Duas visitas minhas no período do Colégio Militar:
o Alcazar de Toledo e Fátima
O Alcazar de Toledo
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Dois
dos episódios da minha passagem pelo Colégio Militar merecem ser especialmente
recordados nestas memórias íntimas, ambos de especial relevo simbólico ou até
mitológico, além de terem sido, cada qual no seu modo peculiar, dois traumas
que influíram na minha forma mentis
de adolescente: os dois dias passados no santuário de Fátima, como membro da
guarda de honra junto ao altar das cerimónias do desfile das velas e da grande
missa nocturna de 12 para 13 de Maio, o que deve ter ocorrido em 1951 ou 1952,
assim como a longa visita que o colégio do largo da Luz fez a Espanha, num
desses anos, no verão, ficando todos os alunos hospedados nos arredores da
capital, num quartel de Villaverde, indo ao Teatro Real de Madrid para a
apresentação de um auto de Gil Vicente, o Monólogo
do Vaqueiro, a que se seguiria, no dia seguinte, uma peregrinação de grande
pompa e circunstância, a um dos altares do Falangismo, um dos lugares sagrados
da memória franquista, o Alcazar de Toledo, onde fomos recebidos pelo
próprio Moscardó.
Começarei
recordando a visita ao Alcazar, esse símbolo da determinação de resistência dos
fascistas espanhóis às encarniçadas tentativas de conquista pelos soldados
republicanos dessa praça-forte nas mãos dos militares sublevados contra a
democracia em Julho de 1936. Fomos ali recebidos pelo famigerado protagonista
dessa celebrada façanha de armas, o outrora coronel de infantaria José
Moscardó, já septuagenário, carregado de comendas e títulos pelo regime do
generalíssimo. A nossa presença nesse altar do Fascismo seria, desta forma, o point d’orgue da nossa visita do Colégio
Militar a terras dos nossos irmãos em ideologia, e à qual se seguiria, à tarde,
na sede da Falange toledana, um espectáculo militar com exercícios dos membros
da milícia a nadarem numa piscina olímpica, todos fardados e de botas cardadas, com uma espingarda Mauser às costas,
enquanto entoavam o Cara al sol!,
cerimónia que havia de rematar num grandioso jantar no qual os nossos gentis
hospedeiros nos deram vinho branco em profusão e, supremo requinte de viril camaradagem
de armas, um charuto para cada um dos “meninos da Luz”, habano que fomos fumando no regresso, altas hora da noite, de volta
a Villaverde, em camiões militares onde, completamente emborrachados pelo
generoso álcool hispânico, íamos cantando, estrada fora, versos
inexplicavelmente (e ingratamente) anti-espanhóis como:
“O rei de Espanha
É feio que nem um bode
E a rainha de Espanha
Não com ele que f…”
Contudo, o que mais me
impressionou na recepção matinal no pátio do Alcazar de Toledo, nesse Julho
escaldante, foi a aparição da velha, mirradinha e rediviva múmia militar
franquista, com a sua farda carregada de medalhas, brindando-nos com a sua
oratória histérica sobre a intrépida defesa da fortaleza tornada mito da
ditadura fascista, o glorioso José Moscardó, chamando-nos a cada momento, com
voz de falsete, “portuguesitos valientes”, ao mesmo tempo que os destemidos
“meninos da Luz”, vencidos pela inclemência solar, iam caindo redondos, aqui e
além, no meio das nossas filas em sentido diante do herói de 1936, sem que
ninguém prestasse qualquer auxílio às vítimas da insolação, porque era preciso
que a cerimónia chegasse ao fim, sem perturbar a discursata da múmia franquista,
pois só então os moços tombados seriam recolhidos à enfermaria, para serem reanimados,
de maneira que o famigerado militar não se pudesse aperceber do que acontecera,
enquanto nos ia apelidando de “portuguesitos valientes!”…
Moscardó no Alcazar de Toledo
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O outro episódio, sem
dúvida menos pitoresco mas bem mais determinante na minha já difícil relação
com a religião católica, foi o das duas noites passadas em Fátima, no meio dum
teimoso chuvisco de primavera e do salmodiar incessante dos “à-avé-à-avés” dos
milhares de peregrinos em nosso redor, essas almas penadas de um fervor
religioso que nada me dizia. Antes de mais, convém acrescentar que, por um
lapso verdadeiramente freudiano que na altura me encheu de temor e pavor, ao
fazer na camarata do colégio a minha maleta com a farda de gala, cor de pinhão,
mais uma barretina de cor igual, rematada por um pequeno pompom verde, eu me esquecera
de levar também as calças, de modo que, antes de nos prepararmos para a partida
para o altar em Fátima onde faríamos a guarda de honra ao lado de outras
escolas e regimentos militares, me dei conta da horrível gaffe que cometera, auto-excluindo-me de qualquer hipótese de
figurar no altar da grande missa nocturna, por falta das calças de veludo condizentes.
O
oficial do colégio que comandava a nossa missão em Fátima, ao explicar-lhe eu o
trágico e a todos os títulos tão imperdoável esquecimento das calças da minha
farda de gala, lançou-me então um olhar petrificante de Medusa e, de tão apopléctico
que ficara no seu furor contra a minha falta atroz, nem foi capaz de articular
uma única frase coerente, limitando-se, depois de regougar sons sombrios de
besta ferida, a fazer na minha direcção um gesto agressivo que eu compreendi
significar que passaria o resto da noite na minha tenda de campanha, a expiar
um crime de tal magnitude que não havia pena possível para exorcismar tal erro
ou punir o seu miserável autor. E foi o que fiz, com uma espécie de Schadenfreude estóica, excluído como
réprobo, condenado à geena, embora, no fundo, percebesse que algures, nestas
subtis malhas que o Destino tece, um mão oculta me tinha afinal libertado duma
obrigação que me desolava cumprir.
Aquele monótono cantochão
da multidão dos peregrinos, o monótono e obsidiante “à-avé-à-avé” era, na
verdade, o coro duma tragédia que eu traduzia intuitivamente como o treno
repudiando um réprobo expulso duma religião que, nunca tendo sido a minha,
jamais o seria alguma vez. Na realidade, nada de grave me aconteceu, a não ter
passado uma noite inteira, sozinho e recolhido na triste tenda, a ouvir os
pingos de chuva e sobretudo o monótono canto dos peregrinos que entoavam a sua
fé, que não era a minha, à espera que os meus camaradas voltassem da cerimónia
da guarda-de-honra ao altar. Quando, altas horas da noite, os meus camaradas
chegaram à tenda, contei-lhes o horrível sucesso, o que eles acharam, com
surpresa minha, ser uma astúcia prodigiosa para escapar a um frete. E a única
consequência decisiva, ou cicatriz que tal desastre me deixou tatuado na alma
jovem, foi compreender, de um modo quase talmúdico, que aquele gesto falhado de me esquecer das calças
da farda de gala não passava duma falta que tinha um sentido superior simbólico,
sobretudo atendendo ao lapso involuntário que estava na sua origem.
João Medina
Excerto do livro inédito Memórias
de um Estrangeirado
N.B.: Este episódio, pitoresco mas verídico, é descrito também na minha
autobiografia romanceada Náufragos do
Mar da Palha, 2006, pp.199-203.
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