impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 61 - ART
PEPPER
Foi a mulher quem o acordou a meio da
manhã: “tens uma gravação marcada para hoje”. Estremunhado e ressacado, Art
Pepper não comediu a irritação provocada pela surpresa, descongestionando-a numa
lufada de impropérios. Um par de horas depois Les Koenig (um produtor que se
dedicara ao jazz depois de em 1950 ter sido exposto na lista negra de
Hollywood) quis acalmá-lo à porta do estúdio: “vai tudo correr bem” – Art
retorquiu com um grunhido.
Diane Pepper e Koenig haviam combinado
em segredo esta sessão, na esperança de o facto consumado evitar que o
saxofonista procrastinasse ou aliviasse a pressão com um surto no consumo de heroína.
Há seis meses que Art Pepper não pegava no saxofone e quando o tirou da caixa a
cortiça do tudel estava ressequida. Agravava a sua ansiedade ir tocar tão-só
com a formidável secção rítmica que era o êmbolo daquele que ficaria para
posteridade como o “primeiro grande quinteto” de Miles Davis. Apresentar-se
diante de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones, com quem nunca se
encontrara, sem preparação e com um instrumento danificado, era uma imprudência
capaz de ulcerar o mais destemido. Vazado pelo pânico Pepper foi aceitando
sugestões para o repertório: “e que tal ‘You’d Be So Nice to Come Home To’?”,
alvitrou Garland; “em que tom?” “Ré-menor.” E assim começaram a tocar. “Red
Pepper Blues”, por exemplo, foi escrevinhado num guardanapo mesmo antes de o
interpretarem.
Este relato da confecção de “Art Pepper
Meets the Rhythm Section” encontra-se na autobiografia do saxofonista “Straight
Life” (título também de um dos temas do disco) em que ele descreve as muitas
agruras e as limitadas alegrias que extraiu da vida, com uma franqueza que não
é exagero qualificar de catártica.
Há qualquer coisa de inverosímil nesta
história que se fez lenda. “Art Pepper Meets the Rhythm Section” mostra um
entendimento tão aprimorado e conclusivo entre os músicos que custa acreditar
ter sido fruto de uma pura intuição, mesmo reconhecendo que o hemisfério
esquerdo do cérebro de Art Pepper, supostamente o da razão, operava sobretudo
como um complicador da criatividade do hemisfério direito, também dito da
paixão, e que por isso ele era muito mais fecundo em ambiente descontraído do
que preparado. Mas como “Art Pepper Meets the Rhythm Section” faz prova irrefutável
da genialidade dos seus intervenientes, que dimanam aqui uma sensação de estado
de graça, o encanto de uma narrativa fantasiosa sobre a sua produção pode ser
mais realista do que a comezinha material factual.
Art
Pepper Meets the Rhythm Section
1957 (2010)
Contemporary / Original jazz Classics
Art Pepper (saxofone alto), Red Garland (piano), Paul
Chambers (contrabaixo), Philly Joe Jones (bateria).
Germinado e podado na orquestra de Stan
Kenton, Art Pepper amadureceu como o espécimen único de uma fauna improvável: o
bopper branco da west coast. Apropriando-se da secura harmónica de Lester
Young, mas sem o seu lirismo, e dos ritmos de Charlie Parker, mas mais relaxado
e menos vertiginoso, a singularidade de Pepper caiu no goto do público, que na
barométrica votação da revista “Downbeat” de 1952 o elegeu como o segundo
melhor saxofonista alto, atrás de Bird.
Todavia, de tanto querer emular os
mestres Art Pepper acabou por copiá-los nos piores vícios, de forma que queimou
um total e dez anos da sua existência em várias passagens pela prisão; numa
delas foi autorizado a praticar com Frank Morgan, outro “hóspede” de San
Quentin. Também contribuiu para o descalabro um forte complexo racial, deveras
sentido e não totalmente imaginado por um branco que se intrometia numa cultura
musical geneticamente negra.
Em 1975 Art Pepper regressou dos
infernos para um último fôlego; na capa do disco “Living Legend”, que marcava esta
espécie de ressurreição, ele posa com uma T-shirt negra sem mangas, mostrando
tatuagens de presidiário nos braços – há ferretes que não se apagam.
José Navarro de Andrade
Excelente escolha, apresentarei aquele que para mim é um dos seus melhores discos.
ResponderEliminarObrigado.
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