuços, com legendas de
vindicta, ameaças de sangue, proclamações incendiárias, se enfileiram em
cortejos, e se congregam nas praças, para apostrofar o homem, e reivindicar
direitos pares ou superiores dos algozes que as oprimem.
(...) A
tua carta é um documento da tua emotividade de Mulher. É nela Mulher, verdadeiramente
Mulher. Não Mulher à estrangeira ou à inglesa. Mas mulher como eu amo e admiro
as mulheres – as mulheres à moda do meu país.
Na
longuíssima carta em que Eurico de Seabra enunciou todos os argumentos
possíveis para que as mulheres não fossem tocadas por esses ventos de mudança
que vinham de fora, a “mulher portuguesa” surgia como uma entidade una,
homogénea, paradigmática de um ideal que não podia ser contaminado pela “mulher
britânica” (SEABRA: 1915, 141). O texto recorre inúmeras vezes a este confronto
de modelos femininos – entre a “pequenina mulher portuguesa, tão simples e tão
bela, tão alheia ainda a preocupações de espírito e a estúrdias de política” e
a “feminista”, que lhe provocava “uma impressão aterrorizante de complexidade e
dificuldade”.
Ao afirmar que a mulher britânica
se tinha “desnacionalizado” porque “um vento de estrangeirismo e de modernismo
oxidou-lhe as rodas e os eixos”, Seabra está a usar a ideia de algo que vem de
fora – “moderno” e “estrangeiro” – para perturbar uma ordem pré-existente,
nacional e tradicional. Os feminismos que, no contexto português eram tantas
vezes referidos como tendo sido importados, e não nascidos e criados no país,
surgem como provenientes de um outro lugar, um estrangeiro do estrangeiro que é
sempre remetido para fora, mesmo quando já não se sabe onde ficará este
“estrangeiro”.
A
Mulher inglesa é uma criatura que me causa calafrios. Vê-la discursando num comício
ou dando canivetadas sacrílegas num quadro de pintor célebre – dá-me apetite de
estrangulá-la. De bela que pode ser a Mulher, e loira, de olhos negros, faces brancas,
fonte altiva, formosa – ela
transforma-se. Aparece-me desnalgada e esquelética. Substitui a blusa pelo
casaco. Traz na cabeça um chapéu mole de homem, ao pescoço um colarinho e uma
Lavalliére. Na boca negreja-lhe, entre o fumo, um cachimbo de marinheiro. E
quando fala não fala de Amor. Fala de direitos e revindicações.
Já
ouvi dizer que havia sufragistas e feministas bonitas. Tu acreditas? Eu, por
mim, não acredito. Deve ser boutade
dos jornais. O Sufragismo e o Feminismo, como doenças da alma, atacam e
pervertem as feições. A sufragista e a feminista, à força de se masculinizarem,
ficam machos. Se é, como ensina a fisiologia, a função que cria o órgão, a
sufragista e a feminista, serão homens em duas gerações, e terão em dez forte barba, como os porta-machados e os marechais
moscovitas (SEABRA, 1915: 142, 143).
Seabra
também incentivou Ângela – e todas as outras mulheres – à resistência activa,
nomeadamente através da escrita: “Se o acratismo feminista inglês te aborrece,
lança mão de uma pena, escreve e combate-o” (SEABRA: 1915, 151). Muitas
mulheres já o faziam e continuariam a fazê-lo: usando a escrita para contrariar
os novos modelos de mulheres,
para pôr em causa as suas capacidades criativas, ou para defender uma ideia de
mulher que parecia estar em risco. Existiam, assim, muitas mulheres a escrever,
com acesso à publicação e muitas vezes com vidas caracterizadas pela
independência e emancipação, que não só recusavam uma identificação com o
feminismo, como o condenavam activamente.
Se em 1915 Eurico de
Seabra, entre tantos outros, ergueu o seu brado contra o feminismo enquanto uma
praga estrangeira que ameaçava as fronteiras de género das mulheres
portuguesas, no mesmo ano, Almada Negreiros publicou o Manifesto Anti-Dantas e participou no Orpheu. Tratava-se do modernismo possível que entusiasmou tantos e
repeliu outros, mas que a historização do período cedo estabeleceu como o
“momento” nacional de vanguarda artística e literária. O modernismo foi também
o resultado das experiências de cosmopolitismo parisiense de alguns homens
jovens portugueses empenhados em desafiar aquilo que entendiam como sendo o
atraso nacional. Porém, se essa "moda estrangeira" foi bem recebida,
o feminismo não o foi. A historização académica do feminismo já foi feita, mais
nuns países do que noutros. Será que um filme como o das
"Sufragistas", cuja acção decorre três anos antes da publicação do
livro de Eurico de Seabra, ao chamar a atenção para um tema tão pouco divulgado,
contribuirá para mitigar o antifeminismo dos "Seabristas" à moda do
nosso país?
Parte deste texto foi já publicado em: Filipa
Lowndes Vicente, "Mulheres artistas. As possibilidades de criação feminina
no Portugal de 1915", in Stephen Dix (org.), 1915 - O ano de Orpheu (Lisboa: Tinta da China, 2015).
Filipa Lowndes Vicente
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