terça-feira, 3 de novembro de 2015

Schmitt & Shakespeare.

 

Grete Stern

 
 
Schmitt & Shakespeare:
a irrupção do jogo no drama do tempo (*)
 
 
 
 
1. Um livro e a sua circunstância − concluído no início de 1956 e baseando-se numa conferência que proferira na Universidade Popular (Volkshochschule) de Düsseldorf em 30 de Outubro do ano anterior, Hamlet ou Hécuba. A irrupção do tempo no jogo do drama[1] é um breve ensaio de Carl Schmitt (1888-1985) que não integra o essencial da sua obra, incluindo a do pós-guerra. 
         É sintomático, a este respeito, que o texto sobre Hamlet não seja sequer citado numa das principais biografias intelectuais de Carl Schmitt, da autoria de Joseph W. Bendersky[2], a qual, ainda que centrada no período do nazismo, não deixa de referir os anos do doloroso refúgio em Plettenberg e do seu confronto com a solidão, em larga medida ditada pela morte da mulher, em 1950, mas também pela persistência da memória da época em que Schmitt fora o Kronjurist dos primórdios do III Reich. Aliás, Hamlet ou Hécuba não surge referido no conjunto das obras que Bendersky considera mais importantes na produção schmittiana do pós-guerra, como O Nomos da Terra (1950), Teoria da Guerrilha (1962) ou Teologia Política II (1969)[3].
         De igual modo, Gopal Balakhrishnan, no retrato intelectual de Carl Schmitt que publicou com o expressivo título The Enemy[4], não alude ao ensaio sobre Hamlet, o qual, de resto, só muito recentemente foi publicado na íntegra em língua inglesa[5], facto que não pode deixar de suscitar alguma perplexidade tendo em conta a vastidão imensa do panorama editorial anglo-saxónico, a ávida curiosidade de ingleses e norte-americanos por tudo quanto respeite a Shakespeare e, enfim, a redescoberta contemporânea do pensamento schmittiano por autores dos mais variados quadrantes ideológicos[6] e situados em ambos os lados do Atlântico[7].
         Não é difícil explicar as razões desta omissão. Inquestionavelmente, Hamlet ou Hécuba ocupa um lugar menor, ou talvez lateral, no conjunto da obra de Carl Schmitt e, aliás, não é particularmente representativo ou ilustrativo do seu pensamento enquanto juspublicista. Neste livro, Schmitt não avança noções jurídico-políticas particularmente originais nem sequer explora as sedutoras aproximações conceptuais – mas também semânticas – que o celebrizaram entre as duas guerras, como a crítica ao parlamentarismo liberal, o decisionismo ou a distinção entre amigo/inimigo. Para alguns, tal corresponderá, porventura, a uma tentativa de silenciamento ou de ocultação do papel que desempenhara aquando da ascensão de Hitler ao poder, um tempo em que, sublinhe-se por curiosidade, influentes académicos alemães apresentavam nas conferências da Deutschen Shakespeare-Gesellschaft comunicações que procuravam detectar na obra do Bardo fontes inspiradoras da eugenia e do programa nazi de selecção racial[8].       
         Em face de tudo isto, seria fácil resvalar em três erros.
O primeiro consiste numa excessiva valorização deste livro, procurando mostrar à outrance que o mesmo é muito mais importante do que aparenta, seja para a compreensão do pensamento de Carl Schmitt, seja como contributo interpretativo para aquilo a que o próprio Schmitt designaria, num escrito de 1957, como «selva impenetrável da shakespeorologia»[9]. Esta sobrevalorização de Hamlet ou Hécuba é patente nos autores, como Julia Reinhard Lupton[10], que, no universo anglo-saxónico dos estudos literários (em particular, nos Estados Unidos), «descobriram» este texto – de resto, algo tardiamente[11] – e procuram apresentá-lo como uma abordagem absolutamente original a Hamlet, que prima pela complexidade analítica (o italiano Carlo Galli, ao invés, considera-o um «texto fácil»…) e pela profundidade conceptual.  
O segundo erro seria exactamente o inverso. Corresponderia, no fundo, a uma desvalorização extrema do livro sobre Hamlet, encarando-o como um mero divertissement intelectual de Carl Schmitt ou uma dissertação erudita de alguém que, passados os tempos de fulgor e glória de intelectual público de renome europeu, terminada a cruciante experiência do encarceramento e da humilhação que deu azo a Ex Captivitate Salus (1950)[12], via agora os trabalhos que dava à estampa serem recebidos com hostilidade e até com indignação. Causaria escândalo a publicação, em 1959, de um livro de homenagem por ocasião do seu 70º aniversário. Autores que o louvaram nos tempos de Weimar, como Franz Neumann ou Carl J. Friedrich, menosprezavam agora os seus novos escritos, fazendo-o com palavras ácidas. Quando, em 1955, se procede à edição das obras de Walter Benjamin – e o ponto é importante, pois Benjamin, como veremos, é um autor muito influente em Hamlet ou Hécuba – as notas em que aquele sublinhara a importância de Schmitt para o seu pensamento foram pura e simplesmente omitidas, o que é tanto mais estranho quanto Benjamin, num fragmento autobiográfico de 1940 (ou seja, já durante a guerra e pouco antes de se suicidar em Portbou, quando fugia rumo a Portugal), voltara a salientar a relevância de Carl Schmitt na sua trajectória intelectual, facto ainda hoje qualificado por alguns como «bizarro» e a carecer de explicação[13]. «Poderemos esquecer o que Schmitt disse e escreveu depois de 1933?», escreveu Walter Lewald num artigo de 1950 em que explicitamente apelava a que se seguisse a voz daqueles que exigiam a «crucificação» (sic) de Carl Schmitt.
Existem, assim, dois erros imediatos de que nos devemos precaver quando nos debruçamos sobre Hamlet ou Hécuba. O primeiro leva a sobrevalorizá-lo no contexto das diversas interpretações da peça de Shakespeare, isolando-o da restante produção schmittiana, a qual é sumária e integralmente caracterizada, de forma assaz simplista, como mera apologia ou tentativa de legitimação jurídica do nazismo[14]. O segundo erro, precisamente inverso, consiste em descartar Hamlet ou Hécuba como uma rêverie passageira de um homem acossado, uma incursão oportunista por territórios mais etéreos e seguros, situados fora da sua área de especialização académica e sem incidência na vida política de uma Alemanha em escombros. Relativamente a este segundo erro, deve recordar-se que Carl Schmitt, pese o facto de se ter notabilizado como jurista, sempre deixou nas obras que publicava – recorde-se, desde logo, Romantismo Político, de 1919 – a marca da sua sólida e vastíssima cultura humanística, histórica e literária. Essa era, aliás, uma das características mais notáveis dos seus trabalhos, um dos traços distintivos de quem se proclamaria, com alguma imodéstia, o último representante do Jus Publicum Europæum, desdenhando, em Ex Captivitate Salus, a árida «tecnicidade» (sic) em que mergulhara a ciência jurídica do pós-guerra. E note-se, por outro lado, que o interesse de Schmitt pela obra de Shakespeare já se havia manifestado noutras ocasiões: em 1952, escreve o prólogo e as notas finais à edição alemã do livro sobre Hamlet de Lilian Winstanley[15]. Por fim, mas não menos importante, na Alemanha da época, mesmo durante a 2ª Guerra e logo após ela, a curiosidade pela obra de Shakespeare era intensa, como o demonstram os trabalhos publicados por autores como Albrecht Günther, Josef Kohler, Hans Glunz ou Karl Kindt – e que Schmitt revela conhecer, com isso evidenciando não ser um jurista que ficara aprisionado pelo positivismo normativo ou parado no tempo, no seu tempo de Weimar ou dos alvores do III Reich.  
Existe um terceiro risco na interpretação de Hamlet ou Hécuba, um erro mais «sofisticado», por assim dizer. Decorre ele da tendência para tentar enquadrar, algo forçadamente, o texto de Schmitt sobre Shakespeare no conjunto das grandes obras do jurisconsulto alemão produzidas no período dos anos 20 e 30. Trata-se, por outras palavras, de buscar em cada passo e em cada momento de Hamlet ou Hécuba uma referência ou uma alusão, ainda que veladas, a elementos presentes nos escritos de entre-guerras. Assim, diz-se, por exemplo, que, em Hamlet ou Hécuba, Carl Schmitt, o grande teórico do decisionismo, enfrentou Hamlet, um dos maiores expoentes da indecisão que a cultura ocidental produziu ao longo dos séculos[16]. Se esta afirmação constitui, em boa medida, um mero jogo de palavras, procurando expor um paradoxo mais aparente do que real, o mesmo não se diga da tentativa de enquadrar a conferência de Düsseldorf, e o livro a que deu lugar, no todo da obra schmittiana[17].
         Indubitavelmente, em Hamlet ou Hécuba existem vestígios de diversos tópicos do pensamento de Carl Schmitt: a oposição terra/mar e a afirmação de Inglaterra como potência e império naval, as considerações sobre o conceito de soberania, o problema da representação e da legitimidade, a busca de segurança e a necessidade de ordem num mundo devastado por tensões políticas e guerras religiosas de proporções incomensuráveis. No entanto, considerar que este livro de Schmitt representa como que um mero prolongamento destes tópicos, ou uma releitura de Hamlet à sua luz, significa perder de vista a invulgar singularidade de Hamlet ou Hécuba no contexto da obra do juspublicista alemão. Daí não deve resultar a sua exaltação como interpretação originalíssima da tragédia de Shakespeare, como também não deve derivar a sua caracterização como texto marginal ou espúrio. Secundário no quadro da obra de Schmitt, sem dúvida; mas nem por isso merecedor de desconsideração como excurso anómalo e, por assim dizer, «estranho» relativamente a essa obra.  
 Em síntese, importa acima de tudo ter presente que, quando profere a conferência em Düsseldorf e, pouco depois, quando publica Hamlet ou Hécuba, Carl Schmitt era um pensador que enfrentava o silenciamento, quer o silenciamento que o exterior lhe impunha, quer o que ele próprio buscava numa atitude prudencial de autodefesa que sempre foi dos traços dominantes do seu carácter (ou, talvez melhor, da sua personalidade). Não por acaso, o tema do silenciamento estará muito presente na sua interpretação da tragédia de Shakespeare, em que, sintomaticamente, uma das derradeiras falas é «The rest is silence». Após a guerra, após ser libertado de Nuremberga – sem condenação mas também sem exculpação –, Schmitt disse que iria permanecer na «segurança do silêncio». Em Ex Captivitate Salus evocou várias personagens históricas ou literárias com as quais pretendia veladamente identificar a sua condição de pária intelectual na Europa do pós-guerra. Nomeia Benito Cereno, de Melville, Thomas Hobbes, Benjamin Constant enquanto autor de Adolphe, o Guarda Florestal de Sobre os Rochedos de Mármore, de Ernst Jünger, e até Jesus Cristo. Num certo sentido, é também com Shakespeare e a sua criatura – Hamlet, príncipe da Dinamarca – que Schmitt procura irmanar o seu trágico destino.   
         A opção pelo silêncio constituía uma medida de autodefesa, mas também uma imposição de um tempo em que Carl Schmitt não encontrou editor para os seus trabalhos e em que teve de publicar sob anonimato os dois primeiros artigos – respectivamente, sobre Donoso Cortés e sobre Francisco de Vitoria – que escreveu após a guerra. O silenciamento e, a par dele, a selectividade da memória seriam cuidadosamente cultivados por Schmitt nesses anos. Assim, ao republicar, em 1958, uma colectânea de escritos seus dos anos 1924-1954, elimina cuidadosamente os escritos que mais o comprometiam com o nacional-socialismo: nessa antologia, nem um só texto saído entre 1933 e 1941 foi reeditado.
Aliás, idêntica atitude tomara em 1940, ainda que num sentido inverso: a antologia de textos de 1923-1939 que então dera à estampa, sobre a República de Weimar, fora cuidadosamente revista de modo a evitar a publicação de escritos que o ligassem ao regime da Constituição de 1919. Aliás, mesmo sem forçar analogias – mas essa é a analogia que Schmitt verdadeiramente persegue com o Bardo –, também com Shakespeare se passará algo de semelhante: a peça Ricardo II foi representada em 1595 ou 1596, mas na versão publicada em 1597 suprimiu-se a sequência de 160 versos em que Ricardo entrega formalmente o trono. Dela consta a 1ª Cena do IV Acto e o célebre solilóquio em que o rei contempla o espelho, interroga-se sobre a sua identidade após ter sido forçado a abdicar e acaba por despedaçá-lo. O tema da abdicação era tabu nesse tempo de final de reinado de Isabel I e a eliminação daquele trecho deveu-se a razões da mais elementar prudência[18], bastando lembrar que um deputado puritano, Peter Wentworth, permaneceu dez anos preso na Torre de Londres por ter tratado, numa famosa intervenção parlamentar, a questão da sucessão da rainha.          
Não é difícil, assim, e sem necessidade de enveredar por abordagens psicológicas ou avaliações de carácter completamente descabidas, encarar a incursão schmittiana por Shakespeare como manifestação de um dos traços mais constantes da sua personalidade. Numa interpretação benévola, Schmitt não se moveria por um oportunismo vulgar (lembre-se, em todo o caso, as longas horas que passou numa fila para apresentar a sua ficha de inscrição no Partido Nacional-Socialista, instado por Heidegger e sob o seu patrocínio…), mas pela intuição prudencial da necessidade de adaptação a conjunturas históricas tidas por adversas ou mesmo hostis. É a consciência da inimizade do tempo (a par, naturalmente, de outras circunstâncias que decorrem do seu interesse pela obra de Shakespeare) que explica não apenas a opção schmittiana pela abordagem da tragédia de Hamlet como, em diversos momentos, o próprio sentido dessa abordagem. 
 
Carl Schmitt (1888-1985)
 
 
         2. Contra o «historicismo» e o «psicologismo» − o ensaio de Carl Schmitt procura, logo de início, esconjurar duas linhas de aproximação ao drama A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, que ao longo de décadas criaram raízes e fizeram escola.
Uma, em que o «historicismo» assume lugar preponderante, que Schmitt rejeita, mas a que acaba, de certo modo, por aderir, como se verá adiante. Outra, aquela que Carl Schmitt, na esteira de John Dover Wilson[19], recusa de forma mais reiterada, frontal e radical, envereda pelo «psicologismo». Quando assume as vestes da analogia edipiana, teve a sua génese na correspondência de Freud com Wilhelm Fliess e, sobretudo, em Traumdeutung (1900), sendo posteriormente desenvolvida em 1909 por Ernest Jones nas páginas do The American Journal of Psychology e, mais tarde, pelo mesmo autor, no «Estudo psicanalítico de Hamlet» que figura como capítulo primeiro dos seus Ensaios de Psicologia Aplicada (1923). Em 1949, Jones publicaria ainda um livro sobre o tema, Hamlet and Oedipus[20].
Mesmo recentemente – e ainda que sem aderir ao «psicologismo» −, autores de primeiro plano como Stephen Greenblatt sublinham a importância de Shakespeare ter tido um filho de nome Hamnet, que morrera em 1596 com onze anos de idade, sendo tal facto apontado por Sigmund Freud como decisivo para a compreensão de Hamlet[21]. A isso, Freud juntava a circunstância de o drama ter sido escrito, ao que parece, pouco depois da morte do pai de Shakespeare, ocorrida em 1601, ponto ainda hoje considerado essencial para a génese de Hamlet[22]. No entanto, têm sido avançadas outras explicações, ainda que não se excluam mutuamente. Salienta-se que, em Dezembro de 1579, uma jovem chamada Katherine Hamlett ter-se-á afogado no rio Avon quando tentava encher um balde com água; foi realizado um inquérito para apurar se teria sido uma morte acidental ou um suicídio, pois, neste caso, a jovem não teria direito a ser sepultada em solo consagrado[23]. O tema será abordado pelos coveiros no final de Hamlet, aquando da sepultura de Ofélia, afirmando aqueles que até na morte os ricos e os poderosos levavam vantagem, pois mesmo quando se suicidavam conseguiam ser enterrados segundo os ditames do seu credo.   
         Em qualquer dos casos, Carl Schmitt rejeita liminarmente – dir-se-ia, visceralmente[24] – a linha psicológica de abordagem ao drama, que, segundo ele, havia levado a um «labirinto inextrincável». Diz, logo na abertura do seu livro, que procurará «compreender Hamlet partindo da sua situação concreta», ou seja, através da abordagem da narrativa, da story, formulando perguntas simples «qual a acção do drama e quem é o Hamlet que actua, o protagonista do drama?». Como referirá no breve artigo de 1957 em que procura explicitar as interpretações avançadas anteriormente (na conferência de Düsseldorf, de 1955, e em Hamlet ou Hécuba, de 1956), o seu propósito consistia em afastar tudo o que relevasse do domínio do psicológico, do psicopatológico ou do psicanalítico para atingir a story, aquilo a que, na esteira de Aristóteles, se devia designar por síntese dos «factos objectivos», o mito, dado que mythos, em grego, não significa apenas mito como fonte do drama mas também a própria acção do drama, o desenrolar da trama, a sucessão dos acontecimentos.         
         Num certo sentido, aquilo que Carl Schmitt pretende alcançar encontra-se anunciado na própria peça. Trata-se do célebre diálogo entre Polónio e Hamlet, que tem lugar na 2ª Cena do II Acto. Mergulhado na leitura de um livro, Hamlet aparece a Polónio – o «intriguista», figura dramatúrgica de que Walter Benjamin se ocupa detidamente[25] – e este pergunta-lhe o que estava lendo. «Palavras, palavras, só palavras sempre», responde o príncipe. «Sobre quê? Qual a questão?», indaga Polónio. Hamlet replica de forma enigmática, devolvendo a pergunta e personalizando a questão: «Entre quem é a questão?». Polónio esclarece: «Queria dizer a questão-assunto; o que líeis» (a «questão-assunto», na tradução de José Blanc de Portugal[26], ou «a questão tratada», na de António M. Feijó[27]; «the matter you read», no original[28]). Pois é precisamente a «questão-tratada» em Hamlet que, acima de tudo, Carl Schmitt quer deslindar. De certo modo, Schmitt acompanha a rainha Gertrudes quando, a dado passo, esta exclama, não suportando mais a retórica palaciana de Polónio: «Menos arte e mais assunto, por favor!» (II, 2)[29]. 
 
 
         3. Em busca da story para alcançar a «questão-assunto», reconstruindo a story na sua inteireza objectiva, Carl Schmitt nomeia três autores que, segundo o próprio, influenciaram decisivamente o seu escrito e, de resto, são abundantemente citados: Lilian Winstanley (1875-1960), e em especial o seu Hamlet and the Scottish Succession (1921)[30]; John Dover Wilson (1881-1969) com What Happens in Hamlet, de 1935[31], mas também The Essential Shakespeare: a Biographical Adventure, de 1932; e, finalmente, Walter Benjamin (Ursprung des deutschen Trauerspiels, de 1928[32]).   
         Tendo essencialmente por base os trabalhos de Lilian Winstanley, Dover Wilson e Walter Benjamin, Carl Schmitt desenvolve a sua aproximação a Hamlet em torno de dois eixos interpretativos:
o primeiro, que designa por «o tabu da rainha», relaciona-se com a circunstância de, para Schmitt, a questão da culpabilidade ou da inocência de Gertrudes na morte do marido nunca ser esclarecida por Shakespeare;
o segundo, a que chama «desvio da figura do vingador» traduz-se, nas palavras de Schmitt, num processo de «hamletização» (Hamletisierung) do herói.
A tragédia do príncipe da Dinamarca, construída segundo os cânones de um drama de vingança, acaba por abrir espaço a um momento de indecisão ou de dúvida que se situa nos antípodas do que seria justamente expectável num drama de vingança, em que o herói surge como um agente resoluto e determinado na concretização da vindicta[33]. Para Schmitt, a instalação da dúvida e da melancolia no espírito do príncipe da Dinamarca, levando-o até a questionar-se a sua sanidade mental, traduziria, como se disse, um «desvio da figura do vingador».
O desvio da figura do vingador, mais do que um resultado (o resultado será, porventura, a «hamletização do herói»), consiste num processo, cujo avanço se manifesta em diversos momentos do drama. Assim, logo no I Acto Gertrudes pede ao filho que dispa «essas cores da noite» (I, 2) que lhe ensombravam o espírito. Além de ser acometido por pensamentos suicidas[34], e para lá de confessar a Horácio «Até de mim me esqueço às vezes.» (II, 2), Hamlet dirá, mais tarde, que sofre de «maus sonhos» (II, 2). A dado passo, pergunta-se: «Serei um cobarde?» (II, 2). Confessa, em diálogo com Guildenstern e Rosencrantz, «Não há muito, a causa ignoro, perdi toda a alegria; deixei de todo os costumados exercícios e isto contendeu tão fortemente com o meu ânimo que o belo quadro da terrena natura me parece estéril promontório» (II, 2). Ofélia lamenta-se de o ver «assim caído» (III, 1), Polónio sugere a Cláudio que Gertrudes falasse com o filho «para lhe sondar o mal» (III, 1) e o rei acede, dizendo que «A loucura dos grandes mais requer que se vigie» (III, 1). Guildenstern e Rosencrantz, encarregados pelo rei de perscrutarem a alma do jovem príncipe, dizem que este se encontrava «desvairado», padecendo de uma «lúcida loucura» (III, 1). «Tenho doente a minha inteligência», confidenciar-lhes-á Hamlet (III, 3). 
         Quer no «tabu da rainha», quer no «desvio da figura do vingador» Carl Schmitt encontra uma «poderosa irrupção da realidade histórica» no interior do drama. Essa irrupção (Einbruch) da historicidade em Hamlet, deixando cicatrizes profundas na acção dos diversos protagonistas, era inescapável. «A realidade histórica é mais poderosa do que qualquer estética e também mais poderosa do que o indivíduo mais genial», escreve Schmitt. Resta saber se a irrupção da realidade histórica, além de marcar Hamlet, não arrastou consigo o próprio William Shakespeare e, inclusivamente, Carl Schmitt e o ensaio que escreveu no dramático pós-guerra, num tempo em que era ostracizado e via desabar em seu redor o mundo pretérito em que se notabilizara como jurista e pensador político.  
As conclusões a que chega não são absolutamente originais[35]  nem, de resto, era esse o propósito de Carl Schmitt[36]. Quanto ao «tabu da rainha», Gertrudes seria uma encarnação velada, mas plenamente perceptível para o público londrino da época, de Maria Stuart e dos rumores que então corriam sobre o seu envolvimento na morte de Henrique Stuart, seu marido e pai do futuro rei James. Por seu turno, o «desvio da figura do vingador» decorreria da necessidade de preservar a imagem do rei James, o monarca que ascendera ao trono em condições de enorme complexidade e que pertencia a uma linhagem que, como nenhuma outra, se vira dilacerada pela cisão religiosa que então fracturara a Europa.
         
 
4. Da story à History Tempo de desordens!, exclama Hamlet no final do I Acto da tragédia. Na verdade, as dramatis personæ que se cruzam nessa época de perigos vários constituem a encarnação perfeita do ambiente tumultuoso e conspirativo que, a uma escala mais reduzida, o Bardo situará na corte de Elsinor.
Maria, a quem se dirige o «tabu da rainha» de Hamlet, tornara-se rainha regente dos Escoceses com uma semana de idade, casando mais tarde com Francisco II. Depois de enviuvar, regressaria à Escócia, onde casou com o seu primo, Henrique Stuart, Lorde Darnley, que, entre o mais, ordenou a morte do seu secretário privado, o católico David Rizzio, assassinado durante uma festa em Holyrood Palace, na presença de Maria, que se encontrava grávida (Darnley, segundo se diz, julgava que a mulher engravidara de Rizzio). Por sua vez, Lorde Darnley morreria na sequência de uma explosão que, ao que parece, fora orquestrada por James Hepburn, 4º conde de Bothwell. Este seria julgado e ilibado em Abril de 1567 e, um mês depois, casaria com Maria da Escócia, depois de a ter raptado e, segundo se diz, violado. Maria seria presa pouco depois e, em Julho desse mesmo ano de 1567 – ou seja, cerca de dois meses depois de ter casado ­­–, seria forçada a abdicar em favor do seu filho, James, na altura com pouco mais de um ano de idade. Tendo tentado, sem sucesso, conquistar o trono de Inglaterra, de que se julgava a legítima detentora (sentimento que era partilhado por muitos ingleses católicos e que em 1569 estaria na base da rebelião conhecida por Rising of the North), acabaria por ser confinada por Isabel I em diversos castelos e casas senhoriais. Ao fim de 18 anos sob custódia, seria acusada, condenada e executada por conspirar contra Isabel I. A sua vida fora uma sucessão de lutas e intrigas, desde o conflito entre a Inglaterra e a Escócia após a morte do seu pai, Jaime V, e da decisão do Parlamento que anulou o Tratado de Greewinch (que previa que, quando Maria, na altura com seis meses de idade, chegasse aos dez anos, casaria com o príncipe Eduardo de Gales), passando pela convulsão suscitada pela morte violenta de Lorde Darnley e pelo levantamento que a forçaria a abdicar e, enfim, culminando na sua detenção e subsequente execução, por ordem de sua prima Isabel.
Será difícil descrever em breves linhas a vida tumultuosa de James Hepburn, 4º conde de Bothwell e o principal suspeito do atentado à bomba que matou Lorde Darnley, marido de Maria Stuart. Esta seria a terceira mulher de Bothwell, que a terá conhecido ainda em França. Após inúmeras peripécias, que incluiriam a sua prisão sem julgamento no Castelo de Edimburgo, em 1562, de onde conseguiu escapar, raptaria e casaria com Maria Stuart. A oposição palaciana a este casamento levá-lo-ia a fugir, sendo-lhe confiscados os títulos e as propriedades. A sua fuga por mar, perseguido por nobres seus rivais, envolveria uma batalha naval e uma tempestade, que o forçariam a rumar até à Noruega. O seu plano consistia em chegar à Dinamarca[37] e, com o apoio do rei Frederico II, formar um exército que restituísse o trono a Maria Stuart. Contudo, seria preso na Noruega e conduzido ao porto de Bergen. Bergen era a terra natal da sua primeira mulher, Anna Throndsen, que não perdeu a ocasião para se vingar, com apoio da sua poderosa família e, em particular, do seu primo, Erik Rosenkratz (curiosamente, Rosencrantz é um dos nomes de uma das personagens de Hamlet). Num processo que lhe foi movido por abandono da mulher, Anna reclamou a restituição do seu dote, mas Bothwell tê-la-á persuadido a aceitar o seu navio a título de indemnização. Tudo indicia que o rei Frederico o teria libertado se acaso não tivesse sabido do seu envolvimento na morte de Lorde Darnley. Por isso, decidiu mantê-lo sob detenção na Dinamarca, acabando por enviá-lo para o Castelo de Dragsholm, onde Bothwell acabaria por enlouquecer, morrendo aos 44 anos de idade. Um ponto extremamente curioso, e nem sempre referido, é que Anna Throndsen, a aristocrata dano-norueguesa que foi a primeira mulher de Bothwell e que dele se vingou terá, segundo vários rumores, possivelmente fantasiosos, estado implicada na redacção de um conjunto de cartas, as Casket Letters, encontradas na posse de um criado de Bothwell depois de este fugir da Escócia. As Casket Letters, elaboradas por conseguinte antes de Bothwell ter sido detido em Bergen, foram uma das principais provas da acusação no julgamento que ditaria a morte de Maria Stuart.
Outra personagem central na peça de Shakespeare – ou fora dela –, Robert Devereux, 2º conde de Essex, teve igualmente uma vida que reflecte bem o tempo de desordens de que falava Hamlet. Após enviuvar, a sua mãe casara com o conde de Leicester, favorito da rainha Isabel I e padrinho de Devereux. Este, que fora educado no Trinity College, tornar-se-ia favorito da rainha, sucedendo ao seu padrasto nessa «função» e no cargo de Master of the Horse, o terceiro dignitário da Corte. Mais tarde, a rainha atribuir-lhe-ia o monopólio dos vinhos adocicados, que pertencera a Leicester, e passaria a integrar o Privy Council. Esteve com Drake na English Armada, que tentou perseguir os espanhóis após a derrota da Invencível Armada. Isabel I procurara convencê-lo a não se envolver nesta expedição punitiva, mas Essex só regressará a Inglaterra depois do falhanço de uma tentativa de tomada de Lisboa, havendo ainda notícia de um ataque a Faro, onde Essex terá saqueado a biblioteca do Paço Episcopal, pertencente ao bispo D. Fernando Martins Mascarenhas, e mais tarde doada pelo saqueador à Bodleian Library, em Oxford[38]. Aliás, se Essex se cruza com Shakespeare, se a sua presença ecoa em Hamlet, como assevera Carl Schmitt, há quem sustente, baseando-se no diário de William Keeling, o comandante do navio em que o tradutor viajava, que a primeira tradução desta peça para uma língua estrangeira foi feita para o português, em 1607, por um negro nascido na Serra Leoa e educado na fé católica em Cabo Verde, chamado Lucas Fernandez, tendo sido encenada a bordo da embarcação Red Dragon, naquela que foi a primeira representação de uma obra de William Shakespeare fora da Europa[39]. Além da tentativa de tomada de Lisboa, Essex e Raleigh comandariam em 1597 a Islands Voyage, também chamada Essex-Raleigh Expedition, a qual visava atacar os navios espanhóis, ocupar e destruir as possessões espanholas nos Açores e interceptar, justamente nesse arquipélago, a Spanish Treasure Fleet ou Silver Fleet, ou seja, o comboio de embarcações que atravessavam o Atlântico carregados de prata, ouro e pedras preciosas das Américas. Uma vez mais, Essex desobedeceu às ordens da rainha e, em vez de começar por destruir a armada espanhola, procurou interceptar a frota da prata, uma empresa que se viria a revelar desastrosa e que culminou no regresso a Inglaterra, com Essex e Raleigh a recriminar-se mutuamente pelo fracasso desta missão. De pouco lhes valeria a disputa já que ambos acabariam os seus dias no cadafalso. O desastre dos Açores contribuiria, de forma decisiva, para o declínio do apreço de Isabel I pelo seu favorito, que ainda mais se adensou com o estrondoso falhanço da sua próxima missão, a qual consistiu em debelar uma rebelião ocorrida na Irlanda no contexto da Guerra dos Nove Anos. Enquanto Lord Lieutenant of Ireland, Essex chefiou uma força de 16.000 homens – a maior que até então a Inglaterra enviara àquele território – para combater o movimento liderado por Hugh O’Neill, conde de Tyrone, com o apoio de Espanha e da Irlanda. Para piorar a sua situação, Essex decidira, ao arrepio das ordens superiores, regressar a Londres por mar e, mais grave ainda, apresentou-se no quarto da rainha quando esta ainda não se encontrava devidamente vestida e adornada. Teve de enfrentar o seu primeiro julgamento, que acabou na sua condenação e na sua destituição de todos os cargos que ocupava. Em Agosto de 1600, o monopólio dos vinhos, a sua principal fonte de rendimentos, não foi renovado e, muito provavelmente em resultado de tudo isso, começou a planear uma revolta que, debelada pelas tropas leais a Isabel I em 1601, o levaria a um segundo julgamento e, desta vez, à sua decapitação. Shakespeare far-lhe-á uma breve alusão em Henrique V e, segundo se diz, em Much Ado About Nothing. Para Carl Schmitt, essas não são as únicas obras dramatúrgicas do Bardo do Avon em que Robert Devereux, 2º conde de Essex, está presente. Também em Hamlet ocupa lugar de destaque, de acordo com a interpretação schmittiana.
Neste tempo de sangue e desordens, a dramatis personæ que merece o maior realce por parte de Carl Schmitt é, indiscutivelmente, o rei James. O seu pai fora assassinado, provavelmente por aquele que, escassos dois meses depois do homicídio, casaria com a sua mãe. Esta, por sua vez, seria executada, como executado seria também o filho de James, Carlos I. O seu neto foi afastado do trono e morreu no exílio. Dos Stuarts, dois morreram no patíbulo e apenas oito dos soberanos que ostentaram este apelido chegariam aos cinquenta anos de idade.
James fora coroado quando tinha pouco mais de um ano de idade, a sua mãe fora designada regente da Escócia com uma semana de vida. Como salienta Carl Schmitt, todos pretenderam apoderar-se de James, que foi raptado, escondido, detido, sequestrado, ameaçado de morte. Baptizado como católico, seria retirado a sua mãe e educado na fé protestante. Enquanto Maria Stuart morreu na fé católica, James teve de se unir aos protestantes e manter boas relações com Isabel I, a principal inimiga de sua mãe, que a teve praticamente reclusa durante 18 anos.
Crescendo nesta atmosfera densa de conflitos e intrigas, cedo teve James de aprender as artes do ardil e da dissimulação para conseguir afirmar-se – e até sobreviver – num tempo dilacerado pela violência política e religiosa, por disputas sangrentas entre grupos e facções rivais. Teve de se fazer Hamlet, ainda que Carl Schmitt advirta que não devemos, de modo algum, resvalar no simplismo de considerar que Shakespeare quis identificar de forma linear James I – curiosamente, casado com uma princesa dinamarquesa[40] – com o príncipe de Elsinor. A ambiguidade (ou, em termos schmittianos, a resistência à pulsão decisionista), mesclada de gestos de força e de afirmação de autoridade, foi a chave que permitiu a James suceder a Isabel, debelar revoltas como a Gunpowder Plot de 1605 ou gerir inúmeros conflitos com o Parlamento ao longo de duas décadas de reinado.             
Enquanto procurava fugir ao destino trágico dos Stuarts, conseguindo morrer no trono – um trono que ocupou durante vinte e dois anos, um feito notável, ainda que não comparável aos quarenta e cinco anos do reinado isabelino (devemos contar, no entanto, que James já ocupava o trono da Escócia havia cerca de vinte anos) –, o rei afirmou-se como pensador e filósofo, e promotor da tradução vernacular da Bíblia. Henrique IV de França apelidou-o de le plus savant fou de la chrétienté e, na verdade, a sua cultura e erudição permitiram-lhe escrever, em 1597, Daemonologie em que, segundo Carl Schmitt, o problema da aparição dos espíritos é tratado da mesma forma do que em Hamlet. No ano seguinte, publicará The True Law of Monarchies, mas será Basilikon Doron, de 1599, que o consagra como um dos principais teorizadores do direito divino dos reis, tese que emerge em várias obras de Shakespeare, e, de acordo com Schmitt, surge sobretudo em Hamlet. Trata-se de um facto tanto mais singular quanto, nesta peça, o monarca em funções é um usurpador, o que suscita perplexidades em torno de um dos tópicos mais caros ao juspublicista alemão, o da legitimidade. Um usurpador pode reivindicar o direito divino? Ou, ao invés, é a restauração do direito divino que impõe a morte do rei ilegítimo, justificando, por sua vez, a vingança que constitui o fulcro do drama da Dinamarca?
Deixando em aberto a resposta a estas questões, sempre se dirá que a afirmação de Schmitt segundo a qual Hamlet é a peça de Shakespeare em que se manifesta, de forma mais evidente, a teoria do direito divino dos reis parece ser bastante questionável. A origem divina da investidura régia (e, logo, o seu carácter sagrado, vicarial ou representativo do sacro) aparece, de um modo muito mais explícito, noutros lugares da obra shakespeariana, em que o monarca é designado por «substituto de Deus» (Ricardo II, I, 2), Seu deputado eleito (Ricardo II, I, 2; III, 2; IV, 2. Henrique VI, Primeira Parte, V, 3. Henrique VI, Segunda Parte, III, 2), Seu ministro, Seu capitão, Seu lugar-tenente. De igual modo, existem epítetos que aludem à majestade associando-lhe uma forma sacral, como «bendito», «o rei coroado» e, sobretudo, o «ungido» (anointed), expressão que aparece sob diversas fórmulas: o «ungido aos olhos de Deus» (Ricardo II, I, 2), o «rei ungido» (Ricardo II, II, 3), o «ungido do Senhor (Ricardo III, IV, 4), o «Corpo ungido» (Ricardo III, V, 3), a «cabeça ungida» (Henrique IV, Segunda Parte, Prólogo)[41]. No entanto, perscrutar em cada expressão de Shakespeare um sentido político determinado ou determinável, procedendo a partir daí a uma tentativa de reconstrução do seu ideário, é algo que se afigura infrutífero e até arriscado. Desde logo, porque é duvidoso poder-se sustentar que possuía um pensamento político conceptualmente estruturado, articulado e coerente. Assim, por exemplo, há quem refira que Shakespeare, ao colocar em Ricardo II o absolutismo num contexto medieval, situou historicamente esse conceito, retirando-lhe a sua dimensão transcendental[42], o que, por certo, não constitui um contributo favorável à teoria do direito divino dos reis, o que poria em causa tudo quanto atrás se disse sobre a influência dessa teoria em diversas obras de Shakespeare. Por outro lado, devemos recordar a circunstância singela, mas decisiva, de William Shakespeare nos ter legado nada menos do que 884.467 palavras, as quais não possuem, naturalmente, significados precisos do ponto de vista conceptual, sobretudo em domínios onde Shakespeare não era especialmente versado nem interessado, como a teoria política. O levantamento obsessivo da sua linguagem, que permitiu detectar o uso de 138.198 vírgulas ou de 15.785 pontos de interrogação, conduz àquilo a que Schmitt, referindo-se às interpretações de cariz psicanalítico, designou por «labirinto inextrincável». Tendo presente que, em Hamlet, o jovem príncipe recita 1.495 versos, estará votada ao fracasso qualquer tentativa de em cada um deles descobrir um propósito deliberado ou um sentido à clef introduzido pelo autor.
 
5. A irrupção do tempo no espaço dramático – sem entrar numa exegese política aprofundada da tragédia shakespeariana, alguns pontos merecem ser mencionados para compreendermos o sentido da interpretação avançada por Carl Schmitt.
Desde logo, o clima ensombrado de nuvens de incerteza e medo que enquadra toda a acção dramática. Na 1ª Cena do I Acto, Horácio afirma que a aparição do Espectro na esplanada do Castelo «traz à nossa terra qualquer estranho mal». Praticamente a seguir, dá conta dos rumores que corriam quanto à intenção de Fortimbras – príncipe da Noruega que em torno de si reunira «um grupo de duros sem terras / Que por vida e comida vão à aventura» (I, 1) – de «recobrar com bruteza» os territórios que o pai de Hamlet conquistara. Utilizando uma imagem de extraordinária beleza, Horácio diz: «Há orvalhos de sangue; está doente o sol e o húmido astro» (I, 1)[43]. Orvalhos de sangue que percorriam a Dinamarca («Algo está podre no reino da Dinamarca!…», na célebre frase de Marcelo na 4ª Cena do I Acto), mas que percorriam igualmente a Inglaterra daquele tempo ou, mais amplamente, toda a Europa ferida por uma cisão político-religiosa sem precedentes. «Tempo de desordens! Ó maldita sorte / De ter nascido para as corrigir!» (I, 5), exclamou Hamlet.
         É nos tempos de desordens que se testa o carácter dos homens. O Espectro, no dizer de Horácio, confrontava os vivos com a necessidade de darem provas da «honra e [da] lealdade do tempo presente» (I, 1). O tema do desconcerto do mundo e do tempo, desafiando e pondo à prova as virtudes humanas, será introduzido por Hamlet no diálogo com Polónio em que, a dado passo, afirma: «Pela forma como vai o mundo ser-se honesto é ser homem só pescado entre dois mil» (II, 2). «Não há vilão nascido na Dinamarca / Que não seja velhaco rematado.», novamente nas palavras de Hamlet (I, 5). Não admira, por conseguinte, que as questões da lealdade e da autenticidade de carácter percorram a obra do primeiro ao último acto, o que possui, como é óbvio, implicações psicológicas, antropológicas mas também políticas. «Sê mais verdadeiro para ti próprio…», aconselha Hamlet a Horácio, a primeira vez que se encontram, quando o fiel companheiro regressa de Wittemberg, cidade onde Martinho Lutero afixara as suas 95 teses e que, significativamente, é por mais de uma vez citada na peça de Shakespeare (desde logo, como local onde o príncipe seguia os seus estudos, existindo aí, como se sabe, uma das mais importantes universidades protestantes da época, onde Lutero e Melanchthon foram professores). Quanto à questão da fidelidade, emerge de forma muito notória na comparação entre Horácio, que se mantém leal ao príncipe, e os traidores Rosencrantz e Guildenstern. Junto destes, Hamlet invoca deveres recíprocos («pelos direitos da camaradagem, pela paridade da nossa juventude, pela sempre guardada obrigação da amizade»: II, 2), mas deles não obtém a fidelidade esperada. Aproximando-se o desfecho da peça, Hamlet irá comparar Rosencrantz a uma esponja, que suga o favor de Cláudio, a sua autoridade e as suas recompensas (IV, 1). E, mais ainda será Hamlet que, através de um engenhoso estratagema, ditará a morte dos seus antigos companheiros que o atraiçoaram no instante decisivo.
         Num plano algo diferente da lealdade, mas ainda num quadro que lhe é próximo – o da autenticidade das relações humanas –, importa afirmar que parece ser sincera a devoção maternal de Gertrudes por Hamlet. Se dúvidas existem quanto à sua culpabilidade na morte do marido, o amor pelo filho é apresentado como verdadeiro e autêntico. Gertrudes procura justificar, perante Cláudio, a morte de Polónio às mãos de Hamlet, que, segundo ela, actuara «sem ver, de cabeça perdida» (IV, 2). Mais adiante, Cláudio corrobora, junto de Laertes, a devoção da rainha pelo príncipe. Essa é, aliás, uma das razões que o rei invoca para não ter ainda punido Hamlet. Laertes pergunta-lhe o motivo pelo qual, tendo em conta a «segurança» e a «prudência», não aplacara os comportamentos do seu sobrinho. Cláudio invoca duas razões, «Que talvez vos pareçam bem pouco importantes / Mas para mim são poderosas…». A primeira prendia-se justamente com a devoção maternal de Gertrudes: «A Rainha, sua mãe, quase só por ele vive». É extremamente interessante notar que, aduzindo a segunda razão para tolerar as atitudes de Hamlet, Cláudio afirme, com hipocrisia ou não, que também ele nutria idêntico afecto pelo jovem príncipe: «Quanto a mim, por virtude ou por meu mal, / Sou-lhe tão chegado pela alma e pelo corpo / Que, qual estrela só movente em sua esfera, / Só por ele vivo» (IV, 7).   
         Tendo em conta o desconcerto do mundo circundante e a perfídia enraizada no coração dos homens, só através do jogo e do simulacro poderia Hamlet articular o seu plano de vingança. O príncipe dinamarquês não seria um César Bórgia, como pretendeu Salvador de Madariaga num escrito de 1948, que Schmitt cita[44]; mas, em contrapartida, também não era um jovem ingénuo e desconhecedor dos males do mundo. Pelo contrário, além de parecer ser atraiçoado por sentimentos de inveja face à perícia de Laertes no manejo das armas (IV, 7), reclama possuir o dom da profecia (I, 5) quando o Espectro lhe comunica que o assassino era o seu tio, Cláudio. Realista, dirá a Horácio existirem mais coisas no Céu e na Terra do que na vã filosofia (I, 5). Depois, falando com Rosencrantz e Guildenstern, mostra ter-se apercebido de que ambos tinham sido chamados à corte pelo rei e pela rainha, facto que o olhar dos seus companheiros não conseguiu esconder da sua visão arguta: «Mandaram-vos e há qualquer coisa de confissão nos vossos olhares… Coisa que a vossa candura não tem arte para disfarçar» (II, 2). Não hesita em manipular Ofélia[45], e o amor que esta lhe tem, para se fazer passar por louco (II, 1; III, 1), sendo esta, no final, que realmente enlouquece, perdendo a razão e a vida (IV, 5). E, quando engendra o seu plano vingativo, solicita a Horácio que, como sempre acontecera entre ambos, confie cegamente nos seus actos, «Por mais estranho que pareça o que eu fizer / Como se acaso achardes que ajo / Como se cómico ou palhaço fosse,» (I, 5). «Se disser frase que se não entenda […] / Ambiguidades quaisquer, sem nexo, / Fingi nada perceber, nada façais…» (I, 5). «Que grande velhaco […] eu sou!» (II, 2), chega a exclamar quando falava consigo próprio.
Ao entrar no domínio da representação da loucura (v.g., no encontro tido com Ofélia e que esta relata ao seu pai, Polónio, na 1ª Cena do II Acto), como forma de autodefesa[46] e de concretização do seu ardil, Hamlet parece aderir à lógica do tempo, ao imperativo das circunstâncias, explorando ao limite o carácter subversivo (verdadeiramente des-ordeiro) de uma loucura que, afinal, se vem a revelar a mais poderosa das suas armas. Graças à loucura simulada, Hamlet pode fazer e dizer o que quiser, revelando-se um astuto conhecedor – ou jogador – de aparências. Aliás, havia-o dito a seu tio, logo no I Acto: «[…] em mim há qualquer coisa dentro / Muito para além do parecer; o resto é simulacro» (I, 2). Fazendo-se passar por louco, conseguiria mais facilmente, por exemplo, furtar-se a revelar os seus intentos, derrotando as tentativas que, a mando do rei e da rainha, Guildenstern e Rosencrantz fazem para penetrar na intimidade do seu ser (III, 1). O simulacro da loucura era um salvo-conduto de acção, mas também, ou principalmente, um dispositivo de ocultação das reais intenções do príncipe.
Uma questão que permanece em aberto – e essa era, e é, a questão – consiste em determinar em que medida a própria indecisão de Hamlet e a sua tibieza não fazem parte da verdade encenada, da verdade encenada pelo jovem príncipe perante os cortesãos de Elsinor, o que faria com que existissem não uma, mas duas, play within a play no interior do drama: a representada pela companhia teatral que apresenta a morte de Gonzaga e, por outro lado, a protagonizada por Hamlet ao longo de toda a tragédia[47]. Que o teatro é capaz de gerar ou desvendar a verdade, de produzir a própria realidade, é algo que a representação cénica da morte de Gonzaga demonstra na plenitude. Com efeito, será através da representação de um assassínio que o assassino se desmascara. O próprio Hamlet o reconhece: tinha consigo a informação que o Espectro lhe transmitira; mas, admitindo que se tratava de um demónio que o enganara para o fazer perder, explorando a sua debilidade melancólica, seria a representação teatral, e a reacção do monarca em face dela, que dissiparia todas as dúvidas que no seu espírito subsistissem quanto à culpabilidade de Cláudio: «Hei-de / Ter provas mais directas; a peça mas dará. / Com ela apanharei do Rei a consciência.» (II, 2). E, de facto, após o rei abandonar abruptamente a representação de que Hamlet era encenador, o príncipe adquire, quase em termos disfóricos, um novo vigor na concretização do seu plano de vingança. Sozinho, diz: «Agora, sangue ardente beberia / E capaz sou de tão terríveis feitos / Que o Sol por mim no Céu tremera» (III, 2).  O príncipe melancólico transfigura-se num vingador ávido de sangue e de morte, porventura até da sua própria morte: «De ora avante, meus pensamentos serão só de morte – / Morte sanguinária – ou de nada valem!» (IV, 4).
A loucura, ou o seu simulacro, era o expediente capaz de produzir a verdade numa corte dominada pela hipocrisia, hipocrisia que se estendia a todo o reino apodrecido, em que, como acentua Hamlet, os que outrora desdenhavam Cláudio agora pagavam vinte, trinta ou cem ducados por um retrato seu (II, 2). As voltas da Fortuna, tema clássico que possui vários afloramentos em Hamlet (II, 2), serão expostas na peça levada à cena no castelo perante Cláudio, Gertrudes e todos os cortesãos: «Cai o poderoso, vão-se-lhe os amigos / Enriquece o pobre não tem inimigos» (III, 2). 
Ao aperceber-se de que este desconcerto se estendia a todo o mundo, mundo onde os homens mais não eram do que «bobos da Natureza» (I, 4), «quintessência deste pó da terra» (II, 2), Hamlet, que já fora acometido por sentimentos suicidas, poderá ter encontrado na morte a saída para a realidade que o aprisionava («A Dinamarca é uma prisão», diz, ao que Rosencrantz responde: «Então é que o mundo o é também» – II, 2). Assim, o fatal duelo com Laertes poderá constituir o desenlace intimamente desejado pelo jovem príncipe. Agonizante, impede Horácio de o acompanhar no seu trágico destino, ou desígnio, para que o amigo fiel possa narrar aquela à posteridade (V, 2). Na peça, todos morrem – o pai de Hamlet, Polónio, Ofélia, Gertrudes, Cláudio, Laertes, Hamlet. Talvez melhor, todos têm a graça ou a ventura de morrer. Excepto Horácio que, à maneira romana, queria acompanhar na morte o seu companheiro. Hamlet proíbe-o e, no fundo, obriga-o a sobreviver. Quanto a si próprio, faz a travessia de um drama de vingança para um drama de destino, do «destino que desliza ao encontro da morte»[48]. Assim, Walter Benjamin observa que «Hamlet quer morrer por obra do acaso, e uma vez que os adereços ominosos se juntam à sua volta como se ele fosse seu senhor e conhecedor, no final deste drama trágico, como algo que lhe é inerente e que ele supera, cintila por um instante a luz do drama de destino»[49].
Mas se há momentos em que a indecisão é real, a ponto de o Espectro ter de intervir para lhe pôr termo, como acontece no diálogo de Hamlet com Gertudes no quarto desta (III, 4), ao jovem príncipe não faltava a frieza necessária a jogar o xadrez da hipocrisia[50]. Antes de se deslocar ao quarto de sua mãe[51], já plenamente convicto da culpabilidade de Cláudio e, por conseguinte, sedento de vingança, percebe que deve conter a sua fúria, calibrar a ira, preservar a dissimulação: «Agora, brando, vou ver minha mãe. / Ó coração, não esqueças tua natureza, / Não faças, não deixes que a sombra de Nero / Entre neste peito. Falarei de adagas mas sem as usar. / Alma, língua minha, será a hipocrisia / O que em minhas palavras aceso ela pressinta – / Confirmá-lo jamais minha alma consinta!...» (III, 2). O jogo deve prosseguir, pois, até ao desenlace final, fatídico para todos, salvo para Horácio, transformado em involuntário cronista do sangrento drama da corte de Elsinor, que claramente se aproxima, como intuiu Benjamin, de um drama de destino e não apenas de um drama de vingança.          


Walter Benjamin (1892-1940)



 
Muito possivelmente, Carl Schmitt não acompanharia esta ideia, como não acompanhou Walter Benjamin quando este referiu a existência de um vislumbre de «centelha cristã» no destino de Hamlet[52]. Schmitt rejeita com veemência tal ideia, do mesmo modo que refuta qualquer desvio ao relato objectivo da story, que, com alguma jactância, reclama ter feito, o que sempre implicaria a primazia da sua proposta interpretativa sobre todas as demais. Em especial, Carl Schmitt congratula-se pelo facto de o seu método de apreciação de Hamlet sob uma perspectiva histórica ser capaz de questionar, ameaçando-o, o monopólio interpretativo da história da arte que o materialismo dialéctico tinha alcançado. A conferência de Düsseldorf e Hamlet ou Hécuba, como se vê, continham, de forma algo elusiva, um programa político – ou político-ideológico – de confronto com o marxismo, o máximo a que, naquele contexto de 1955-1956 e com os antecedentes que haviam marcado a sua biografia, Carl Schmitt se poderia permitir. Mostra, de todo o modo, que a tendência polemizante que constitui um dos traços mais característicos do período áureo da sua obra[53]. 
         Quanto à caracterização do monarca – ou, se preferirmos, do poder –, existem elementos que podem não corresponder à ideia de uma teoria absolutista da autoridade régia. Quando Laertes pede ao rei Cláudio que o deixe regressar a França, o monarca revela uma completa abertura a ouvir os seus súbditos («Ninguém, falando de razão ao Rei da Dinamarca, / Perdeu suas palavras.»), e não autoriza a viagem sem antes perguntar se o seu pai, Polónio, dera permissão; só então a autoridade régia pronuncia a sua palavra, desse modo deixando intocada a autoridade parental (I, 2). Pouco depois, há um diálogo de Horácio com Hamlet em que a humanidade do monarca é sublinhada pelo seu filho. Horácio refere «Vi-o uma vez. Era um grande rei», ao que Hamlet responde «Era um homem em tudo e por tudo» (I, 2). Monarca e homem que, em vida, também cometera crimes, expiando agora, sob a forma de Espectro, a culpa por os haver praticado, tendo morrido sem sacramentos, sem extrema-unção. Deambulava pelo Purgatório, conceito católico que Shakespeare introduz na peça, correndo riscos, uma vez que a doutrina protestante não só negava esse conceito como rejeitava a existência de fantasmas: as aparições eram entidades diabólicas disfarçadas, tema no qual James I era versado[54]. Mais ainda, apesar de Schmitt considerar que as dúvidas de Hamlet no I Acto se situam no terreno da concepção protestante dos espíritos, o certo é que Shakespeare coloca o Espectro a jurar por São Patrício, o santo patrono do Purgatório[55]. E, quando o Espectro fala com o filho, diz estar condenado algum tempo a vaguear de noite, «Até que os loucos crimes dos meus viventes dias / Os purguem e me sejam perdoados» (I, 5). 
         Se a finitude da existência terrena é evocada em diversas passagens[56], este tema, quando abordado relativamente aos monarcas, suscita uma questão específica, a dos dois corpos do rei. Quando profere a sua conferência em Düsseldorf, Schmitt não conhecia, obviamente, o trabalho de Kantorowicz, já que The King’s Two Bodies. A Study in Mediaeval Political Theology só será publicado em 1957. Ainda assim, o dualismo dos corpos do rei era-lhe familiar[57]. Mais do que isso, em Hamlet existem referências claras ao corpo natural do rei, que goza, sofre e morre como o de qualquer outro ser humano, seja qual for a sua condição[58]. Na 2ª Cena do I Acto, no diálogo entre Horácio e Hamlet, é patente a dualidade entre monarca («Era um grande rei») e homem («Era um homem em tudo e por tudo»). «O corpo está com o Rei mas o Rei não está no corpo…», diz Hamlet na 1ª Cena do IV Acto, o que, sublinhe-se, não significa necessariamente uma alusão consciente à doutrina medieval dos dois corpos do rei. Para mais, o corpo a que aqui se faz referência, pelo menos numa primeira leitura, é o de Polónio, morto. Mais explícita é uma passagem em que, logo a seguir, Hamlet dialoga com Cláudio. Aí, a corporeidade dos monarcas é afirmada abertamente, e com o propósito claro de associar a essa natureza corpórea uma noção de finitude. Diz Hamlet: «Qualquer homem pode pescar com um verme que comeu um rei e comer o peixe de que dele se alimentou». O verme havia comido o cadáver do rei, o peixe comera o verme que o pescador usara como isco, o pescador come o peixe. No limite, e citando Hamlet, «um rei pode passear pelas tripas de um mendigo» (IV, 1).       
         A par da indecisão, surgem espaços de não-decisão ou, melhor dizendo, de decisão condicionada. Por outras palavras, os soberanos, mesmo quando investidos de poder absoluto, não ocupam de pleno o espaço da decisão. Como Laertes diz à irmã, Ofélia, o «seu escolher é limitado» (I, 3). Laertes procurava avisá-la para não pôr em causa a sua honra por Hamlet, já que este, no momento decisivo, poderia não a desposar, mesmo que a amasse: «[…] deveis ter cautela: seu nascimento, / Sua alta estirpe dá-lhe um querer também alheio… / Sujeito assim, talvez nem sempre possa / Talhar seu destino com os desvalidos / Pois o seu escolher implica outros valores: / A salvação, a sanidade de todo o seu Reino». Essa era a razão e o princípio a que deveriam os monarcas sujeitar toda a sua acção, mesmo na esfera íntima dos sentimentos. «Sê parca e prudente em acreditá-lo / Pois em seus actos, mesmo particulares, / Há que pôr outro selo a garanti-los e que mais não é / Do que a grande e principal própria voz da Dinamarca» (I, 3).   
         Em todo o caso, a decisão do soberano é inquestionável. «Vossas Majestades / Soberanos senhores das nossas pessoas, / Basta-lhes ordenar e submissos, / Gratos, obedeceremos sem nos pedirem nada.», proclama Rosencrantz, falando por si e por Guildenstern, quando se dirige ao rei e à rainha  (II, 2). Numa etapa mais adiantada da trama, caberá a Guildenstern pronunciar as palavras onde é mais visível a natureza divina do mandato régio de zelar pela ordem do país e a segurança das suas gentes. Quando Cláudio comunica a Rosencrantz e a Guildenstern que devem levar consigo Hamlet, rumo a Inglaterra, Guildenstern observará: «Tomaremos as nossas providências. / Mais de todos aliás sacro e divino é o cuidado / De velar pela segurança dessas tantas vidas / Que vivem e se nutrem por Vossa Majestade.» (III, 3).  
         Se a vontade régia, quando manifestada, é inquestionável para os seus súbditos, o monarca não pode prescindir de uma consideração das consequências das suas acções, atendendo ao ambiente e condicionantes que as envolvem. Esse dilema atravessa o espírito de Cláudio e é fonte das inquietações que o devoram, chegando a comparar-se a um homem que serve a dois senhores. Tão nítida é a consciência do crime que cometera que se confessa incapaz de rezar ao Céu. «Ó alma enlameada!», assim se descreve a si próprio (III, 3), dizendo depois: «Cheia está minha alma / De tristezas e contradições!...» (IV, 1).
O rei e a rainha defrontam-se com uma dúvida essencial, que consistia em saber se a melancolia e as atitudes inusitadas de Hamlet se deviam à dor pela morte do pai (e pelo casamento da mãe com o tio) ou decorriam, como sustentava Polónio, do facto de ter sido rejeitado por Ofélia (II, 2; III, 1). Ofélia constituía, por assim dizer, o «trunfo» de Polónio neste jogo palaciano. Fosse ela a causa e a razão dos padecimentos do príncipe, maior seria a capacidade de influência e o raio de acção do seu pai. Não por acaso, Hamlet provoca Polónio, chamando-lhe Jefte e dizendo: «que grande tesouro tens!» (II, 2). Jefte é uma personagem do Antigo Testamento (Juízes, 12:7), um dos Juízes de Israel, que possuía como grande tesouro a sua filha, que morreu virgem e solteira, em nome da causa de Israel. Para Cláudio e para Gertrudes era fundamental saber a causa da dor de Hamlet, o que indicia a participação de ambos no assassinato do seu pai. E, à sua maneira, também Cláudio é sujeito a um «processo de hamletização». Por um lado, o rei reconhece a necessidade de eliminar a causa da desordem, isto é, o próprio príncipe: «A ordem desta nação não pode tolerar / Riscos tão perigosos como os que de hora a hora crescem / Devido a suas lunáticas fantasias.» (III, 3). Quando, na 1ª Cena do III Acto, recebe Rosencrantz e Guildenstern, Cláudio refere-se à «perigosa loucura enfurecida» do sobrinho. Mais adiante, em diálogo com Gertrudes, já após a morte de Polónio, Cláudio diz, sobre Hamlet: «Sua liberdade a todos ameaça» (IV, 1). Mas, por outro lado, Cláudio alude, por diversas vezes, e com indisfarçável inveja, à estima de que Hamlet gozava junto do povo. Ao procurar livrar-se do príncipe, Cláudio diz, de si para si: «[…] não devemos aplicar-lhe todo o rigor da lei: / O povo irresponsável adora-o, / Seus olhos não vêem outra coisa; não pensam.» (IV, 3). Cláudio afirma, inclusivamente, que não pode levar Hamlet a tribunal porque «É grande o amor que o povo lhe dedica, / O afecto que lhe faz perdoar todas as faltas». Em face disso, reconhece os limites do seu poder para debelar o comportamento do amado príncipe: «Leves são meus dardos para tão fortes ventos / Tanto que regressariam de encontro ao meu arco / E não atingiriam o alvo apontado…» (IV, 7).
Aliás, são feitas, noutras ocasiões, referências ao carácter ignaro e volátil da populaça, tópico também presente em várias obras de Shakespeare, sobretudo em Júlio César; «povo grosseiro e insano», assim lhe chama Cláudio (IV, 5). Daí que, quando Laertes regressa de França, procurando vingar a morte do pai matando Cláudio (e aqui, note-se, não há qualquer «desvio na figura do vingador»), um cortesão diz que o povo apoiava esse gesto de revolta. O cortesão aconselha Cláudio a fugir: «Cuidado! Fugi, meu senhor! / O oceano ao transpor os seus limites / Não devasta planícies com gula maior / Do que o jovem Laertes à cabeça dos amotinados / Derruba os nossos comandantes!». Eis, agora, o trecho que interessa: «A turba do povo chama-lhe senhor / E, como se o mundo só agora nascesse, / Esqueceu-se a traição, ignoram-se os costumes / Que ratificam e sustentam a palavra dada! / Gritam: Escolhamos! Laertes será rei! Mãos, chapéus e línguas aplaudem / Ecoando até ao céu: Laertes será rei! Laertes! / Com  que alegria gritam pela falsa pista, / Falsa partida, falsos cães daneses!» (IV, 5). O mesmo povo que clamava por Laertes era aquele que amava Hamlet, ainda que o considerasse «maluco», para usar a expressão do Primeiro Coveiro (V, 1).
A esta ameaça de ilegítima revolta, a esta irrupção do caos e da desordem, Cláudio, quando se depara com Laertes, invoca a natureza sagrada do seu mandato, a qual bastaria para pôr termo a qualquer acto sedicioso: «Há tanto de sagrado a guardar o Rei / Que a traição mal espreita / E pouco realiza a seu intento.» (IV, 5). Este será, provavelmente, em toda a tragédia de Elsinor, o trecho em que a marca da teoria do direito divino dos reis ecoa com mais nitidez.          
         No processo de decisão de Cláudio, como no processo de decisão de Hamlet, a play within a play desempenha um papel crucial. No rei, dissipa a dúvida sobre o que ia no espírito do sobrinho: ao encenar o assassinato de Gonzaga, Hamlet sabia a verdade e, a breve trecho, iria vingar-se. No príncipe, a reacção intempestiva do monarca ao assistir à representação da peça, sintomaticamente intitulada A Ratoeira, confirma aquilo que lhe contara o Espectro: Cláudio tinha assassinado traiçoeiramente o seu pai. O calculismo, todavia, prevalece em ambos os casos: Hamlet irá falar com sua mãe contendo hipocritamente o desejo de vingança que lhe atravessa a alma; Cláudio, gizado o plano de fazer desaparecer Hamlet a caminho de Inglaterra, procura também refrear o seu ânimo violento: «[…] tu, coração de cordas de aço, / Torna-te macio como os tendões das criancinhas / E poderá ser que tudo acabe em bem!» (III, 3).
         De certo modo, a doutrina anglicana de que o tiranicídio conduz à rebelião e esta, por sua vez, à guerra civil, muito presente nos dramas históricos de Shakespeare, também aqui emerge, ainda que um modo mais insinuado, mas suficientemente claro para que se possa concluir que Cláudio tinha consciência da ilegitimidade do seu poder, conquistado através do homicídio do seu irmão e da usurpação da coroa, que de direito pertencia a Hamlet. 
         Hamlet é, além de um drama de vingança, um drama de sucessão, questão de que adiante se falará. Por ora, e em íntima conexão com a reprovação do tiranicídio e do direito de revolta, realce-se apenas a ideia de que uma mudança de rei implica sempre uma mudança para todo o reino. Diz Rosencrantz: «Rei morto não é só ele que morre / Mas, como um turbilhão engolfa / Tudo o que lhe está em derredor, / É roda gigantesca em píncaros fixada / Em cujos longos raios mil coisas se prendem. / Caia ele e tudo o que é menor, / Tudo o que é pequeno e inferior consequência, / Espera a estrondosa ruína.». A frase seguinte é quase uma máxima política: «Nunca / Suspira um rei sem que o povo inteiro gema» (III, 3).
         Os monarcas, todavia, possuem uma encarnação corpórea e, como tal, sujeita à efemeridade da vida, no que não se distinguem do mais vulgar dos seus súbditos. Rosencrantz diz que a sua ambição é tão vaga e difusa que não passa de «sombra de outra sombra», ao que Hamlet responde: «É o que são os nossos corpos mendigos, os nossos monarcas e nossos dilatados heróis: sombras e sombras de mendigos» (I, 2). Sendo príncipe, Hamlet descreve-se como «indigno homem de lama» (II, 2) e, de todos os intervenientes na tragédia, é, provavelmente, aquele que possui uma consciência mais aguda e severa das suas debilidades, da sua «fraqueza merencórica» (II, 2) e da sua transitoriedade enquanto ser humano.
        

 
6. Simplificação interpretativa e regresso aos palcos isabelinos – há uma advertência que Schmitt faz, a qual deveria ser escutada por muitos dos que, ao longo dos séculos, procuraram encontrar os mais desencontrados sentidos na opus magnum de William Shakespeare. Essa advertência – a que, aliás, o próprio Schmitt talvez devesse ser mais fiel – consiste, no fundo, num chamamento à razão das realidades simples: Hamlet foi concebido como uma peça que se destinava a um público concreto de uma época histórica concreta. Mais, não foi escrito para ser lido mas para ser representado perante espectadores historicamente situados, que tinham relativamente a nós o privilégio de possuírem um conhecimento muitos mais próximo, porque experienciado e vivido, de factos a que Shakespeare poderia tão-somente aludir, tendo a certeza de que tal alusão seria compreendida pelo auditório, mas não comprometeria em excesso a segurança do dramaturgo, desde que este se rodeasse das devidas cautelas, o que não aconteceu com uma arriscada representação de Ricardo II, de que adiante se falará. Existe outro dado importante: as peças eram escritas para serem levadas à cena, não sendo imediatamente editadas sob a forma de livros ou folhetos, pelo que cada representação – e aí residia em larga medida o motivo do seu fascínio – era absoluta novidade para os que assistiam, desconhecedores do desenrolar da trama e do desfecho final. Não existindo versões editadas, o público acompanhava a acção sem saber o que se passaria de cena em cena, ouvindo palavras que nunca tinha ouvido, confrontando-se com alusões e referências que se inscreviam perfeitamente no tempo coevo. Com frequência, e tendo em conta as dimensões meramente simbólicas que os elementos cénicos assumiam, era a palavra, mais do que a trama, que adquiria lugar central no palco[59]. Words, words, words, essa era a matéria-prima essencial de William Shakespeare e é na palavra que o seu génio faz assentar toda a carga dramática da acção.
A natureza enigmática do drama de Elsinor adensou-se com o passar dos séculos e com a carga especulativa que sobrecarregou as referências, mais ou menos crípticas, que a peça contém. Tendo em conta aqueles dados singelos, o programa de Schmitt pressupõe um intuito de deliberada simplificação (Vereinfachung)[60], apelando, por assim dizer, a um back to basics num sentido «originalista», no âmbito do qual se pretende recuperar o intencionalismo do autor, o seu original intent, e o funcionalismo da sua obra, o fim a que se destinava. Schmitt refuta as especulações sobre a subjectividade de Shakespeare, o que não significa que prescinda de uma busca das intenções que o levaram a colocar Hamlet em cena. Considera, todavia, que existiu um fragmento da realidade histórica, perceptível para o autor, para os actores, para os seus patronos e para o seu público, que se impôs a todos eles como irrupção do tempo no espaço do drama. Só assim se explica que, sendo Hamlet a mais complexa das obras de Shakespeare, haja sido também, mesmo na época em que foi representada, a mais popular de todas. O público de então percebia Hamlet melhor do que nós; percebia-o naquilo que afirmava explicitamente, mas também naquilo que enunciava cifrada ou elipticamente e até mesmo naquilo que ocultava deliberadamente. 
         Se a mensagem fundamental da interpretação schmittiana apela, em simultâneo, a um esforço de simplificação e a um combate a leituras anacrónicas, desfasadas do tempo e do espaço em que a peça foi concebida e apresentada a público, deve notar-se que a tese de Schmitt não se destaca pela sua novidade. Ela constitui o fulcro da abordagem empreendida, nos anos vinte, por Lilian Winstanley, de quem o juspublicista germânico se considera largamente devedor. Logo na introdução a Hamlet and the Scottish Succession, Lilian Winstanley refere que o propósito do seu estudo é o de «ver a peça como ela foi vista por uma audiência isabelina», colocando-se num ponto de observação susceptível de evitar o anacronismo da nossa «remote posterity» e, bem assim, o peso esmagador da literatura infindável que, ao longo de séculos, foi gerada pela obra de Shakespeare, em torno da qual se elaboraram as mais variadas interpretações e leituras, nem sempre tendo presente um dado tão simples quanto essencial: a peça tinha um auditório determinado e preciso, o da época em que primeiramente foi levada à cena, e era obviamente suposto tal auditório compreender o desenrolar da trama. De acordo com Winstanley, o público londrino necessitava de pontos de contacto ou agrafes mnemónicos com a realidade da época, pelo que em não mais do que cinco minutos se aperceberia de que a Dinamarca que serve de cenário ao drama era a anárquica Escócia daquele tempo, onde catolicismo e protestantismo conviviam de forma frequentemente violenta[61]. As peças de Shakespeare são, assim, colocadas sob a perspectiva do «peculiar point of view of the Elizabethan mind»[62], o que representa uma proposta interpretativa tanto mais sedutora quanto vem acompanhada, ainda que veladamente, de uma pretensão de autenticidade superior a todas as demais leituras de Shakespeare, possuindo ademais a vantagem suplementar da simplicidade e, por assim dizer, de um «anti-intelectualismo» que decerto deve ter agradado a Carl Schmitt[63].
A tese central de Winstanley é condensada em afirmações que sustentam, designadamente, que existem mais semelhanças entre Hamlet e a realidade histórica coeva do que com a gesta nórdica que lhe serviu de inspiração. Desta última, por exemplo, estavam ausentes o Fantasma, Polónio, Ofélia ou Laertes. Todavia, isso servirá, quando muito, para criticara ideia – de resto, pouco veiculada – de que Shakespeare se baseou plenamente na saga nórdica, seguindo pari passu todos os seus desenvolvimentos. Além de a tese de Winstanley pressupor uma recuperação de algum «historicismo» − mais ainda, de um «historicismo» quase hegemónico e totalizante[64] –, ela implica a detecção, nem sempre fácil, de pontos de apoio que permitam estabelecer elos ou pontos de contacto entre a tragédia de Shakespeare, nomeadamente as suas personagens, e uma realidade pretérita de contornos bastante difusos. Ao carecer de uma demonstração «empírica», assente no cotejo peça/realidade, a proposta de Lilian Winstanley vê-se na contingência de apresentar elementos probatórios algo esparsos e nem sempre fundamentados ou concludentes, afirmando, por exemplo, que, da mesma maneira que Polónio é morto na presença de Gertrudes, Rizzio foi morto, segundo se diz, na presença de Maria Stuart[65]; ou sustentando que existe uma flagrante semelhança entre o consumo excessivo de bebidas alcoólicas fortes na corte de Elsinor e na Escócia do século XVI; ou, ainda mais, que Hamlet e James I se caracterizam ambos pelo modo descuidado como se vestiam[66].   
Daqui não decorre que a tese de Lilian Winstanley deva ser liminarmente rejeitada (v.g., na questão central do paralelismo entre a peça de Shakespeare e a questão da sucessão escocesa), tanto mais que o que se procura é evidenciar a sua importância para a interpretação schmittiana de Hamlet, a qual é notória a um ponto tal que leva a concluir pela ausência de originalidade da abordagem de Carl Schmitt nos seus passos fulcrais – o tabu da rainha Gertrudes/Maria e o desvio da figura do vingador. Relativamente a esse último aspecto, note-se, inclusivamente, que a própria expressão que Schmitt utiliza para elaborar o seu conceito se encontra já no texto de Winstanley, onde, na comparação entre Hamlet e a gesta nórdica, se diz «the hero of the Amleth saga never hesitates over his vengeance, but pursues it with undeviating energy»[67], ao passo que o Hamlet de Shakespeare se caracteriza, acima de tudo, pela hesitação («The most peculiar trait in Hamlet’s character is his vacillation»[68]). 
 
7. O desvio da figura do vingador – o «desvio da figura do vingador» reside, em termos muito simples, na circunstância do Hamlet shakespeariano, ao invés do Amleth escandinavo que lhe serviu de fonte e de inspiração, ser, no contexto de um drama de vingança, um personagem dilacerado pela dúvida e, sobretudo, pela melancolia, pelo humor melancholicus, categoria que Benjamin analisou detidamente no seu ensaio sobre o drama barroco alemão[69], e que, segundo parece, era muito acentuada em Le Cinquiesme Liures des Histoires Tragiques, que, baseando-se na saga nórdica e inspirando Hamlet, François de Belleforest escreveu em 1570 e foi dado à estampa em 1576. Quando Bothwell foi acusado da morte de Lorde Darnley, crime de que Maria Stuart terá sido eventualmente cúmplice, testemunhos da época afirmavam que a Rainha dos Escoceses, que no ano anterior estivera à beira da morte por doença, se encontrava gravemente enferma devido a «melancolia». Típico da modernidade e dos seus alvores[70], o tema da melancolia, a que Dürer dedicou uma célebre gravura, dará azo à não menos célebre obra de Burton, The Anatomy of Melancholy (1621). Antes dela, encontramos um famoso retrato de um jovem de dezanove anos, lânguido e melancólico, miniatura pintada circa 1588 por Nicholas Hilliard, considerado o grande retratista do período isabelino, aquele que, segundo diversos historiadores de arte, melhor captou o universo das primeiras peças de Shakespeare. Ora, o jovem melancólico retratado por Hilliard não é outro, supõe-se, que não Robert Devereux, o 2º conde de Essex, favorito de Isabel I que, acusado de tentativa de golpe palaciano contra a rainha, seria condenado por traição à Coroa e decapitado. 


Nicholas Hilliard
Young Man Among Roses,
c. 1588
 

 
         Essex era um dos protectores da companhia teatral de Shakespeare e, regressando a Hamlet, note-se que também o abatimento melancólico terá afectado o príncipe da Dinamarca, levando a que se desviasse da missão que lhe cabia, vingar a morte do pai. É esse o «desvio da figura do vingador» de que fala Carl Schmitt, ainda que a melancolia fosse igualmente um mal que afectava o rei James, a crer nas palavras de Lilian Winstanley[71], pelo que a insanidade do espírito atravessa várias personagens desta trama, fictícias ou reais, de Essex a Hamlet, passando pelo próprio James I. A dado trecho, Hamlet carece mesmo que reapareça em cena o Espectro, para fortalecer em si o desejo de vingança, para «aguçar teu quase embotado intento» (III, 4).
Ao que tudo indicia, nas representações originais era Shakespeare que surgia em palco sob a forma de Espectro, naquele que foi considerado o melhor desempenho da sua carreira de actor[72]. Espectro ou Fantasma que, como nota Schmitt, não figurava na saga nórdica, a qual relatava igualmente uma situação de vingança. Contudo, o Ur-Hamlet de Thomas Kyd, apresentado ao público por volta de 1589 e possivelmente a maior fonte inspiradora de Shakespeare, já introduzia no enredo um espectro ou um fantasma, ponto que Carl Schmitt não refere, como, ao contrário de Lilian Winstanley[73], não refere sequer o nome de Kyd e a sua obra, hoje desaparecida mas extremamente popular na época em que o Bardo escreveu a tragédia do príncipe dinamarquês. A omissão de Carl Schmitt é relevante e grave, porque Thomas Kyd, autor muito famoso no seu tempo, a quem se deve o arquétipo do drama de vingança da época, The Spanish Tragedy, companheiro de Marlowe, caiu em desgraça e foi preso em 1594 sob acusação de ter escrito textos subversivos e heréticos. Na altura, de pouco lhe valeu ter, entre os seus patronos, o conde de Essex, sendo a sua obra Cornelia dedicada à condessa de Essex. Jamais reabilitado após a prisão em Birdwell, onde alegadamente sob tortura terá acusado Marlowe de «não ser religioso, de beber muito e de ser cruel» e, sobretudo de ser ateu e blasfemo, Kyd morreria nesse mesmo ano, com trinta e seis anos de idade. Em resultado das acusações de Kyd, Marlowe seria interrogado pelo Privy Council, ficando em liberdade provisória e sujeito a severas medidas de coacção. Pouco depois, numa rixa, Marlowe seria morto, aos vinte e nove anos de idade, existindo a tese de que terá sido assassinado a mando da Coroa. Ora, o destino de Kyd (e, sem dúvida, de Marlowe) certamente terá sido conhecido por Shakespeare e possivelmente marcou o tom críptico e elíptico das suas obras, com destaque para Hamlet. Ao que parece, a Kyd deve-se não apenas uma peça denominada Hamlet, modelar e popular drama de vingança, como a criação da figura do Espectro e, mais decisivamente, a expressão «ser ou não ser», ilustrativa da ambiguidade do protagonista. Assim, o «tabu da rainha» e o «desvio da figura do vingador», que Schmitt atribui a um circunstancialismo político circunscrito à questão sucessória de Isabel e à ascensão ao trono do rei James, podem ter uma explicação bem menos linear do que aquela que nos é apresentada em Hamlet ou Hécuba.        
 
         8. Alusões e reflexos, irrupções do tempo – no seu ensaio, Schmitt introduz uma distinção curiosa e, essa sim, profundamente original. Reconhece que as obras de Shakespeare contêm milhares de alusões laterais ou incidentais a acontecimentos históricos coevos, não fugindo Hamlet a essa tendência. Daí que uma interpretação adequada da peça exija uma diferenciação entre os diversos graus ou tipos de influência nela presentes. Existem, de acordo com Schmitt: (a) meras alusões, perfeitamente efémeras, compreensíveis para os espectadores da época mas depressa votadas ao esquecimento; (b) verdadeiros reflexos do contexto histórico no interior do drama; (c) por fim, irrupções essenciais do tempo, estruturalmente determinantes.   
         Entre as primeiras, encontramos, por exemplo, na 4ª Cena do IV Acto uma alusão às dunas de Ostende, que os ingleses defenderam heroicamente contra os espanhóis, em 1601. De igual modo, na 2ª Cena do I Acto há uma referência de Laertes à sua vinda à corte para assistir à coroação de Cláudio, a qual consta do Second Quarto, de 1604, mas não do First Quarto, de 1603, e que só será compreensível atendendo à coroação do rei James, ocorrida em Julho de 1603.  
         Muito distintos são os reflexos do contexto histórico. Entre eles, avulta a execução do conde de Essex, a quem a companhia teatral de Shakespeare, os The Lord Chamberlain’s Men, estava profundamente ligada. À relação entre a peça de Shakespeare e o destino de Essex dedica Lilian Winstanley um capítulo inteiro  da sua obra Hamlet and the Scottish Succession, porventura o livro que, como se referiu, mais marcou a interpretação schmittiana da tragédia do príncipe da Dinamarca[74]. Lilian Winstanley, entre outros dados, recorda que, desde Edmond Malone (1741-1812), se detectou uma similitude entre as palavras de Horácio pronunciadas após a morte de Hamlet e a oração de Essex ao subir ao cadafalso. Schmitt, decerto baseando-se em Winstanley, refere exactamente essa semelhança. 
         Por fim, existem as irrupções do tempo. Entre elas, encontramos a participação de Maria Stuart no assassinato de Henrique Stuart, seu marido e pai de James, responsável pelo «tabu da rainha»; e a dramatis personæ do rei James, associada ao «desvio da figura do vingador». Schmitt adverte que, de modo algum, se pode concluir que Hamlet se identificava com James e o seu destino. Não é, contudo, particularmente claro na explicação que oferece para ligar James ao «desvio da figura do vingador». Há uma pergunta que Susan Sontag formulou relativamente a Walter Benjamin – «Como é que um melancólico consegue tornar-se um herói da vontade?»[75] – e a que Carl Schmitt não consegue responder quando se confronta com Hamlet. É que, desde logo, se existe uma «hamletização do herói», uma perda inicial de sentido de acção, no final emerge uma «heroicização de Hamlet», através da sua entrega plena, inflamada até, ao cumprimento de um plano de vingança que deveria culminar na morte do seu adversário maior, Cláudio, homicida e usurpador. Portanto, a noção do «desvio da figura do vingador», mesmo a ser verdadeira, só é válida até um dado momento da peça; mas, sendo assim, o paralelismo com James I é, também ele, parcial. A questão não se colocaria se Schmitt não tivesse proclamado que havia reconstituído a realidade objectiva, chegando ao ponto de qualificar-se como um «desmancha-prazeres» (sic), que destruíra dezenas ou centenas de interpretações de Hamlet. Contudo, se afirma ter reconstituído a story, onde começa e acaba ela? Em que ponto acaba o «desvio da figura do vingador» e a sua convergência com a figura do rei James? No momento em que este assume o trono de Inglaterra?    
         Além dos dados que resultam da hermenêutica textual – ponto que o juspublicista alemão menospreza em excesso, nomeadamente ao não ter em conta o diferente valor das várias edições da obra, quando coloca o First Quarto (Q1) a par do Second Quarto (Q2) e do First Folio[76] –, Schmitt aduz argumentos que, também eles, relevam de uma interpretação de tipo historicista, designadamente a ligação da companhia teatral a que Shakespeare pertencia ao conde de Southampton, católico condenado à morte, e ao infortunado conde de Essex, executado em 1601, no período final do reinado isabelino. Na época, por compreensíveis razões de autodefesa, todas as companhias teatrais procuravam colocar-se sob a alçada de patronos da alta nobreza. Na verdade, eram elevados os riscos que corriam, bastando recordar que, em 1605, pouco depois da subida ao trono de James I, a peça Eastward Hoe, de George Chapman, Ben Johnson e John Marston, por satirizar com o súbito afluxo à corte londrina de escoceses rudes, levaria os seus autores à prisão, sob a ameaça de lhes cortarem as orelhas e o nariz…
A companhia teatral a que Shakespeare teve maior ligação, os The Lord’s Chamberlain’s Men, actuava sob os auspícios de Henry Carey, 1º barão de Hunsdon, mais tarde do seu filho e, por fim, do próprio rei, logo em 1603, o ano em que este ascende ao trono, tornando-se então King’s Men. Além disso, e como se viu, Shakespeare e os seus companheiros tinham uma ligação especial a Essex e a Southampton. A este último tinha Shakespeare dedicado em 1593 aquele que foi o maior êxito editorial de toda a sua carreira, o poema narrativo Venus and Adonis, usando palavras que actualmente nos surpreendem pelo servilismo mas que devem ser lidas no contexto da época:
 
Ilustre Senhor, não sei se vos causarei ofensa ao dedicar-vos estes versos grosseiros, nem se o mundo me censurará por escolher tão poderoso esteio para amparo de tão singelo fardo. Se forem merecedores do vosso agrado, isso será para mim grande honra e prometo que devotarei todos os meus momentos de descanso a exaltar-vos numa obra de maior fôlego. Mas se o primeiro furto do meu engenho se revelar canhestro, será grande a minha mágoa pelo seu tão nobre padrinho…[77]    
 
         Henry Wriothesley, 3º conde de Southampton, era um cortesão particularmente poderoso e influente já que, por morte do pai (um católico que preso três vezes sob acusação de traição), havia sido educado na corte por William Cecil, Lorde Burghley, Secretary of State em duas ocasiões (1550-1553 e 1558-1572) e Lord High Treasurer desde 1572. Tratava-se, pois, de um dos principais, se não o principal, conselheiro de Isabel I durante longos anos. Quando Southmpaton atingiu dezassete anos, Cecil procurou casá-lo com a sua neta, filha de Edward de Vere, 17º conde de Oxford, mas o jovem rejeitou o matrimónio, pelo que teve de desembolsar uma colossal indemnização de 5000 libras. Southampton tinha, ao que parece, inclinações sexuais ambivalentes, mantendo uma amante na corte mas sendo conhecidas histórias do seu envolvimento com soldados, no decurso da campanha da Irlanda. Nicholas Hilliard, o grande retratista da época, que também pintará o conde de Essex, figurou-o com uma longa madeixa de caracóis louros a cair sobre o ombro esquerdo, algo que não era habitual os homens usarem naquele tempo[78]. Em 2002, seria descoberto um outro retrato, que se diz ser de Southampton, em que este surge vestido de mulher ou, pelo menos, como um homem extremamente efeminado. Datado de 1590-1593, o retrato coincide com o período em que Shakespeare buscava afanosamente a protecção do jovem Southampton, que terá conhecido no Verão de 1592, quando o jovem aristocrata perfizera dezoito anos. A ele dedicará outro poema, The Rape of Lucrece (1594), utilizando, uma vez mais, palavras de grande servilismo mas também, porventura, de maior intimidade, a ponto de alguns verem nesta dedicatória o vestígio de uma relação pessoal muito forte entre ambos:
 
                   Ao Mui Ilustre Henry Wriothesley,
                   Conde de Southampton e Barão de Titchfield.
 
Não tem fim o amor que devoto a Vossa Senhoria; daí que este panfleto, sem começo, não seja mais do que uma metade supérflua. É a confiança que tenho na vossa honrada indulgência, e não o valor dos meus versos grosseiros, que asseguram o seu bom acolhimento. O que fiz, pertence-vos; o que hei-de fazer, também é vosso; tudo quanto é meu também vos pertence. Fosse maior o meu mérito, que maior seria o meu dever; entretanto, e tal como é, é inteiramente dedicado a Vossa Senhoria, a quem desejo longa vida repleta de felicidade.
                   O vosso servidor para todo o serviço
                   William Shakespeare [79]   
 
Anos depois, William consegue que ao seu pai seja reconhecido o direito a usar brasão. As armas, curiosamente, serão desenhadas por Richard Burbage, o actor principal da companhia de Shakespeare, cujo extraordinário desempenho em Hamlet ditou em boa medida o estrondoso êxito da peça junto do público londrino e, no fim de contas, a sua centralidade na obra dramatúrgica do Bardo. No brasão, foi colocada uma espada e um falcão prateado, sendo este último uma referência explícita à ligação de Shakespeare com o seu patrono, Southampton. Quanto à dedicatória, data de 1594, ano em que é fundada a The Lord Chamberlain’s Men. Esta será envolvida numa empresa bastante arriscada. Em Fevereiro de 1601, levam à cena Ricardo II, de Shakespeare, uma peça em cujas edições haviam sido suprimidos 160 versos que mais abertamente aludiam à questão-tabu da época: a sucessão de Isabel I. Num episódio histórico que tem muitas afinidades com a play within a play orquestrada por Hamlet na corte de Elsinor, à companhia foi pedido, por uma quantia elevada, que não deixasse de representar as cenas em que o monarca era deposto e assassinado, destinando-se esta apresentação a preparar o desastroso coup d’État que, no dia seguinte, Essex tenta levar a cabo. Para os espectadores da época, um drama histórico não era uma fábula sobre um acontecimento remoto, sendo antes visto como uma representação da realidade. Por isso, levar à cena Ricardo II só podia ser visto como um incitamento à revolta. No entanto, apesar terem sido feitas inquirições, os membros da companhia acabariam por não ser acusados e, mais ainda, representariam perante a rainha, na véspera da execução de Essex. Ao contrário do que seria de esperar, Isabel I encarou a representação de Ricardo II com rara benevolência, dizendo-se mesmo que terá afirmado, numa ou em várias ocasiões: «I am Richard II, know ye not that»?». A rainha apreciava as peças dos The Lord Chamberlain’s Men, o que talvez explique a sua atitude complacente. Segundo se diz, gostara tanto da personagem Falstaff de Henrique V (1599) que terá pedido a Shakespeare que escrevesse uma peça em que o boémio e fanfarrão se apaixonasse, desejo a que o dramaturgo corresponderia em The Merry Wives of Windsor. À parte aquele faux pas, que certamente lhes terá servido de aviso, os membros da The Lord Chamberlain’s Men eram conhecidos pelo seu apego à ordem, sendo avessos a rixas e conflitos, evitando envolvimentos que pusessem pôr em causa a segurança do seu negócio. Em 1602, Christopher Beeston, pertencente à companhia, foi acusado do crime de violação; sintomaticamente, apesar de o processo ter sido arquivado por falta de provas, em Agosto desse mesmo ano Beeston abandona os The Lord Chamberlain’s Men e ingressa nos Worcester’s Men. The Lord Chamberlain’s Men foi a companhia a que Shakespeare mais esteve ligado durante a sua carreira; aliás, no ambiente teatral da época, não há registo de uma ligação tão duradoura de um actor e autor (e também sócio) a uma única companhia. Resta saber se a aversão a querelas por parte dos The Lord Chamberlain’s Men era uma qualidade desta companhia que atraiu Shakespeare ou se foi ele, um homem sensato e dotado de «um espírito aguçado para o negócio»[80], que lhe imprimiu essa característica de aversão ao risco.    
 Aparentemente, a companhia de Shakespeare havia tomado o partido de James na questão da sucessão de Isabel I – um verdadeiro «tabu da rainha», sobre o qual era interdito falar naquela época – e a repressão que a monarca inflige ao seu antigo amante, o conde de Essex, e ao conde de Southampton, condenado ainda que não executado, obriga a que o seu grupo teatral, prudentemente, abandone Londres e se desloque em actuações pela província, o que, aliás, sucedeu várias vezes ao longo da vida de Shakespeare, nomeadamente quando os teatros da capital eram encerrados por razões sanitárias, como forma de combater o alastramento de pestes e epidemias. Aliás, a companhia de que Hamlet se servirá para desmascarar o seu tio, denominada Os Comediantes da Cidade[81], encontrava-se, também ela, proibida de representar, como Rosencrantz sublinha. «Que sorte os levou para tais viagens? Ficarem no seu teatro melhor lhes conviria quer quanto a honras quer quanto a proventos», observa Hamlet. Ao que Rosencrantz responde: «Julgo que o azar foi terem-lhe proibido as representações fechando-lhes o teatro devido à revolução» (II, 2).   
Resolvida a questão da sucessão a favor de James, este indultará Southampton (a quem será concedida a incumbência e a honra de transportar a espada cerimonial do reino), devolverá à viúva de Essex os bens que lhe haviam sido confiscados, restaurará o condado de Essex, e permitirá à companhia de Shakespeare regressar a Londres e ter o privilégio de representar perante a corte, o que acontecerá nada menos do que 187 vezes, mais do que todas as outras companhias juntas (no reinado de Isabel I, actuavam na corte a uma média de três vezes por ano; nos primeiros dez anos do reinado de James I, esse número aumentaria para dez vezes por ano). Apresentada perante o próprio monarca, Macbeth corresponderá ao gosto de James pela bruxaria e pelo esoterismo, não deixando de conter referências bem mais terrenas à Gunpowder Plot, que o público londrino da época entendia na perfeição. Shakespeare e outros actores serão nomeados ajudantes de câmara, a companhia ficará sob protecção do monarca sob o nome King’s Men, que a remuneraria generosamente, e receberá uma cruz do Lord Chamberlain (além do privilégio de os seus membros se engalanarem com quatro metros de tecido escarlate fornecido pela Coroa). Tudo isto, note-se, ocorre no próprio ano da subida ao trono de James I e constitui uma reabilitação extremamente expressiva, ainda que devamos ter presente um dado muito importante, que Schmitt omite: como se disse, em vida de Isabel I, os membros da companhia não haviam sido condenados – facto singularíssimo naquele tempo – e tinham mesmo representado perante a rainha nas vésperas da execução de Essex. Ainda assim, para Carl Schmitt, todos aqueles factos são de tal forma objectivos e esmagadores no seu poder explicativo da realidade que se impõem a quaisquer tentativas de interpretação psicológica ou à própria liberdade criativa do autor; como, por outro lado, a peça é incapaz de retratar, na sua plenitude, uma realidade histórica que a transcendia e que remetia para o meta-teatro[82]. 
         Trata-se de uma simplificação algo grosseira da conclusão alcançada por Schmitt e que não faz justiça ao ensaio da sua autoria. É que, na verdade, muito mais do que a identificação de Gertrudes com Maria Stuart e da questão da subida ao trono do seu filho, os pontos mais interessantes de Hamlet ou Hécuba situam-se noutros lugares ou, melhor dizendo, nas considerações que Schmitt faz para fundamentar uma aproximação que pretende primar pela lhaneza, pela simplicidade, mas também pela objectividade e pelo despojamento relativamente às interpretações, v.g. de natureza psicológica, que contribuíram (ainda mais) para tornar Hamlet uma obra impenetrável, mesmo tendo em conta a sua impenetrabilidade originária, de que Schmitt se dá conta, nomeadamente quanto cita uma conhecida afirmação de T. S. Eliot («Shakespeare é tão grande que possivelmente nunca conseguiremos fazer-lhe justiça. Mas, se não podemos fazer-lhe justiça, deveremos, pelo menos, mudar de tempos a tempos os métodos com praticamos a injustiça») e, sobretudo, quando refere uma frase de Erich Franzen: «De todos os estudiosos de Hamlet, aquele que mais se aproximou da verdade foi Shakespeare».     
 
         9. Hécuba, lágrimas de sangue – para compreender a aproximação de Carl Schmitt à verdade de Shakespeare, talvez devêssemos ter começado pelo óbvio: o título, Hamlet ou Hécuba. A alusão à rainha de Tróia, constante da 2ª Cena do II Acto, e que Schmitt transcreve logo na abertura do livro, seguindo o texto do quarto de 1603 [Q1]. Nas versões, mais fiáveis, do quarto de 1604 [Q2] e do First Folio, de 1623:
Por Hécuba!
Que lhe é Hécuba, ou ele a ela,
Que deva chorar por ela? [83]
        
É interessante esta evocação de Hécuba, não só pela sua presença noutras peças de Shakespeare (Coriolano, I, 3; Cymbeline, IV, 2) e no seu poema The Rape of Lucrece (1594), dedicado ao conde de Southampton, como pelo facto de a mulher de Príamo e rainha de Tróia, mãe de dezanove filhos, transformada em escrava (e, noutras versões, numa cadela de olhos de fogo que tentaria morder o povo que a apedrejara), ser uma figura trágica e enlouquecida pela morte de seus filhos Policena e Polidoro, e que percorre a cultura ocidental surgindo em diversas passagens da Ilíada de Homero – com destaque para aquela em que chora a morte de Heitor[84] –, servindo de tema a duas peças de Eurípides (As Mulheres de Tróia e Hécuba), aparecendo nas Metamorfoses de Ovídio («Ainda há pouco a maior de todas, poderosa por tantos genros e filhos… eis-me agora exilada, despojada.»), no Inferno de Dante («Ecuba trista, misera e cativa» – XXX: 13-20)[85], no prefácio à 1ª edição da Crítica da Razão Pura (1781), de Kant[86], e, mais recentemente, no último livro publicado em vida por Ronald Dworkin, Justiça para Ouriços[87]. 
Quando aparece em Elsinor a companhia que irá representar a crucial play within a play do III Acto, Hamlet pede-lhes que recitem um diálogo entre Eneias e Dido em que se fala da morte de Príamo e, enquanto estes o fazem, ordena-lhes que prossigam até à referência a Hécuba («Continua até onde se fala de Hécuba.» – II, 2). Hécuba é convocada para o interior do drama por determinação expressa de Hamlet. Depois de os actores saírem, ocorre o solilóquio do príncipe da Dinamarca em que este se interroga sobre o que levaria o actor a chorar por Hécuba, antecipando a questão das lágrimas de palco ou lágrimas de actor que estará presente, muitos anos depois, no escrito de Diderot Paradoxe sur le comédien (1770-1778) e na sua distinção entre lágrimas verdadeiras («trágicas») e lágrimas cénicas. Hamlet compara as lágrimas de actor com as suas ou, melhor, interroga-se sobre como se comportaria em palco um actor que tivesse que chorar a sua dor, a dor de Hamlet, filho de um pai assassinado e de uma mãe que casara com o novo rei, seu tio, escassos dois meses depois do homicídio, tudo sugerindo, ademais, ter sido adúltera. «Que faria ele, / Tivera ele a deixa e motivo de exaltação / Que tenho eu? Afogava o palco em lágrimas» (II, 2)[88].
         As lágrimas de Hamlet – «lágrimas, mas de sangue», como as descreve a sua mãe (III, 2) – eram irrepresentáveis. A essência da dor (ou a dor essencial, se preferirmos) encontra-se na sua irrepresentabilidade. Dela só pode existir um pálido reflexo especular, não mais do que isso, ou seja, apenas um «reflexo», uma «emanação» ou um «espelhamento» da realidade material, para utilizar noções – ou, melhor, expressões – que Schmitt iria articular, por exemplo, em Catolicismo Romano e Forma Política (1925)[89]. As lágrimas de Hécuba, que choraram a morte de Heitor, não eram as lágrimas por Hécuba, choradas no lamento de Príamo pelos actores em palco. Entramos, então, no domínio da diferença entre realidade e formas de representação[90], algo que, no que respeita à realidade política, ocupa um lugar central no pensamento schmittiano, quer na Teologia Política, de 1922, quer na Teoria da Constituição, de 1928. 
A par das lágrimas de Hamlet, note-se que também Laertes chora – e chora lágrimas de sangue, não de palco. Primeiro, pelo seu pai, Polónio, morto por Hamlet («Ó lágrimas, / Vós, sete vezes salgadas, queimam-me estes olhos / Para que mais não possa ver nem sentir!» – IV, 5). Depois, ao saber do afogamento da sua irmã («Minhas lágrimas susterei, mas…» – IV, 7). Laertes configura-se, em certa medida, como um «duplo» de Hamlet[91], já que ambos tiveram os pais assassinados e, note-se, a ambos o povo queria como reis. Laertes, quando regressa de França, é aclamado como monarca e Hamlet era amado pelos dinamarqueses. Partilhavam a destreza no manejo da espada e, ninguém sai vencedor no duelo que travam; saem, isso sim, irmanado no mesmo fatal destino. A dying voice de Laertes (se assim lhe podemos chamar), à semelhança da de Hamlet, revela honra e dignidade na hora da morte. Por isso, o tema das lágrimas de Laertes não é irrelevante no contexto da tragédia, já que tanto ele como Hamlet tinham motivos para chorar, não lágrimas por Hécuba mas lágrimas de verdadeira dor. 
         Carl Schmitt, estando ciente das divergências profundas entre os dois quartos, de 1603 e de 1604, e do First Folio, de 1623, irá, neste trecho em que se cita Hécuba, preferir o First Quarto, o menos valorizado quanto à sua fiabilidade textual (o «bad» quarto), mas o mais expressivo para a reconstituição da dor do jovem Hamlet. No fundo, para a reconstituição da sua situação concreta, da story do príncipe dinamarquês[92]. Na verdade, há um passo constante do First Quarto que não surge nas edições subsequentes e Schmitt tê-lo-á utilizado, de forma algo manipulatória, pela sua particular eloquência ou expressividade dramática, deixando de lado considerações quanto à sua fidedignidade literária, uma opção bastante criticável se tivermos presente as inexactidões desconcertantes dos «maus» quartos, que afectam sobremaneira Hamlet, além de discrepâncias textuais profundíssimas: o quarto de 1603 tem 2200 versos, o de 1604 tem 3800 versos e o Folio de 1623 tem 3570 versos[93]. Várias vezes, Carl Schmitt opta pela versão mais próxima da representação teatral, mas menos fiável. Fá-lo, em particular, na cena em que Hamlet, na comparação que faz com o actor, pergunta: «Que faria se tivesse perdido / aquilo que perdi eu? / se o seu pai tivesse sido assassinado / e uma coroa lhe tivesse sido usurpada?».    
         Note-se que neste trecho o drama de sucessão é colocado no mesmo plano do drama de vingança, já que existe uma referência explícita à usurpação da coroa («e uma coroa lhe tivesse sido usurpada?»)[94]. O ponto é importante porque Schmitt dedica o Excurso I do seu livro a discutir o modo como o problema sucessório está presente no drama de Shakespeare. No fundo, a explorar um tema que lhe era particularmente caro, o da legitimidade de Hamlet enquanto herdeiro do trono da Dinamarca, por sucessão do seu pai e não através da «concessão» que lhe é feita pelo seu tio, Cláudio[95] (por curiosidade, em The Tempest encontra-se também um caso de fratricídio e de afastamento de um governante legítimo). O Excurso I contém as passagens de todo o livro em que a marca do jurista – ou, mais precisamente, do constitucionalista – se faz sentir com mais intensidade. Para Schmitt – e como, de resto, para os dois autores que segue mais de perto, Lilian Winstanley e John Dover Wilson –, a questão é de extrema relevância para a compreensão do sentido objectivo da tragédia de Elsinor, verdadeira «obsessão» da abordagem schmittiana. Se Hamlet fosse o legítimo sucessor de seu pai, Cláudio não teria sido apenas um assassino, um regicida, mas também um usurpador, que privara o príncipe, em simultâneo, do pai e do trono. As questões encontram-se, em larga medida, interligadas, pelo que a tensão drama de vingança vs. drama de sucessão não é nítida nem talvez sequer absolutamente decisiva. Aliás, é sintomático que Cláudio, no preciso momento em que designa Hamlet seu primeiro herdeiro, proceda, logo de seguida, a uma manifestação de devoção paternal pelo jovem príncipe, que reitera cinicamente quando dele se despede, indo o sobrinho a caminho de Inglaterra, onde deveria ser morto por ordem do tio arvorado em pai (IV, 3). Em todo o caso, e tendo em conta o que atrás se referiu sobre ascensão ao trono do rei James, é no tópico da sucessão, muito mais do que no da vingança, que a irrupção do tempo se faz sentir com maior acuidade, ponto que Schmitt não explora, o que é tanto mais curioso ou singular quanto tal constituiria um poderosíssimo argumento a favor da sua proposta interpretativa em torno do «desvio da figura do vingador».    
         Sem entrar nas digressões schmittianas sobre o direito sucessório dos reis na Dinamarca e na Inglaterra da época, ou seja, atendo-nos ao drama de Shakespeare, é possível concluir que, na verdade, a um drama de vingança se junta um drama de sucessão (aliás, como já notou Frank Kermode, um quarto de todas as peças de Shakespeare gira em torno de problemas de sucessão ao trono)[96]. Hamlet é um príncipe despojado do trono, Cláudio é um monarca usurpador. Tal facto é evidente logo no trecho acima citado do First Quarto, onde existe uma referência clara à usurpação da coroa, e que, estranhamente, Schmitt não invoca em seu favor. É certo que cita diversas passagens que exprimem a noção de que Hamlet não se batia apenas para vingar a morte do pai mas igualmente para reivindicar o trono que legitimamente lhe pertencia. Contudo, ao invés dessas passagens, Schmitt prefere deter-se naquela que juridicamente é mais densa. Conduzindo-nos até ao final da peça, recorda que a sucessão se processava através da manifestação da vontade do soberano moribundo, a dying voice, a que se seguiria uma election por um conselho (talvez melhor: na election deveria ter-se em conta a dying voice do monarca falecido). Considerando-se legítimo herdeiro da coroa da Dinamarca, na parte final do drama (V Acto, II Cena), Hamlet, ferido de morte por Laertes, designa Fortimbras, sobrinho do rei da Noruega, como sucessor ou, melhor dizendo, através da sua dying voice prefigura a election subsequente: «Mas profetizo que Fortimbras há-de ser eleito / E sobre ele recai meu voto moribundo…»[97].      A designação (legítima?) de Fortimbras como sucessor implicaria, ao que tudo indica, algo que, curiosamente, Schmitt, um teórico da soberania, não explora: o domínio da Noruega sobre a Dinamarca. E, mais do que isso, uma certa «traição» de Hamlet à memória do seu pai, surgida sob a forma do Espectro ou do Fantasma. É que, como Horácio recorda a Marcelo e Bernardo na 1ª Cena do I Acto, na esplanada do Castelo de Elsinor, Hamlet-pai havia morto Fortimbras-pai, rei da Noruega[98], derrotando o «exército dos trenós» e conquistando as terras que, na agonia da morte, Hamlet-filho concederá a Fortimbras-filho. A Fortimbras, porventura também investido, como Hamlet, nas vestes de um vingador da morte de seu pai.     
         Em síntese, o Excurso I de Hamlet ou Hécuba – ou, melhor dizendo, as considerações feitas sobre as últimas palavras de Hamlet – adquire escasso significado jurídico-político, ao contrário do que a leitura de Schmitt parece pressupor. A questão do drama de sucessão, de certo modo, já se encontrava resolvida, e resolvida num sentido afirmativo, noutros momentos da tragédia. Mesmo não querendo recorrer ao texto de 1603, quer no Second Quarto de 1604, quer no First Folio abundam as alusões à questão sucessória. Além da já citada 2ª Cena do I Acto, em que Cláudio designa Hamlet seu primeiro herdeiro, e de outras referidas por Schmitt, poderá mencionar-se o diálogo de Hamlet com a sua mãe, na 2ª Cena do III Acto, em que aquele se refere asperamente a Cláudio nos seguintes termos:
Um rei palhaço,
Gatuno do Reino e da Justiça,
Reles larápio que vai à prateleira e mete
No bolso a preciosa coroa real?!    
 
 
         10. O tabu da rainha – à apropriação da coroa está indissociavelmente ligada a apropriação da viúva do rei. É em torno da participação desta no assassinato do monarca que surge o «tabu da rainha», a dúvida em torno da culpabilidade de Gerturdes que atravessa todo o drama. É igualmente controversa a questão de saber se participara na morte do marido ou se fora ela própria a assassina. Sendo esse o «tabu da rainha», que Shakespeare quis deliberadamente manter sem resposta, de pouco adianta avançar argumentos que levem a concluir num sentido ou noutro. Alguns insistem, todavia, em defender a inocência da rainha ou, pelo contrário, em sustentar a sua culpabilidade, avançando leituras que, não raras vezes, são afectadas por pré-compreensões extrínsecas ao texto ou às intenções do autor. Em 1957, um ano depois de Schmitt dar à estampa o seu livro, Carolyn Heilbrun, professora na Universidade de Columbia e autora de diversas novelas policiais, publicaria o ensaio «The Character of Hamlet’s Mother», argumentando que, ao longo dos séculos, os homens que procuraram interpretar a peça nunca tinham conseguido captar a essência do carácter de Gertrudes, a qual não só não matara nem participara no homicídio do marido como nem sequer era adúltera[99], assim inaugurando a corrente de interpretação feminista de Hamlet, que mereceu observações mordazes por parte de autores como Harold Bloom[100]. Schmitt refere passagens da obra que apontam no sentido da culpabilidade e outras no sentido da inocência. Recorda o que se diz na play within a play da 2ª Cena do III Acto, quando a rainha/actriz da peça afirma: «Num segundo marido se me perca o mundo; / Quem o primeiro mate case com o segundo». E, mais explicitamente, «As razões para eu voltar a casar / Seriam vil interesse e não o amor. Duas vezes o mataria sem respeito / Se um segundo esposo me beijasse no leito!» [itálico acrescentado].
Numa das cenas mais cruciais do drama, o diálogo nocturno entre Hamlet e Gertrudes de que resulta a morte de Polónio, o filho acusa abertamente a mãe do homicídio. Após a morte de Polónio, Gertrudes exclama: «Que acto brutal e sanguinário!». Hamlet responde: «Quase tão sanguinário como o da má mãezinha / Que mata um rei e casa com o irmão…». A rainha replica, repondo a dúvida: «Que mata um rei?». Hamlet insiste: «Sim, minha senhora, foi o que eu disse». De novo, a mãe instaura a dúvida, proclamando a inocência: «Que fiz eu para que ouses flagelar-me / Gritando contra mim como um possesso?». Esta interrogação de Gertudes restaura o tabu e mantém a dúvida sobre a sua culpabilidade. E, de modo algum, ao contrário do que sustenta Carl Schmitt, se poderá ver na exortação do Espectro a Hamlet para que mate o tio mas poupe a vida da mãe, constante da 5ª Cena do I Acto[101] e na 4ª Cena do III Acto, um indício possível da inocência da rainha. O rei morto pode ter agido por amor à sua esposa, sendo a determinação para que a sua vida fosse poupada não um atestado da sua inocência mas um gesto de perdão[102], ditado pelo imenso afecto que por ela nutria. Aliás, há um dado curioso: o rei foi morto enquanto dormia, pelo que, ele próprio, não pôde ver a mão que o assassinara com o mortífero veneno. O Espectro, no entanto, sabe que foi Cláudio que matou o rei e di-lo a Hamlet na 5ª Cena do I Acto. No entanto, se a autoria material do homicídio está resolvida, continua a subsistir a dúvida sobre a cumplicidade e a culpabilidade de Gertrudes, cujo comportamento, de resto, o Espectro não hesita em censurar com palavras cruéis e amargas. Um ponto importante, decisivo: Gertrudes não morre devido a uma acção intencional de ninguém, nem de Cláudio, nem de Hamlet, que obedeceu à ordem do Espectro; a rainha morre, no final da peça, por um lapso ou acaso do destino, que a leva a beber da taça envenenada.       
         Carl Schmitt conhece as fontes de Hamlet e, entre elas, destaca a saga nórdica passada a escrito por Saxus Gramamaticus (c. 1150-1220) na Gesta Danorum (ou Danorum Regum Heroumque Historiae), em que filho e mãe se unem para matar o assassino (filho que ostenta o nome de Hamlet, Amleth ou Amlóði, o equivalente a «louco»)[103]. Não é isso que ocorrerá na peça de Shakespeare, como não se tomará o caminho de Orestes na tragédia de Ésquilo, que matou o assassino de Agamemnon, Egisto, e a própria mãe, Clitemenestra. Talvez Hamlet tenha sido impedido de matar a mãe devido à determinação do Espectro de poupar a vida de Gertrudes. Ou talvez também Hamlet partilhasse o «tabu da rainha», não tendo uma convicção segura sobre a sua culpabilidade. Ou talvez ainda, na lógica de um drama de vingança levado às derradeiras consequências[104], o pior castigo reservado a Gertrudes foi ter sobrevivido, quando todos à sua volta caíram: o rei e seu primeiro marido, Polónio, Ofélia, o marido Cláudio, Hamlet, Laertes e, com eles, a própria Dinamarca. A todos Gertrudes sobreviveria, ainda que dilacerada pelo peso da culpa, da culpa trágica[105]. Uma culpa que o Espectro anuncia, logo no I Acto, ao determinar a Hamlet que não se vingue de Gertrudes: «Poupa tua mãe; deixa que o Céu / E os espinhos que no peito alberga / A firam e destrocem» (I, 5). Sentimento que se desvenda no diálogo nocturno que Gertrudes mantém com o filho, na 4ª Cena do III Acto. Interpelada reiteradamente por Hamlet, a rainha suplica: «Cala-te! Oh cala-te, Hamlet! / Teus olhos vão-me ao fundo da alma / E lá eu própria vejo nódoas tão negras / que nunca mais perderão a cor!…». Mais adiante, «Oh! Cala-te! / Tuas palavras são punhais para os meus ouvidos. / Mais não! Tem piedade, Hamlet!». E ainda: «Oh Hamlet, parte-se-me em dois o coração!...», a que o filho responde, com dureza: «Deitai fora então a pior metade». A autoconfiança de Hamlet, que chega a anunciar ameaçadoramente que «o pior ainda está para vir», decorre, em boa medida, da aparição do Espectro, o qual surge no quarto da rainha e lhe incute ânimo vingativo, do mesmo passo que lhe ordena que explore e aprofunde a dilaceração interior em que Gertrudes vivia[106].
         O «tabu da rainha» tem, para Schmitt, correspondência com a realidade histórica. O marido de Maria Stuart, Henry Lord Darnley, pai de James, seria assassinado pelo conde de Bothwell, em Fevereiro de 1566. Em Maio desse mesmo ano, Maria Stuart casaria com o conde de Bothwell, o que suscitou uma imensa controvérsia, tendo a questão da cumplicidade de Maria na morte do marido sido amplamente discutida. Schmitt fala do «enorme escândalo» então gerado, com os católicos a acreditarem nas juras de inocência feitas por Maria Stuart e a Escócia protestante, a Inglaterra e os próximos de Isabel I a acreditarem na sua cumplicidade no homicídio do primeiro marido.
         Simplesmente, era muito arriscado reabrir essa questão numa altura em que se discutia em surdina a sucessão de Isabel I, ou seja, mesmo após terem decorrido quase quatro décadas sobre o crime perpetrado pelo conde Bothwell. Shakespeare, sobre o qual ainda hoje não há certezas sequer sobre se era católico ou protestante, aborda o tema mas evita tomar partido nessa querela que readquiriria actualidade ante a iminência da morte de Isabel I e a abertura do problema da sua sucessão. Qual o motivo, então, para Shakespeare correr o risco de colocar em cena uma rainha que casa meses depois com o assassino do seu marido? Schmitt não formula essa pergunta e, por conseguinte, não oferece uma resposta. De qualquer modo, tudo sugere que, no quadro da interpretação schmittiana, a resposta só poderia ser uma: tal ia ao encontro dos interesses de Essex e de Southampton – e também de James – no jogo da sucessão isabelina. Hamlet, a tragédia do jogo, seria, ela própria, uma peça que serviu de peça num jogo mais vasto. Daí o subtítulo deste texto, em que se inverteram as coordenadas linguísticas que servem de subtítulo ao ensaio de Schmitt; se este falava da «irrupção do tempo no drama do jogo» (Der Einbruch der Zeit in Das Spiel), pode igualmente falar-se, talvez até com mais propriedade, numa «irrupção do jogo no drama do tempo». É o carácter dramático daquele tempo que impõe o jogo, o Spiel, como única forma de acção política no âmbito daquilo a que Elias chamaria «sociedade de corte»[107].
Filho de Maria Stuart, James, apesar de manter a sua posição no jogo sucessório, nunca renegou a sua mãe e, no seu livro Basilikon Doron (1599) exortou mesmo o seu filho a honrar a memória da avó. Desse modo, ao abordar o tema da rainha que casa com o assassino do marido, Shakespeare não poderia pronunciar-se abertamente pela culpabilidade da monarca, sob pena de alienar a simpatia ou o apoio de James. E, mais decisivamente do que isso, Hamlet não é uma cópia perfeita de James, questão que Carl Schmitt deixa muito clara quando aborda o «desvio da figura do vingador»: «Não digo que o Hamlet de Shakespeare seja uma réplica do rei James, o que seria desastroso do ponto de vista artístico e impossível do ponto de vista político». Daí a importância da distinção schmittiana entre alusões, reflexos e irrupções do tempo, um procedimento que, até certo ponto, lhe permite ultrapassar o non sequitur a que chegara Lilian Winstanley, que afirma, a dado passo: «não considero que Hamlet seja apenas um retrato de James I; parece-me que contém também muito de Essex, do Essex no seu último ano de vida. […]; entendo que Hamlet não é o retrato de ninguém»[108]. 
 
11. Representação e jogo, ou o mundo como teatro – havia, porém, outro senhor a quem Shakespeare tinha de servir e satisfazer: o público londrino que acorria a ver as suas peças; esta, em particular, terá sido representada pela primeira vez no Globe pela sua companhia, The Lord Chamberlain’s Men, em 1600. A Inglaterra protestante – Londres, em particular – estava firmemente convicta da culpabilidade de Maria Stuart. Assim, actuando no fio da navalha, Shakespeare terá encontrado, através do «tabu da rainha», o expediente que lhe assegurou uma representação aproximada da realidade. Representação imperfeita, decerto, eivada de máscaras e de disfarces, mas a única possível no contexto daquilo que Schmitt designa por «realidade histórica temível».         
A indecisão ou double bind (Gregory Bateson) de Hamlet faz parte do Spiel. Talvez não do jogo de Hamlet entre os cortesãos de Elsinor, mas do jogo que Shakespeare joga com o público que assistia à peça, à play. Até do ponto de vista da expressão corporal, existiam regras para exprimir a indecisão do príncipe; assim, no famoso solilóquio de Hamlet onde são proferidas as palavras to be or not to be, o actor deveria começar por estender ao mão dizer ao dizer «ser» e depois a esquerda quando pronunciava «ou não ser», unindo-as em seguida para concluir: «eis a questão». Quando evoca Hécuba, Hamlet coloca-se na posição hipotética, algo ambígua, do actor que tivesse de o representar a ele. É Hamlet-actor de si próprio, num mundo que é um palco, para utilizar a famosa expressão «All the world’s a stage», constante da comédia pastoral As You Like It, escrita por Shakespeare em 1599 ou 1600. Curiosamente, as duas rainhas inimigas, Isabel I e Maria Stuart, haviam, cada qual à sua maneira, reconhecido o carácter simbólico ou representativo do seu mandato, afirmando a primeira: «Nós, príncipes, é como se estivéssemos em palco à vista do mundo». Por sua vez, a Rainha dos Escoceses dissera que «o teatro do mundo é mais amplo que o reino de Inglaterra». Tratava-se, como refere Peter Ackroyd[109], de um lugar-comum do período final do Renascimento, não de um dito particularmente original de William Shakespeare. Schmitt considera que se trata de um vislumbre do surgimento do Barroco[110], enquanto um seu comentador, Carlo Galli, pretende situar a questão no tempo suspenso do Maneirismo[111]. O juspublicista germânico sublinha que, nos alvores do século XVII, a totalidade do mundo havia sido convertida em palco, como Theatrum Mundi, Theatrum Naturæ, Theatrum Europæum, Theatrum Belli, Theatrum Fori. A teatralidade do agir e o sentimento cénico marcavam sobremaneira os que viviam no perímetro do poder[112]. É sintomático que, nos conselhos que dá ao filho, James I, além de o advertir para honrar a memória da sua infortunada avó, lhe recorde que nunca se esquecesse que, enquanto rei, estaria sempre em cena, com todos os olhares centrados na sua figura. Isabel I, Maria Stuart e James I, todos tinham plena consciência da teatralização inerente à dimensão representativa e performativa do exercício do poder régio. Não obstante ser esse o domínio em que os elementos de cenarização e de encenação mais sobressaíam, toda a sociedade entendia a acção humana como teatral. «O mundo é um actor», rezava o lema do Globe. No mundo-feito-palco, que haveria a fazer? Representar, obviamente. To play, jogar com os interlocutores. Mas, de algum modo, também Carl Schmitt acaba por «jogar» com o seu auditório, designadamente quando recorre à versão de Hamlet que, sendo considerada mais imperfeita ou duvidosa do ponto de vista da fidedignidade (Q1, ou o «bad» quarto de 1603), é aquela que, no entender do autor de Hamlet ou Hécuba, melhor exprime a relação do príncipe da Dinamarca com o poder.   
         Mas o ponto mais relevante, no quadro da interpretação schmitiana, prende-se com a instauração de um dispositivo especular – Hamlet reflecte-se no actor que, por sua vez, reflecte Hamlet – e, sobretudo, a introdução de um elemento lúdico (Spiel) num contexto dramático a que convencionalmente é alheio. Schmitt distingue, como vimos, meros reflexos, por um lado, e verdadeiras irrupções. O seu ensaio, porém, evoca diversas vezes a questão da representação, a ponto de chamar para o título a alusão de Hamlet a Hécuba que confronta, de um lado, as lágrimas derramadas por Hécuba e, do outro, aquelas com que o príncipe inundaria o palco se acaso tivesse de representar a sua dor. A representação teatral – e talvez também a representação política –, configuram-se, neste contexto, como meros reflexos da realidade e é justamente por isso que, quando existe uma irrupção do tempo no jogo dramático, a liberdade criativa do autor e dos actores tenha de sofrer uma compressão. Aí reside o sentido profundo da irrupção do tempo: ela é, em si mesma, tão intensa e violenta («dramática», no fundo) que o espaço da representação acaba por ser limitado. A realidade impõe-se ao criador: Shakespeare não escreveu a peça que queria, mas aquela que as circunstâncias do tempo lhe permitiam. Teve de deixar em aberto a questão da culpa de Gertrudes, em torno dela construindo o «tabu da rainha», como teve de introduzir o «desvio da figura do vingador» por imposição do problema sucessório de Isabel e da ascensão ao trono de James. O espelho é frequentemente usado como metáfora da realidade representada, não da realidade real.  Mas, no jogo dos espelhos, que Orson Welles apresentaria de forma magistral em A Dama de Xangai (1947), aqueles também funcionam como instrumentos de apresentação da realidade, ainda que em termos reflexos ou, por assim dizer, «especulares». Em Ricardo II, só quando se olha ao espelho o rei se confronta com a sua condição de monarca deposto. Aqui, em Hamlet, o príncipe confronta a mãe com um espelho (metafórico, decerto) para que a rainha possa nele ver-se no mais íntimo do seu ser: «Não me irei sem mostrar-vos um espelho / Onde podeis ver-vos por dentro.» (III, 4).
O rosto é um espelho da alma, ou poderá não sê-lo para os que vivem num ambiente dominado pela dissimulação e pela hipocrisia. Por isso Cláudio pergunta a Laertes se verdadeiramente amava o seu pai ou se, pelo contrário, seria um «triste simulado», um «Rosto que não espelha o coração?» (IV, 7). Simplesmente, a representação e o jogo, impostos pela dramática necessidade de viver (e sobreviver) num mundo-feito-teatro, obrigam a que, frequentemente, o rosto não seja o espelho do coração. Se tal sucede, de um modo geral, na apresentação do eu na vida de todos os dias, para usar o conhecido conceito de Erving Goffman[113], o jogo do simulacro torna-se mais necessário num ambiente palaciano – ou, mais latamente, político –, para mais quando nele se desenrola e precipita um drama de vingança que tem por objecto a própria figura do monarca. O domínio do poder é aquele em que, por natureza, as máscaras, as personæ, se interpõem entre o rosto do coração e o rosto representado. Homem d’un só parecer / D’un só rosto e d’ua fé, / D’antes quebrar que volver, / Outra cousa pode ser, / Mas de corte homem não é, escreveu Sá de Miranda na carta «A El-rei D. João»[114]. Esta multiplicidade dos rostos e das máscaras é uma imposição irrecusável do viver cortesão, como assegura Sá de Miranda (por natureza, um homem de corte não pode ter um só rosto). Daí que, para Hamlet, viver na Dinamarca seja «uma prisão». Prisão que impõe uma cisão no eu, o seu estilhaçamento numa pluralidade de rostos. Para representar e simular a loucura, Hamlet teve de se dividir. Di-lo-á a Cláudio, num diálogo que é, ele próprio, pleno de hipocrisia e inverdade. Hamlet, regressado da viagem a Inglaterra, pede perdão a seu tio ou, talvez mais precisamente, a Laertes. E justifica-se: «Terá sido Hamlet que ofendeu Laertes / – Nunca o Hamlet verdadeiro / Sim o fora de si, o tresloucado. / Não tem sido o Hamlet consciente / Não fui realmente eu e portanto nego. / Quem então? Sua loucura e nada mais.» (V, 2). 
         Não por acaso, o subtítulo do livro é «A irrupção do tempo no jogo do drama». A dado trecho, Hamlet refere-se à inautenticidade do jogo, comparando os votos nupciais de sua mãe às juras falsas dos jogadores de dados (III, 4). Prosseguindo o crudelíssimo discurso que pronuncia perante Gertrudes, o filho pergunta-lhe porque trocara seu pai, «a alta montanha», pelo tio, um «lamaçal», que demónio a fizera entrar «neste infernal jogo de cabra-cega» (III, 4).
         Schmitt, que conheceu a obra de Johan Huizinga Homo Ludens (1938)[115], apercebe-se das potencialidades explicativas do elemento lúdico para compreender o processo de instauração do Estado moderno. A temática do jogo, sublinhe-se, será explorada por autores que, situados num quadrante ideológico muito distinto, desenvolveram a Teologia Política[116], com destaque para o livro de Jürgen Moltmann traduzido entre nós com o título A Alegria de Viver[117]. Sublinhe-se que Moltmann – como, de resto, outros «teólogos políticos», com destaque para Johann Baptist Metz ou Dorothee Sölle – conhecia a obra de Schmitt, Teologia Política I (1922) e este, por seu turno, em Teologia Política II (1969), mostra estar familiarizado com os trabalhos de Metz e Moltmann.
         A questão central, que surge mais insinuada do que explicitada neste livro de Schmitt – e que, essa sim, percorre, ainda que sob outros cambiantes, vários momentos da sua obra, como a reflexão sobre o parlamentarismo –, é a de saber se, num tempo dominado pelos «simulacros» (Braudillard) ou pelo «espectáculo» (Lipovetsky), a política deixou de ser um espaço de decisão (ou de decisionismo…) para se converter num espaço de jogo, um jogo no âmbito do qual as próprias linhas de demarcação da amizade e da inimizade perderam nitidez e clareza, ou até fulgor dramático, enquanto categorias fundadoras do «político». Em Carl Schmitt, o jogo e o seu sentido lúdico remetem para um sistema secundário, que não se confunde com a seriedade própria da ordem política, e a partir daqui emerge uma constelação de dicotomias: jogo/seriedade, liberdade/necessidade, Estado/estado de excepção, teatro/política[118]. Simplesmente, o Spiel ou play, ainda que envolvendo uma dimensão de conflitualidade, não convoca, pelo menos de forma necessária, a demarcação entre amigo vs. inimigo e, pelo contrário, supõe até a supressão da inimizade que é própria da acção política autenticamente decisionista. Mais: para Carl Schmitt, o jogo é alheio à contraposição verdade/falsidade, o Spiel, por natureza, não é verdadeiro ou falso[119]. Deste modo, o jogo integra-se no processo de «despolitização»[120] que, segundo Schmitt, caracteriza a modernidade e, a esta luz, a política reconfigurada como espaço de liberdade indiferenciada, já não como um lugar de decisão e seriedade[121], conclusão que valeu a Schmitt uma acerba crítica por parte de Huizinga, que contesta, desde logo, um dos pressupostos essenciais daquela construção, a «desconcertante antítese entre jogo e seriedade»[122].
Porém, se o jogo passa a configurar-se como metáfora do mundo, de acordo com Hans Urs von Balthasar[123], tal significa que a totalidade do mundo é susceptível de ser representada, ao menos metafórica ou alegoricamente[124], através da imagem do jogo. Porém, se assim for a política, porque inserta no mundo, será absorvida pela hipertrofia do Spiel. O jogo adquire, então, uma hegemonia inescapável, relativamente à qual todas as demais dimensões da vida, incluindo a política, não se conseguem furtar. Todo o mundo é um palco.        
A noção de que o jogo implica uma diluição das fronteiras de amizade e de inimizade surge, de resto, na própria peça de Shakespeare. A dado momento, quando confronta Laertes com o seu cego desejo de vingança, Cláudio diz-lhe: «Bom Laertes / Se quereis saber a verdade / Sobre a morte de vosso querido pai, / Na vossa vingança está já escrito / Que, como no jogo, / Amigos e inimigos por igual trateis / Confundindo o que ganha e o que perde?» (IV, 5; itálicos acrescentados). Na verdade, para aquele que se dispõe to play, para quem aceita a política como Spiel[125], a diferença entre Freund e Feind tem necessariamente de ser posta de parte, sob pena de o jogo não poder jogar-se. E essa imposição tem um desdobramento na «despolitização» e «neutralização» da contemporaneidade, tema que Schmitt explorara, pelo menos, desde 1928.      
        
12. Hamlet, mito europeu – no início do seu ensaio, Carl Schmitt interroga-se sobre um problema central: como foi possível ao espírito europeu, sujeito a um profundo processo de desmitificação desde o Renascimento, ter gerado um mito com a força e a atractividade de Hamlet? Esta pergunta é colocada logo nas primeiras páginas do livro, mas Schmitt só procura responder-lhe na parte final, quando se confronta com um debate central da cultura alemã, a discussão sobre a essência e as origens da tragédia. Neste passo, a diferença entre «tragédia» (Tragödie) e «drama trágico-lutuoso» (Trauerspiel), amplamente aprofundada por Walter Benjamin[126], faz emergir, uma vez mais, a importância do jogo, do Spiel, na dinâmica de Hamlet. No entanto – e este ponto é decisivo –, Schmitt afasta-se de Benjamin[127] por considerar que o drama inglês não se poderia aproximar do Trauerspiel alemão, dado que aquele relevava da configuração histórica peculiar que a Inglaterra assumira enquanto ilha, que paulatinamente tomou o domínio dos oceanos, tema desenvolvido em Terra e Mar (1942)[128] e, em especial, em O Nomos da Terra (1950). É sintomático que em todas as peças de Shakespeare exista, pelo menos, uma referência ao mar, geralmente apresentado como um meio hostil, espaço de tempestades e naufrágios[129]. Em Hamlet, porém, o rei Cláudio alude ao «mar sereno» (III, 1). Ao alcançar a hegemonia dos mares – segundo Carl Schmitt mais por força da iniciativa privada do que por acção de um Estado em convulsão, chefiado por uma dinastia indecisa, «hamletiana», quanto a esse projecto[130] –, a Inglaterra (ou, se preferirmos, a Grã-Bretanha do rei James) assume uma feição singular e ainda mais insular, o que se projectou em todas as esferas da vida. «Esta terra de majestade / […] Esta fortaleza que para si própria a Natureza construiu / […] Este torrão abençoado, este país, este reino de Inglaterra», diz-se em Ricardo II (III, 2). A dramaturgia inglesa adquirira um carácter «bárbaro» ou «elementar» e o teatro isabelino recorria a métodos muito mais «brutais» ou «directos» de interacção com o público[131]. Mais ainda, Hamlet não se configura como um Trauerspiel, tipicamente continental (ou «terrestre»), mas com uma verdadeira tragédia, já que as duas irrupções do tempo – de um tempo conflitual e negativo[132] –, patentes no «tabu da rainha» e no «desvio da figura do vingador» tornaram possível que Hamlet, à semelhança de Fausto e de Dom Quixote, se guindasse à categoria de mito europeu da modernidade, e que a peça se elevasse do nível do Trauerspiel para o da Tragödie. Esta é caracterizada pela «realidade objectiva da tragédia em si mesma», pelo confronto entre as coordenadas dramatúrgicas e a realidade histórica, que a audiência realmente vivia. Por isso, a tragédia, no limite, não é passível de ser ficcionada, representada, teatralizada ou relativizada. Assim se compreende o propósito schmittiano de inserção da peça no contexto histórico preciso da Scotish Succession. O «tabu da rainha» e o «desvio da figura do vingador» são indício de uma poderosa e devastadora irrupção do tempo, de um tempo trágico, não de uma mera alusão ou de um simples reflexo. E se as lágrimas por Hécuba remetem ainda para o domínio do artifício e da estética, sobretudo do ficcionalismo, tópico muito presente no pensamento schmittiano[133], e, por conseguinte, da representação e do Trauerspiel, as lágrimas por Hamlet são lágrimas de sangue, verdadeira e essencialmente trágicas, insusceptíveis de serem levadas ao palco porque se situam no âmbito da política e da realidade. No caso, de uma realidade histórica que assistia a um progressivo adensar da secularização, da despolitização e da «estetização», características do alvorecer da modernidade, em que a decisão soberana cede o passo perante o domínio da representação liberal, de que Hobbes é um precursor. Resta saber se, para o juspublicista alemão, não se viviam dois dramas do tempo trágico: aquele em que Shakespeare apresentou Hamlet; e outro, mais recente mas de idêntica e catastrófica tragicidade, aquele em que Schmitt proferiu a sua conferência em Düsseldorf e posteriormente a deu à estampa com o título Hamlet ou Hécuba.      
No entanto, no cortejo com Fausto, alemão e protestante, e com Quixote, castelhano e católico, Hamlet situava-se numa posição incerta, reflectindo o cisma que determinara o destino da Europa no contexto de uma situação histórica que era, ela própria ambivalente, porquanto compreendia a dissolução da ordem simbólica tardo-medieval e, na transição para a Idade Moderna, a afirmação de um novo ordenamento político, jurídico e espacial da terra, o nomos[134].     
         A visão de Hamlet como um mito de grande alcance e projecção vai ao encontro da ideia schmittiana, não afirmada abertamente, de que a Europa do pós-guerra era um mundo lacerado pela fractura de um espírito «hamletiano» em que Carl Schmitt não se revia e do qual se sentia desfasado – desfasamento que, em larga medida, era deliberado, empenhado e até militante, ainda que não combativo mas passivo, prudente e silente. O seu ensaio sobre Hamlet ou Hécuba é mais autobiográfico do que parece[135], e nele pressente-se a marca dramática, verdadeiramente trágica, de uma experiência pessoal de confronto com o weberiano «desencantamento do mundo» (Entzauberung der Welt). Se William Shakespeare possuía um carácter esquivo e fugidio[136], se ambicionava a uma tranquilidade burguesa que lhe permitisse prosseguir a carreira de poeta e autor de teatro com periódicas estadias na sua terra natal, Carl Schmitt sempre foi igualmente uma personalidade furtiva, amargamente marcada pelo desejo de segurança, em cujos escritos nem sempre é possível perceber as verdadeiras intenções que lhes subjazem nem os reais desígnios que os animam. 
 
13. Schmitt & Shakespeare – num registo mais objectivo, dir-se-á, a concluir, que Hamlet é uma obra de alusão e de ocultação, em que a elipse e o não-dito surgem como formas de autodefesa do próprio autor num contexto histórico problemático. A interpretação de Schmitt assemelha-se neste aspecto à obra que analisava e, sem forçar analogias descabidas, há uma clara identificação do jurista alemão com o poeta e dramaturgo inglês, cuja biografia fugidia e opaca tem, desde há vários séculos, inspirado as mais desencontradas interpretações, a ponto de na sua obra se poder encontrar tudo e o seu contrário. É impressionante o contraste entre a escassez do que se sabe sobre a sua vida e a vastidão das interpretações que em torno dela têm sido propostas. A imensidão da bibliografia shakespeariana assume proporções colossais, insanas, calculando-se que todos os anos sejam publicados cerca de 4.000 estudos de fôlego sobre Shakespeare e o seu génio. O «mito» Shakespeare construiu-se, em larga medida, devido ao facto de sabermos tão pouco sobre a sua vida. Basta referir que, mesmo considerando as liberdades na grafia que existiam no seu tempo, nas sete assinaturas que dele se conhecem o seu nome não aparece escrito duas vezes da mesma maneira e jamais surge grafado como «Shakespeare» (note-se que, no único autógrafo que se conhece de Christopher Marlowe, este assina «Cristofer Marley»…). Ao fim de quatrocentos anos de pesquisas, sabe-se que nasceu em Stratford, aí constituiu família, foi para Londres, onde ingressou no mundo do teatro, tendo posteriormente regressado à terra natal, fez testamento e morreu. De autêntico e objectivo, é isto o que de essencial se sabe sobre William Shakespeare. Porventura, mais do que a representação de peças que sustentavam a tese do direito divino dos reis, ou que afirmavam a união da Grã-Bretanha (em Cymbeline, concebida para a corte, Shakespeare utiliza quase cinquenta vezes as palavras «Britânia» e «bretões» para se referir à nova unidade política[137]), ou ainda que engrandeciam a linhagem do monarca, como Macbeth[138], o incomparável contributo que deu para o enriquecimento da língua inglesa foi o serviço mais importante prestado a James I e ao sentido político do seu reinado. Para a afirmação do inglês em detrimento do latim – e recorde-se a tradução da Bíblia para a língua vernacular, um projecto cultural e espiritual, mas também político, de James I –, Shakespeare inventou 2035 palavras. Só em Hamlet, existem 600 palavras que jamais tinham sido usadas. A par disso, criou inúmeras expressões ainda hoje de uso corrente (vanishing into thin air, pomp and circumstance, cold comfort), criando um legado ímpar para a consolidação do inglês num tempo em que o latim, a língua da Roma católica, ainda era dominante (dos quase 6000 volumes que a Bodleian Library tinha em 1605, apenas 36 eram escritos em língua inglesa). Aliás, e como já notaram diversos comentadores, apesar de Shakespeare ser considerado um autor dramático do período isabelino, a sua fase de produção mais intensa e brilhante situa-se no reinado de James I. À maior maturidade do autor associava-se, indiscutivelmente, uma maior tranquilidade das suas condições de trabalho, agora que actuava sob os auspícios do próprio rei e contava com a sua protecção. A criatividade e produtividade de Shakespeare muito devem aos Stuart, possivelmente mais do que aos Tudor.    
Schmitt não pretende abertamente irmanar-se com Shakespeare, mas alimenta claramente a pretensão de ter compreendido, como poucos, o sentido profundo da sua obra. Hamlet é uma peça que lida com questões políticas extremamente sensíveis numa época perigosa. William Shakespeare não deixou de as abordar, fazendo-o de um modo suficientemente nítido para ser percebido pelo seu público mas, em simultâneo, suficientemente cauteloso para não ser perseguido e punido pelo exercício do seu génio criativo. Em Hamlet não existe apenas uma play within a play, que é representada pelos actores que derramam lágrimas de palco por Hécuba. Por trás dessa peça dentro da peça, outra peça existe, outro drama se desenrola: aquele que impõe ao autor que seja também actor, jogando o jogo do simulacro e fazendo uso, como o príncipe da Dinamarca, das artes da alusão, da elisão e da ilusão. Para alguns, este não será ainda o jogo dos espelhos e das duplicações que encontramos no período absolutista, em que o mundo é representado como se fosse visto através do olhar do soberano[139]. Trata-se, isso sim, de uma dúplice representação, que é capaz de conter laivos de comicidade e, ao mesmo tempo, de acolher a seriedade trágica que era extrínseca ao drama[140], e que dele faz, segundo Schmitt, não um Trauerspiel mas uma verdadeira Tragödie.  
Haverá, assim, como que a play within a play within a play. Este era um jogo que Shakespeare dominava, aliás. Devido ao facto de em Inglaterra os papéis femininos serem representados por homens, ao contrário do que já sucedia em França, em Itália ou em Espanha, Shakespeare subverteu e satirizou essa convenção disfarçando de rapazes as suas figuras femininas. Nesse jogo de espelhos e de confusão de géneros, presente na figura de Rosalind em As You Like It e de Viola em Twelfht Night, temos, em palco, uma rapariga que faz de rapaz que, por sua vez, faz de rapariga… Noutros casos, o génio criativo de Shakespeare introduz na própria peça a sua condição de peça, a sua natureza teatral ou representativa, interpelando o auditório e destruindo, por instantes, a suspension of disbelief que ditava o envolvimento do público, momentaneamente devolvido à realidade. Em Henrique V, uma personagem pergunta, referindo-se ao espaço do teatro: «Poderá este pequeno recinto albergar as vastas campinas de França?»; em Henrique VI, Parte Segunda, vai ao ponto de solicitar ao público para «suprir a nossa actuação com a vossa imaginação». Para usar um conceito de Peter Burke, era o mundo como teatro[141] levado à sua máxima expressão, aquela em que o próprio mundo era chamado ao palco, convocado para o interior da peça, devendo colaborar, através da imaginação, para corrigir as suas deficiências e colmatar as suas lacunas. Se aí o intuito era subverter as regras dramáticas e explorar seja a comicidade cénica (Rosalind em As You Like It e Viola em Twelfht Night), seja os limites da representação teatral (Henrique V e Henrique VI, Parte Segunda), noutros casos o objectivo consistia em garantir um espaço de segurança, dissimulando aquilo que o público entendia mas que não era dizível ou não era representável, o que convoca de novo o tema dos limites da representação. Para tanto, segundo Carl Schmitt, Shakespeare fez-se valer de artifícios como o «tabu da rainha» e o «desvio da figura do vingador», sendo o primeiro, enquanto proposta interpretativa de Hamlet, muito mais linear, inteligível e credível do que o segundo. Em todo o caso, é sintomático que Schmitt haja escolhido Hamlet como objecto de estudo e, mais ainda, tenha desenvolvido em seu torno uma proposta interpretativa ancorada em tópicos como a ocultação e a alusão, a opacidade da mensagem narrativa ou os não-ditos, considerando que esses expedientes foram usados por uma necessidade de autodefesa em face de um ambiente hostil. O ponto crucial não reside tanto no facto de Carl Schmitt apresentar uma interpretação original e ter ou não razão e pertinência na leitura que realiza, mas sim na circunstância de nessa leitura crepuscular e desgastada se encontrarem vestígios – ou reflexos… – da sua própria situação pessoal, tal como Schmitt a encarava e deixou afirmado em Ex Captivitate Salus. Dizendo alcançar o máximo de objectividade na sua leitura, acaba por marcá-la, pois, com uma fortíssima carga subjectiva.
De todo o modo, a sua leitura de Hamlet é, objectivamente, próxima da obra de Shakespeare e do seu sentido histórico. Carl Schmitt não atribui os silêncios de Shakespeare a meras razões contingentes de autodefesa; os não-ditos, em Hamlet, correspondem, acima de tudo, a uma impossibilidade de representação dos dados externos, expressa através do conceito de irrupção, revelador da transcendência da realidade relativamente à arte e à própria liberdade inventiva do génio criador[142], ponto em que o autor de Romantismo Político afronta directamente as concepções estéticas românticas.
Em Hamlet ou Hécuba, porém, a linha interpretativa dominante – ou, pelo menos, mais claramente apreensível – faz radicar a origem dos «tabus» e dos «desvios» em motivos de natureza pessoal, em sentimentos de medo e de autodefesa. Deste modo, e ainda que interpelando uma realidade histórica concreta e precisa, essa linha acaba por ser contaminada por um «subjectivismo hermenêutico» em torno da personalidade do autor (no caso, William Shakespeare) a que Schmitt é involuntariamente conduzido. Num certo sentido, também Carl Schmitt será sujeito e limitado pela irrupção do tempo, não só do tempo em que Hamlet foi concebido mas também, e porventura até mais decisivamente, do tempo em que Hamlet ou Hécuba foi escrito e publicado.     
Mais do que o ajuste de contas com o romantismo estético, também presente em Hamlet ou Hécuba, as contingências do tempo sobre a liberdade criativa constituem, seguramente, o ponto crucial do refugiado em Plettenberg. No período terminal dos Tudor e no período inaugural dos Stuart não se chegara certamente ao extremo, descortinado por Leo Strauss em 1952, de a técnica de escrita ser condicionada em absoluto pelo medo da perseguição[143]. Todavia, os perigos existiam, eram reais e intensos, e Shakespeare estava consciente deles. Hamlet poderá não ser exemplo de literatura perseguida, mas é seguramente uma obra onde são visíveis as marcas e os signos de uma literatura cautelar ou prudencial[144]. Quando chega a Londres, o jovem William terá muito possivelmente visto, expostas na antiga ponte, as cabeças decapitadas dos membros da nobreza e dos grupos sociais mais elevados. Eram aí exibidas às dezenas, servindo de alimento aos corvos, e existia um oficial público, o Keeper of the Heads, cujo único encargo era zelar pela encenação deste espectáculo de sangue em que o poder se projectava de forma ostensiva e macabra. Ao contemplar essas cabeças, entre as quais se chegou a encontrar a de um seu parente afastado, Shakespeare, por certo, ter-se-á sentido «um fraco humano», o «bicho da terra tão pequeno» a que Camões alude no Canto I de Os Lusíadas.   
Além do mais, e para não nos cingirmos a uma explicação meramente «prudencial» ou «securitária» da obra de William Shakespeare, devemos ter presente que o próprio autor viveu na transição para a modernidade, com todas as tensões e rupturas que isso implicava, envolvido num universo de representações mentais que oscilavam entre catolicismo e protestantismo, entre tradições feudais e ambição burguesa, entre instinto e racionalidade, entre fé e cepticismo[145]. Todos à sua volta, incluindo o seu pai e os seus companheiros, os seus patronos ou colegas de ofício como Thomas Kyd e Christopher Marlowe, experienciaram pessoalmente as incertezas de um tempo de desordens. Resta saber em que medida as contradições da época se projectaram na dinâmica interna de Hamlet, como sustenta John Dover Wilson, para quem a escatologia de Horácio e Hamlet é protestante, o Fantasma é católico[146] e Bernardo e Marcelo são isabelinos sem convicções religiosas firmadas.         
         Se atendermos ao que Schmitt escrevera pouco antes em Ex Captivitate Salus, se tivermos em conta o ostracismo e o silenciamento a que se encontrava votado nos meios intelectuais alemães, não é difícil alcançar que, no universo das suas representações mentais, o autor de Hamlet ou Hécuba acabava por ver o reflexo do seu próprio rosto na tragédia da corte de Elsinor, agora ampliada numa tragédia mais vasta, que envolvia toda a Europa.     
Talvez se encontre no próprio Hamlet a mais eloquente conclusão que se pode extrair do sinuoso percurso schmittiano pela obra de Shakespeare. Essa conclusão é a que consta da derradeira fala do jovem príncipe, quando este suspira, moribundo; e diz: 
         The rest is silence.
 
 
   
 
 




(*) O presente estudo corresponde, com profundas alterações, ao texto que serviu de base à intervenção que fiz no colóquio sobre Carl Schmitt que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa nos dias 8 e 9 de Maio de 2013, sendo organizado pelos Professores Doutores Carlos Blanco de Morais e Luís Pereira Coutinho, a quem agradeço novamente o honroso convite para participar naquelas jornadas. Reunindo as diversas intervenções nesse colóquio, seria posteriormente publicado, em formato digital, o livro Carl Schmitt Revisitado, org. de Carlos Blanco de Morais e Luís Pereira Coutinho, Lisboa, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito de Lisboa, 2014, em que, por absoluta indisponibilidade de tempo, não me foi possível integrar um trabalho que, pese as suas flagrantes deficiências e a reformulação de que entretanto foi alvo, é agora dado à estampa numa obra colectiva de homenagem ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, iniciativa a que desde a primeira hora me associei com o maior aprazimento. 


[1] No original: Hamlet oder Hekuba, Der Einbruch der Zeit in Das Spiel, Düseldorf-Colónia, Eugen Diederichs Verlag, 1956.


[2] Cf. Joseph W. Bendersky, Carl Schmitt. Theorist for the Reich, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1983. Note-se que a mais recente e desenvolvida biografia de Carl Schmitt, um volume de 700 páginas, dedica uma das suas quatro partes aos tempos do pós-guerra, com um capítulo inteiro em que se analisa em que medida Ex Captivitate Salus e Halet ou Hécuba representaram um comeback de Schmitt como intellectual público: cf. Reinhard Mehring, Carl Schmit. A Biography, trad. inglesa, Cambridge-Oxford e Boston, 2014.  


[3] Cf. Joseph W. Bendersky, Carl Schmitt…, cit., p. 275, nota 4. De resto, nas listagens da principal bibliografia activa de Carl Schmitt não é usual surgir Hamlet ou Hécuba: cf., por exemplo, Jacky Hummel, Carl Schmitt. L’irréductible réalité du politique, Paris, Éditions Michalon, 2005, pp. 111-112.


[4] Cf. Gopal Balakhrishnan, The Enemy. An Intellectual Portrait of Carl Schmitt, Londres-Nova Iorque, Verso, 2000. De igual modo, o estudo mais vasto e profundo sobre a obra de Carl Schmitt realizado entre nós, e ainda que centrando-se em particular no período dos anos 20 e 30, não refere Hamlet ou Hécuba: cf. Alexandre Franco de Sá, O Poder pelo Poder. Ficção e Ordem no combate de Carl Schmitt em torno do Poder, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009.   


[5] Cf. Carl Schmitt, Hamlet or Hecuba. The Intrusion of the Time into the Play, introd. de Jennifer Rust e Julia Reinhard Lupton, Candor, NY, Telos Press Publishing, 2009. Há uma edição anterior, mas igualmente recente, de 2006, que Julia Reinhard Lupton não refere nos seus trabalhos: Carl Schmitt, Hamlet or Hecuba. The Irruption of Time into Play, ed., tradução e posfácio de Simona Draghici, Plutarch Press, Corvallis, Or., 2006. Com tradução de David Pan, alguns fragmentos do texto de Schmitt foram publicados em 1987, com o título «Sources of the Tragic», Telos, nº 72, Verão de 1987, pp. 133-152.


[6] Neste sentido, cf., entre outros, recenseando a abundante bibliografia produzida no mundo anglo-saxónico, Victoria Kahn, «Hamlet or Hecuba: Carl Schmitt’s Decision», Representations, Vol. 83, nº 1, Verão de 2003, p. 67, em esp. nota 1; mais desenvolvidamente, Jan-Werner Müller, A Dangerous Mind. Carl Schmitt in Post-War European Thought, New Haven, CT, Yale University Press, 2003.


[7] Sobre «Schmitt na América», num breve apontamento, cf. Miguel Nogueira de Brito, «A excepção no pensamento político e jurídico de Carl Schmitt», in AA.VV., Carl Schmitt Revisitado, cit., em esp. pp. 169ss.


[8] Cf. Gerwin Strobl, «The Bard of Eugenics: Shakespeare and Racial Activism in the Third Reich», Journal of Contemporary History, Vol, 34, nº 3, 1999, pp. 323-336. Sobre a apropriação de Shakespeare pelo nazismo, cf. Victoria Kahn, «Hamlet or Hecuba…», cit., pp. 80-81, citando os trabalhos mais desenvolvidos de Werner Habicht, «Shakespeare and Theater Politics in the Third Reich», in Hannah Scolnicov e Petter Holland (eds.), The Play Out of Context: Transferring Plays from Culture to Culture, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, pp. 110ss; Wilhelhm Hortmann, Shakespeare on the German Stage: The Twentieth Century, Cambridge, Cambridge University Press, 1998. De acordo com Victoria Kahn, a apropriação de Shakespeare pelo nazismo contribui para explicar o interesse de Schmitt por Hamlet e a sua forma de abordagem à peça, o que constitui uma tese não só bastante arriscada como, aparentemente, sem qualquer base factual. 


[9] Trata-se do texto «Was habe ich getan?», em que Schmitt sintetiza o seu ensaio e procura responder aos seus críticos, tendo sido originalmente publicado em Diestland-Europa. Uitgegeven door de Jong-Nederlandse Gemeenschap, II, 1957, nº 1, pp. 7-9, e traduzido em italiano como «Amleto», Il Borghese, de 19-XII-1957, pp. 996-997, surgindo como post scriptum na edição italiana de Hamlet ou Hécuba: cf. Carl Schmitt, Amleto o Ecuba. L’irrompere del tempo nel gioco del drama, tradução italiana de Simona Forti, Bolonha, Il Mulino, 1983, pp. 119-124. Este texto não é publicado na edição castelhana: cf. Carl Schmitt, Hamlet o Hecuba. La irrupción del tiempo en el drama, tradução castelhana de Román García Pastor, s.l., Universidad de Murcia, 1993; cf. ainda a edição francesa: Carl Schmitt, Hamlet ou Hécube, tradução francesa de J.-L. Besson e J. Jourdheuil, Paris, L’Arche, 1992.


[10] Além da introdução à tradução norte-americana de Hamlet ou Hécuba, Julia Reinhard Lupton é autora de diversos artigos em que o ensaio de Schmitt ocupa um lugar central, tendo dirigido, designadamente, seminários académicos dedicados em exclusivo ao tema: cf. http://www.thinkingwithshakespeare.org


[11] Note-se, por exemplo, que um excerto da conferência de Schmitt havia sido publicado em Espanha logo em 1956, na Revista de Estudíos Políticos, nº 85, com o título «Hamlet y Jacobo I de Inglaterra».


[12] Cf. António Araújo, «Schmitt e o nazismo. Apresentação a Ex Captivitate Salus», Estado & Direito. Revista Semestral Luso-Espanhola de Direito Público, nº 14, 2º semestre de 1994, pp. 79-109 [com tradução de vários trechos daquela obra, a partir da tradução castelhana efectuada por José Caamaño Martínez publicada no Boletín de la Universidad de Santiago de Compostela, nºs 57-58-59 e 60, 1951-1952, pp. 145-168]. Desta obra existem traduções em várias línguas, como, por exemplo, em italiano: cf. Carl Schmitt, Ex Captivitate Salus. Esperienze degli anni 1945-47, Milão, Adelphi Edizioni, 2ª ed., 1993, com um estudo de Francesco Mercadante. 


[13] Cf. Horst Bredekamp, Melissa Thorson Hause e Jackson Bond, «From Walter Benjamin to Carl Schmitt, via Thomas Homes», Critical Inquiry, Vol. 25, nº 2, Inverno de 1999, pp. 247-266. Cf. ainda, Julia Reinhard Lupton e Kenneth Reinhard, After Oedipus. Shakespeare in Psychoanalysis, Ithaca-Londres, Cornell University Press, 1992, em esp. o segundo capítulo, «The Trauerspiel of Criticism», pp. 34ss. Sobre este relacionamento, cf. o «Comentário» in Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, edição, apresentação e tradução portuguesa de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 293-294. Cf. ainda Samuel Weber, «Taking Exception to the Decision: Walter Benjamin and Carl Schmitt», Diacritics, Vol. 22, nºs. 3/4, 1993, pp. 5-23. 


[14] Cf., por ex., Simon Critchley e Jamieson Webster, The Hamlet Doctrine, Londres-Nova Iorque, Verso, 2013, p. 41 [tb. publicado como Stay, Illusion! The Hamlet Doctrine, Nova Iorque, Vintage Books, 2014], obra que analisa Hamlet ou Hécuba, confrontando-o com o legado de Benjamin, sem ter em conta, por exemplo, o contributo fundamental – dir-se-ia, decisivo – de Lilian Winstanley ou John Dover Wilson para a leitura schmittiana de Hamlet; cf. a recensão daquela obra por Katharine Craik, «Opheliacs», Times Litterary Supplement, de 25-IV-2014, p. 9.


[15] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet. Sohn der Maria Stuart, tradução alemã, Pfullingen/Würtemberg, Günther Neske, 1952, pp. 7-25 e pp. 164-170 [ed. original: Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession being an examination of the relations between the play of Hamlet to the Scottish succession and the Essex conspiracy, Cambridge, Cambridge University Press, 1921]; disponível online no endereço: http://www.sourcetext.com/sourcebook/library/winstanley/index.htm. Aliás, Schmitt mantinha contacto com Lilian Winstanley, a quem agradece a cedência do manuscrito que aquela estava a redigir sobre outra obra de Shakespeare, The Tempest. Note-se, pela sua curiosidade, que existe na Internet um blogue dedicado a Lilian Winstanley: http://lilianwinstanley.blogspot.pt/ Uma reavaliação recente da tese de Winstanley acaba, de algum modo, por aderir ao seu sentido essencial, salientando a revisitação contemporânea do «historicismo», ponto que corrobora a ideia de que as interpretações de Winstanley e de Schmitt (e, bem assim, de Dover Wilson) ainda são enquadráveis no âmbito de uma corrente «historicista»: cf. Stuart M. Kurland, «Hamlet and the Scottish Succession?», Studies in English Literature 1500-1900, nº 2, Primavera de 1994, pp. 279ss.


[16] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», in Amleto o Hecuba…, cit.,  p. 7; Simon Critchley e Jamieson Webster, The Hamlet Doctrine, cit., pp. 41ss, apelidando Schmitt de «Herr Professor Dr. Decision» (p. 42).


[17] De certo modo, esse é um problema que afecta a interpretação fornecida por Carlo Galli na introdução à edição italiana de Hamlet ou Hécuba, sem prejuízo de se reconhecer que o ensaio introdutório de Galli, um profundo conhecedor da obra de Schmitt, constitui um dos mais completos, densos e informados escritos que se redigiram sobre este livro do jurista alemão. Cf., neste sentido, Julia Reinhard Lupton, «Invitation to a Totem Meal: Hans Kelsen, Carl Schmitt and Political Theology», in AA.VV., The Return of Theory in Early Modern English Studies. Tarrying with the Subjunctive, ed. de Paul Cefalu e Bryan Reynolds, Londres, Palgrave Macmillan, 2011, pp. 121ss, que se ocupa extensamente da interpretação schmittiana de Hamlet, com desenvolvidas referências ao texto de Carlo Galli. O texto de Galli seria publicado com o título «Hamlet: Representation and the Concrete», in AA.VV., Political Theology and Early Modernity, ed. de Graham Hamill e Julia Reinhard Lupton, Chicago-Londres, The University of Chicago Press, 2012, pp. 60ss, surgindo, nessa mesma obra de que Julia Lupton foi co-organizadora, o texto de Adam Sitze, «The Tragicity of the Political: A Note on Carlo Galli’s Reading of Carl Schmitt’s Hamlet or Hecuba», a pp. 48ss (cf. ainda Adam Sitze, «A Farewell to Schmitt: Notes on the Work of Carlo Galli», The New Centennial Review, Vol. 10, nº 2, Inverno de 2010, pp. 27ss). A abordagem de Román García Pastor e José L. Villacañas Berlanga, no estudo «Hamlet y Hobbes. Carl Schmitt sobre Mito y Modernidad Política» que serve de intróito à edição espanhola de Hamlet ou Hécuba, pouco se detém sobre este ensaio de Schmitt ou sequer sobre a obra de Shakespeare, tomando antes o «mito Hamlet» como pretexto para uma digressão sobre outros lugares do pensamento schmittiano, como as suas reflexões sobre o destino da Europa, Thomas Hobbes e o Leviatã. Por outro lado, e num sentido diametralmente oposto, há quem opte por se concentrar na peça de Shakespeare ignorando o contributo de Carl Schmitt, como sucede com Simona Draghici no posfácio à edição anglo-saxónica de 2006 de Hamlet ou Hécuba. Ainda assim, Draghici apresenta uma brilhante síntese do que Shakespeare se viu constrangido a fazer para possibilitar a representação da sua peça numa conjuntura adversa e perigosa (o que, no fundo, constitui um aspecto dominante da interpretação schmittiana). Tendo em conta a gradual secularização do teatro inglês e, em especial, a ascensão de James ao trono, refere Simona Draghici que «What Shakespeare had to do to make the play acceptable under the new circumstances was to alter its tenor away from vengeance, neutralize the mother’s involvement, make the ghost a theological issue between hell, purgatory and reason, while turning the protagonist into a man of peace, fond of learned arguments and books, wishing to assert himself and his ideas in a rather reluctant world».: cf. Simona Draghici, «Postface», in Carl Schmitt, Hamlet or Hecuba…, cit., p. 69.      


[18] Cf. Jonathan Bate, Soul of the Age. The Life, Mind and World of William Shakespeare, Londres, Penguin Books, 2008, p. 257.


[19] São elucidativas as palavras que, em Julho de 1950, Dover Wilson escreve no prefácio à 3ª edição do seu livro What Happens in Hamlet, já depois de ter lido os ensaios de Salvador de Madariaga e Ernest Jones sobre Hamlet. Retomando o que havia dito logo na introdução da primeira edição da sua obra, nos anos trinta, diz: «to abstract one figure from an elaborate dramatic composition and study it as a case in the psychoanalytical clinic is to attempt something at once wrong in method and futile in aim»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., p. VII.


[20] Cf. Ernest Jones, Amleto e Edipo, tradução italiana, Milão, ES, 2008, edição acompanhada dos estudos «Hamlet e Freud», de Jean Starobinski, e «Incesto e sociedade», de Paolo Caruso.


[21] Cf. Stephen Greenblatt, «The death of Hamnet and the Making of Hamlet», The New York Review of Books, 21-X-2004. Do mesmo autor, Will in the World. How Shakespeare Became Shakespeare, Londres, Pimlico, 2005, p. 311, que, a par dos livros de Park Honan (Shakespeare. A Life, Nova Iorque, Oxford University Press, 1999), de Peter Ackroyd (Shakespeare. The Biography, Londres, Vintage Books, 2006) e de Katherine Duncan-Jones (Shakespeare. An Ungentle Life, Londres, Methuen, 2001), integra o conjunto das biografias recentes de Shakespeare com maior projecção. Cf. ainda, a este propósito, a obra, profusamente ilustrada, de Jonathan Bate e Dora Thornton, Shakespeare. Stagging the World, Londres, The British Museum Press, 2012, que acompanhou a exposição realizada no Museu Britânico entre Julho e Setembro de 2012. Entre nós, uma introdução recente e muito informativa à vida e obra de Shakespeare pode encontrar-se no livro de Mário Avelar, O Essencial Sobre William Shakespeare, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012.        


[22] Cf., por ex., a referência de Mário Avelar, O Essencial Sobre William Shakespeare, cit., p. 103.


[23] Cf. Katherine Duncan-Jones, Shakespeare…, cit., p. 102.


[24] Ainda que, segundo alguns, acabe por utilizar o termo «tabu», de conotação freudiana, quando se refere ao «tabu da rainha»: cf. Simon Critchley e Jamieson Webster, The Hamlet Doctrine, cit., p. 43. Não o afirmando tão explicitamente, cf., no entanto, Julia Reinhard Lupton, «Invitation to a Totem Meal…», cit., em esp. p. 133. Aliás, abordagens recentes à vida de Maria Stuart (personagem central na interpretação schmittiana de Hamlet) e sua influência literária buscam apoio na teoria freudiana: cf. Jayne Lewis, Mary Queen of Scots. Romance and Nation, Londres Routledge, 1998, p. 7. Curiosamente, leituras contemporâneas da obra de Schmitt sustentam que a sua teoria da soberania se assemelha à noção freudiana do «pai da horda primitiva», o que decerto mereceria a mais viva rejeição por parte do jurista germânico: cf. Kenneth Reinhard, «Toward a Political Theology of the Neighbor», in Slavoj Žižek, Eric Santner e Kenneth Reinhard, The Neighbor. Three Inquiries in Political Theology, Chicago, University of Chicago Press, 2005, p. 56.


[25] Cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., pp. 129ss, apontando Polónio como um exemplo de aproveitamento, por parte de Shakespeare, do velho esquema do bobo demoníaco (p. 131).


[26] Cf. William Shakespeare, A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, 4ª ed., tradução e prefácio de José Blanc de Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 2001, p. 80.


[27] Cf. William Shakespeare, Hamlet, tradução de António M. Feijó, Lisboa, Edições Cotovia-Biblioteca de Autores Independentes, 2007, p. 63.


[28] Seguiu-se a versão constante de William Shakespeare, The Complete Works, ed. de Stanley Wells e Gary Taylor, Oxford, Clarendon Press, 1988, pp. 653ss.  


[29] Na tradução de José Blanc de Portugal. «Mais substância e menos arte.», na tradução de António M. Feijó. «More matter with less art», no original.


[30] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish succession: being an examination of the relations between the play of Hamlet to the Scottish succession and the Essex conspiracy, Cambridge, Cambridge University Press, 1921.


[31] Cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, reimp., da 3ª ed. [1951], Cambridge, Cambridge University Press, 1996. É extremamente interessante o modo como John Dover Wilson, num registo autobiográfico publicado no The Times Literary Supplement em 1964, explica como se tornou editor das obras completas de Shakespeare: cf. J. Dover Wilson, «How I Took to Editing Shakespeare», in AA.VV., The TLS on Shakespeare, ed. por Michael Caoines e Mick Imlah, s.l., The Times Literary Supplement, s.d., pp. 98ss.    


[32] De que existe tradução portuguesa: Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, edição, apresentação e tradução portuguesa de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.


[33] Sobre a vingança, em articulação com o conceito de inimizade no pensamento de Schmitt, cf. David Teles Pereira, «Nemesis: sobre os conceitos políticos de inimizade e vingança», in AA.VV., Carl Schmitt Revisitado,  cit., pp. 40ss. Em termos mais amplos, cf., entre a vastíssima bibliografia existente, Gabriella Slomp, Carl Schmitt and the Politics of Hostility, Violence and Terror, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2009, em esp. pp. 38ss. 


[34] «Oh! Pudesse eu livrar-me desta deusa carne em que nasci / Pudesse ela fundir-se, solver-se em um orvalho… / Não fora o mandamento do Eterno / Contra os quer a si próprios assassinam!...» (I, 2; na tradução de José Blanc de Portugal).


[35] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 7. Assim, além dos trabalhos de Lilian Winstanley, Schmitt reconhece que, mesmo no universo germânico, o nexo histórico com Essex já havia sido destacado por Lessing em Hamburgische Dramaturgie (1767-1769) e por Schiedermair em Der Graf von Essex in der Literatur (1908-1909).  


[36] Além das obras de J. Dover Wilson e, sobretudo, de Lilian Winstanley, cf., mais recentemente, numa leitura muito próxima da de Carl Schmitt, Alvin Kernan, Shakespeare. The King’s Playwright. Theater in the Stuart Court, 1603-1613, New Haven, CT, Yale University Press, 1995. A tentativa de interpretar Hamlet praticamente como um relato biográfico de James I foi empreendida por vários autores, com realce para Henry Brown, King James I, Of England, and VI, Of Scotland. Shakespeare’s Patrons. Londres, Aldine House Covent Garden, 1912, em esp. pp. 16ss.     


[37] Esta ligação entre a biografia de Bothwell e o cenário de Hamlet foi, como seria de esperar, salientada por Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 44.


[38] Recentemente, uma associação cívica de Faro solicitou a restituição à cidade daquela colecção de incunábulos: cf. Luís Miguel Queirós, «O caso da biblioteca que o conde inglês roubou ao bispo do Algarve», Público, de 14-I-2014, pp. 28-29.


[39] Cf. Michael Dobson, Shakespeare and Amateur Performance. A Cultural History, Cambridge, Cambridge University Press, 2011, p. 2; Simon Critchley e Jamieson Webster, The Hamlet Doctrine, cit., p. 74.


[40] O ponto é sublinhado, naturalmente, por Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 44.


[41] Cf., para uma primeira abordagem, Federico Trillo-Figueroa, El Poder Político en los Dramas de Shakespeare, Madrid, Editorial Espasa Calpe, 1999, pp. 147ss.


[42] Cf. A. D. Nutall, Shakespeare. The Thinker, New Haven, CT, e Londres, Yale University Press, 2007, p. 81.


[43] Na tradução de José Blanc de Portugal. Na tradução de António M. Feijó, a referência é feita a estrelas «perladas de sangue».


[44] Na linha de Dover Wilson (cf. o Apêndice F em John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., pp. 321ss), Carl Schmitt rejeita a visão de Hamlet perfilhada por Madariaga e mantém-se fiel a uma concepção, de certo modo, «clássica» do príncipe da Dinamarca como um homem indeciso, inclinado a dúvidas existenciais e ao exercício do intelecto, mais do que da acção. Tal resulta sobremaneira dos seus papéis privados (v.g., um texto intitulado Hamlet-Galerie), em que elenca como personalidades afins de Hamlet: Adlai Stevenson, o socialista italiano Giuseppe Saragat, Paulo VI, John Kennedy, Enrico Berlinguer: cf. Andreas Höfele, «Hamlet in Plettenberg: Carl Schmitt’s Shakespeare», Shakespeare Survey, Vol. 65, Dezembro de 2012, pp. 378ss.  


[45] Como refere Dover Wilson, talvez com exagero mas, neste passo, com inteira pertinência, «The attitude of Hamlet towards Ophelia is without doubt the greatest of all the puzzles in the play, greater even than that of the delay itself»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., p. 101.


[46] É curioso observar que Hamlet aconselha Ofélia a ingressar num convento ou, em alternativa, a casar com um louco: «casa com um louco porque os sensatos sabem bem em que monstros os transformam» (III, 1). Há quem observe que a «crueldade verbal» que Hamlet revela face à sua mãe, Gertrudes, só é ultrapassada pela «raiva sexual» que demonstra perante Ofélia, o que seria explicável à luz dos laços de amizade viril que mantém com outras personagens, designadamente Horácio: cf. cf. Julia Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince. Tragedy, Citizenship, and Political Theology», in AA.VV., Alternative Shakespeares 3 (New Accents), Oxford, Routledge, 2008, p. 199.


[47] Dizendo que «The play scene is the central point of Hamlet», Dover Wilson fala em «parallel sub-plots», num capítulo que, tendo por base o título da peça A Ratoeira, expressivamente se chama «The multiple mouse-trap»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., pp. 138ss.


[48] Cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., p. 135.


[49] Cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., p. 142.


[50] Há quem afirme, a este respeito: «throughout the play, Hamlet “plays the Machiavel”, adopting a posture of frustrated ambition in order to cloak his agenda»: cf. Julia Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince…», cit., p. 190.


[51] Sobre esta cena crucial da peça, cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., pp. 247ss.


[52] Cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., p. 168.


[53] Cf. Alexandre Franco de Sá, O Poder pelo Poder…, cit., passim, em esp. p. 663.


[54] Cf., por todos, Stephen Greenblatt, Hamlet in Purgatory, Princeton-Oxford, Princeton University Press, 2001, o qual adverte, logo no prólogo, que a sua obra não tem por intuito determinar a natureza «católica» ou «protestante» do Espectro (ob. cit., p. 4).


[55] Sobre esta alusão a São Patrício, cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., pp. 79ss e sobretudo Stephen Greenblatt, Hamlet in Purgatory, cit., pp. 233ss, que, após salientar que a ligação, na peça de Shakespeare, entre São Patrício e o Purgatório foi estabelecida no final do século XIX pelo filólogo germânico Benno Tschischwitz, chama a atenção para a relevância de outra fala em Hamlet, quando o Espectro exorta Horácio e Marcelo a jurarem e Hamlet pergunta «Há-de ser hic et ubique?» (I, 5; na tradução de António M. Feijó), o que, segundo Greenblatt, remete para uma oração tradicional católica rezada em Inglaterra, em que se pedia perdão e mercê por todas almas de todos os lugares (hic et ubique), tendo esta prece sido criticada, ou mesmo ridicularizada, por autores protestantes como Thomas Rogers, em The Catholic Doctrine of the Church of England (1607).


[56] Recordem-se as afirmações feitas por Hamlet no cemitério (V, 1). Deambulando, encontra uma caveira («Essa caveira já teve uma língua dentro; já pôde um dia cantar») e, mais acolá, outra, que bem poderia ter sido a de um jurista, a quem pergunta: «Onde estão agora os teus distinguo? As tuas subtilezas? Para onde foram as tuas causas, os teus pareceres e as tuas manhas?». O Primeiro Coveiro diz, de Ofélia, quando Hamlet lhe pergunta o que se vai enterrar: «O que foi uma mulher, meu senhor, mas agora, paz à sua alma, é só uma morta.». Atente-se ainda no célebre diálogo de Hamlet com a caveira de Yorick (V, 1), possivelmente o trecho em que o memento mori é mais visivelmente evocado em toda a peça.     


[57] Cf. Jennifer Rust, «Political Theologies of the Corpus Mysticum: Schmitt, Kantorowicz and de Lubac», in AA.VV., Political Theology and Early Modernity, cit., pp. 102ss; Eric L. Santner, The Royal Remains. The People’s Two Bodies and the Endgames of Sovereignty, Chicago, The University of Chicago Press, 2011, cujo capítulo 5 é precisamente dedicado a uma análise de Shakespeare, Schmitt e Hofmannsthal.


[58] Sobre o influxo da doutrina dos dois corpos do rei em Hamlet, cf.  Jerah Johnson, «The Concept of the King’s Two Bodies in Hamlet», Shakespeare Quarterly, Vol. 18, nº 4, Outono de 1967, pp. 420-434.


[59] Como refere Mário Avelar, «da dimensão algo simbólica ou meramente sugestiva que os elementos cénicos assumiam, deduz-se a importância que a palavra tinha em palco. Poderá, assim, inferir-se que o público estaria particularmente atento ao discurso, aos jogos de palavras, aos trocadilhos, às insinuações. Mais do que na acção, era, afinal, na palavra que então assentava a dimensão dramática» (O Essencial Sobre William Shakespeare, cit., p. 75).


[60] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 9.


[61] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 7.


[62] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 17.


[63] Trata-se, aliás, de uma perspectiva perfilhada por Dover Wilson, outro autor que marcou profundamente a leitura de Schmitt, e que afirma: «the drama of which he [Hamlet] is the hero was written by na Elizabethan for Elizabethans. If therefore we of the twentieth century desire to enter fully into that situation we must ask ourselves how it would present itself to English minds at the end of the sixteenth»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., p. 26.


[64] «One thing seems, at any rate, absolutely certain, that Shakespeare is using a large element of contemporary history in Hamlet. It appears to me that in the total construction of the play, the literary source is comparatively unimportant, and the historical source exceedingly importante»: cf. Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 166. Ou seja, Lilian Winstanley afasta-se de um «historicismo» que procura escrutinar à saciedade as fontes literárias de Hamlet (a saga nórdica, a peça de Kyd, etc.) mas para o fazer tem de valorizar, porventura em excesso, o influxo da realidade histórica em que a peça foi escrita ou, melhor, apresentada ao público. É também esse o projecto de Dover Wilson, que critica os resultados a que chega o «método histórico», caracterizado como uma tentativa de «explicação das situações concebidas por Shakespeare tendo por referência as suas fontes hipotéticas»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit.,  p. 35. Nesse âmbito poderíamos situar também a busca quase obsessiva de «modelos clássicos» de Hamlet, que Shakespeare teria supostamente seguido, desde Catão, o Jovem, a Lúcio Júnio Bruto ou a Quinto Servílio Cepião, passando por Hércules: cf. Simona Draghici, «Postface», cit., pp. 73-74.


[65] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 9 e pp. 109ss.


[66] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., em esp. p. 94. Simona Draghici avança uma explicação mais subtil, e fundamentada, para o comportamento do jovem príncipe após o encontro com o Espectro: «He has subjected himself to a repeate critical moral and existential self-examination, renounced the learning acquired at Wittenberg, and been practising abstinence from alcohol and sexual activity, from sumptuous dress and living, abstinence and purification which he eventually urges his mother to pursue and would like to impose upon Ophelia when telling her to go to a nunnery»: cf. Simona Draghici, «Postface», cit., p. 71. 


[67] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 30, itálico acrescentado.


[68] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 76, em contraste com as fontes da peça, em que Hamlet não mostra quaisquer sinais de dúvida ou hesitação (p. 78).


[69] Cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., pp. 153ss.


[70] Cf. o texto «Melancolia e modernidade» de Claudio Magris, Alfabetos. Ensaios de Literatura, tradução portuguesa, Lisboa, Quetzal Editores, 2013, pp. 69ss («Ainda que tenha raízes antigas e implicações religiosas, além de uma inseparável dimensão clínica, a melancolia é sobretudo uma categoria, um modo de ser, uma poesia do Moderno, que nasce marcada pela consciência de um pecado original, de uma perda indefinível – não de Deus, mas da “vida verdadeira”, ou melhor, do sentimento de poder alcançá-la» – pp. 70-71).


[71] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 42.


[72] Cf. Peter Ackroyd, Shakespeare. The Biography, cit., p. 218.


[73] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., pp. 48ss. Winstanley, aliás, enfatiza a presença do espectro na peça de Kyd (ob. cit., p. 66). 


[74] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., pp. 139ss.


[75] Cf. Susan Sontag, «Sob o Signo de Saturno», pref a: Walter Benjamin, Rua de Sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900, tradução portuguesa, Lisboa, Relógio D’Água, 1992, p. 25.


[76] Para uma primeira abordagem, cf. Paul Collins, The Book of William. How Shakespeare’s First Folio Conquered the World, Nova Iorque-Berlim-Londres, Bloomsbury, 2009. Manifestando igualmente perplexidade pelo uso (até contra os seus argumentos…) que Schmitt faz das diversas versões de Hamlet, cf. Victoria Kahn, «Hamlet or Hecuba…», cit., p. 85.


[77] Apud Bill Bryson, Shakespeare. Dos oito aos oitenta, tradução portuguesa,  Lisboa, Bertrand Editora, 2008, p. 91.


[78] Cf. Charles Nicholl, Shakespeare and His Contemporaries, Lisboa, National Portrait Gallery Publications, 2005, pp. 70-71 (que, todavia, não reproduz o retrato da autoria de Hilliard).


[79] Apud Bill Bryson, Shakespeare, cit., p. 91.


[80] Cf. Harold Bloom, The Western Canon. The Books and Schools of the Ages, Nova Iorque, Harcourt Brace & Company, 1994, p. 55.


[81] A referência ao espaço urbano (ou seja, não-rural) que designava a companhia (Comediantes da Cidade) e onde esta actuava («Continuaram a ser apreciados como quando os vi na cidade? Têm admiradores e casas cheias?», pergunta Hamlet, II, 2) é igualmente muito elucidativa.


[82] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 12 e p. 19.


[83]  Na tradução de António M. Feijó (Lisboa, Edições Cotovia, 2007, p. 76). Compare-se com a tradução de José Blanc de Portugal, baseada no First Folio: «Por Hécuba! Mas… / Que tem ele com Hécuba ou Hécuba com ele, / Para que o actor tenha de chorar por ela?» (p. 97). Na tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen: «Por Hécuba! / O que é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, / Para que ele assim deva chorar por ela?» (Porto, Lello & Irmãos – Editores, 1987, p. 103). Refira-se, por curiosidade, a tradução mais antiga de Domingos Ramos, recentemente reeditada: «Por Hécuba; que lhe fez Hécuba? Que é ele a Hécuba para chorar assim por ela?» (Estarreja, Mel Editores, 2009, p. 114). No original: «For Hecuba! / What’s Hecuba for him, or he to Hecuba, / That he should weep for her?» (cf. William Shakespeare, The Complete Works, cit., p. 668).  


[84] Cf. Homero, Ilíada, Canto XXIV, 748-59, tradução portuguesa de Frederico Lourenço, Lisboa, Livros Cotovia, 2005, pp. 496-497. 


[85] Cf. Dante Alighieri, Divina Comédia, tradução portuguesa de Vasco Graça Moura, Lisboa, Quetzal Editores, 2011, p. 269: «Hécuba triste, mísera e cativa, / depois que viu a Policena morta, / e de seu Polidoro a morte a priva / à beira-mar, de tal dor se transporta, / qual cão ladrando em desvairadas ganas; / que tanta dor a mente já lhe entorta.»


[86] Cf. Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, tradução portuguesa, introd. e notas de Alexandre Fradique Morujão, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 4.


[87] Cf. Ronald Dworkin, Justiça Para Ouriços, tradução portuguesa, Coimbra, Edições Almedina, 2012, p. 282.


[88] Na tradução de António M. Feijó. «Que devia eu fazer com as razões que tenho?! / Inundaria de lágrimas o palco», na tradução de José Blanc de Portugal.


[89] Cf. Carl Schmitt, Catolicismo Romano e Forma Política, tradução portuguesa, prefácio, tradução e notas de Alexandre Franco de Sá, Lisboa, Hugin Editores, 1998, em esp. pp. 34-35.    


[90] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 9. Alexandre Franco de Sá, O Poder pelo Poder…, cit., pp. 249ss.


[91] Considerando que os «duplos» de Hamlet seriam Fortimbras, no plano do poder e da força, e Horácio, no plano da amizade e do intelecto, cf. Julia Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince…», cit., p. 200, texto que contém amplas referências, de sentido crítico, ao ensaio de Carl Schmitt. 


[92] Schmitt voltará a utilizar o First Quarto (Q1), pelo menos, mais duas vezes no seu ensaio. Quanto o invoca para referir que, nessa versão de 1603, existia uma 6ª Cena no IV Acto em que Gertrudes se aliava ao filho contra o segundo marido. E, depois, para sublinhar que em Q1 existia, na 2ª Cena do II Acto, uma alusão mais explícita ao sentido da acção de Hamlet, a qual não visaria apenas vingar a morte do pai como recuperar o trono usurpado, colocando-se assim no mesmo plano o drama de vingança e o drama de sucessão. De acordo com Schmitt, tratava-se de uma exortação feita, pelo grupo de Essex e de Southampton, ao indeciso James para que disputasse a coroa, a qual, nas versões subsequentes, perdera significado e, como tal, fora suprimida.  


[93] Cf. Bill Bryson, Shakespeare, cit., p. 162 e p. 167.


[94] Como refere Dover Wilson, «The usurpation is one of the main factors in the plot of Hamlet, and it is vital that we moderns should not lose sight of it»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., p. 34, que desenvolve amplamente o tema à luz do constitucionalismo britânico da época, a pp. 30ss, com isso visando demonstrar a sua tese nuclear, de acordo com a qual o cenário real de Hamlet era a Inglaterra contemporânea de Shakespeare, não uma Dinamarca imaginária. «Shakespeare’s Denmark […] was Elizabethan England», afirma peremptoriamente Dover Wilson (ob. cit., p. 68). Essa ideia foi contestada por E. A. J. Honigmann, «The Politics in Hamlet and “The World of the Play”», Stratford-upon-Avon Studies, nº 5, 1963, e, depois, por Gunnar Sjögren, «Hamlet and the Coronation of Christian IV», Shakespeare Quarterly, Vol. 16, nº 2, 1965, pp. 155ss, que sustenta que as coordenadas do direito constitucional inglês da época pura e simplesmente não permitiam o desenvolvimento ocorrido em Hamlet, ao contrário com o que acontecia com o constitucionalismo da Dinamarca que, esse sim, apontava na teoria e na prática para uma monarquia electiva, tal como desenhada na trama da peça de Shakespeare. Cf. uma digressão pouco conclusiva sobre este tópico em Julia Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince…», em esp. pp. 192ss. Da mesma autora, o capítulo «The Hamlet Elections» no seu livro Thinking With Shakespeare. Essays on Politics and Life, Chicago, The University of Chicago Press, 2011, pp. 69ss.


[95] Com efeito, Cláudio, na 2ª Cena do I Acto, designa Hamlet como seu sucessor: «Que o mundo saiba / Que sois o mais próximo herdeiro deste trono,» (na tradução de António M. Feijó); ou «E que o mundo saiba / Que és o primeiro na minha sucessão, / Do trono herdeiro […]» (na tradução de José Blanc de Portugal).


[96] Cf. Frank Kermode, Shakespeare’s Language, Londres, Penguin, 2000. Id., The Age of Shakespeare, Nova Iorque, Modern Library, 2003.


[97] Na tradução de José Blanc de Portugal. «Mas prevejo que a eleição venha a recair / Em Fortimbras. Na morte lhe dou meu voto.» (na tradução de António M. Feijó). Para Dover Wilson – e, consequentemente, para Carl Schmitt –, o ponto é decisivo para traçar um «exacto paralelismo» (sic) com James I: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., p. 37. Há quem pretenda sustentar, numa visão algo maniqueísta e redutora, que para Schmitt o essencial era a designação através da dying voice, não da election, e que a peça acaba com dois duplos de Hamlet: Fortimbras, o «Duplo como Rival», que recebe a dying voice de Hamlet e lhe sucede; e Horácio, o «Amigo-Filósofo», que é «eleito» pelo príncipe como narrador da história. Fortimbras pertenceria ao domínio da «razão de Estado» e do uso ditatorial da força (chega a dizer-se «there is a bit of Schwarzenegger in Fortinbras»…), ao passo que Horácio se inscreveria numa tradição de humanismo cívico, próxima de Aristóteles, Séneca, Cícero e Montaigne, a qual, ao invés de recorrer à força, apela ao uso da «razão deliberativa» (deliberative reason): cf. Julia Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince…», cit., em esp. p. 200.  


[98] «Pelo menos rumorejam que o nosso defunto Rei, / Cujo fantasma agora mesmo apareceu a nós / Foi, como vocês sabem por Fortimbras, rei da Noruega/ (Ardendo no auge do mais forte orgulho da rivalidade) / Desafiado para combater. Com o que o nosso valente Hamlet / (Pois assim todo o mundo conhecido o estima) / Matou o tal Fortimbras. Este, por formal tratado, / Por lei ratificado e pelos juízes de armas, / Perdeu com a sua vida todas estas terras» (na tradução de José Blanc de Portugal).


[99] A questão sempre foi controversa, não decorrendo apenas das interpretações feministas de Hamlet; Dover Wilson (aqui referido apenas por ter sido uma das fontes de Schmitt), analisa-a com argumentos convincentes no sentido da prática de adultério por parte de Gertrudes: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., Apêndice A, pp. 292-294.


[100] Cf. Harold Bloom, Hamlet. Poem Unlimited, Edimburgo, Cannongate, 2003, p. 58. Id., Shakespeare. The Invention of the Human, Nova Iorque, Riverhead Books, 1998, pp. 383ss.


[101] «Poupa tua mãe; deixa que o Céu / E os espinhos que no peito alberga / A firam e destrocem».


[102] Cf. Hans Urs von Balthasar, Teodrammatica, Vol. I – Introduzione al drama, tradução italiana, Milão, Jaca Book Edizioni, 1978, pp. 450ss, em esp. pp. 458-459.


[103] À semelhança da generalidade da crítica, não refere, contudo, as narrativas islandesas anteriores ao século XIII, que supostamente terão igualmente marcado a peça de Shakespeare: cf. Israel Gollancz, Hamlet in Iceland, Londres, David Nutt, 1898.


[104] Quando tem uma oportunidade de, pura e simplesmente, matar Cláudio no seu quarto, quando rezava, e se abstém de o fazer, Hamlet parece inclinar-se para essa noção de vingança. Fazê-lo, naquelas circunstâncias, «Seria prémio, recompensa; não vingança.» (III.2). 


[105] A qual, segundo Walter Benjamin, se opõe à culpa natural: cf. Origem do Drama Trágico Alemão, cit., p. 262.


[106] «Não o esqueças: Esta visita é só / Para aguçar teu quase embotado intento. / Mas olha como o espanto assusta a mãe! / Interpõe-te entre ela e sua alma em guerra: / Para o mais fraco corpo seja a mão mais forte. / Fala-lhe, Hamlet.» (III, 4; na tradução de José Blanc de Portugal). «Não te esqueças. Esta minha visitação / Serve só para te aguçar o quase rombo propósito. / Mas olha, o espanto apodera-se de tua mãe. / Ah, insinua-te entre ela e a sua alma em armas. / Mais forte age a imaginação em corpos mais fracos. / Fala-lhe, Hamlet» (na tradução de António M. Feijó).


[107] Cf. Norbert Elias, A Sociedade de Corte, tradução portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1987.


[108] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 101.


[109] Cf. Peter Ackroyd, Shakespeare. The Biography, cit., p. 110. 


[110] Situando Shakespeare no tempo barroco, enquanto «homem barroco», cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., p. 27.


[111] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 14. No mesmo sentido, Simona Draghici salienta que a Inglaterra isabelina não poderia ter desenvolvido uma cultura barroca, enveredando antes por um «maneirismo nórdico» construído a partir do «realismo tardo-gótico»: cf. Simona Draghici, «Postface», cit., p. 69.


[112] Cf. Garry Wills, Making Make-Believe Real. Politics as Theater in Shakespeare’s Time, New Haven, CT, Yale University press,. 2014.


[113] Cf. Erving Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, tradução portuguesa, Lisboa, Relógio D’Água, 1993.


[114] Cf. Francisco de Sá de Miranda, Obras Completas, Vol. II, Texto fixado, notas e prefácio de Rodrigues Lapa, 3ª ed., revista, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1977, p. 39. Sobre estes versos, cf. Luís F. Sá Fardilha, «Sá de Miranda e a Corte», Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas, Anexo V, 1993, pp. 61ss.


[115] De que existe tradução portuguesa: cf. Johan Huizinga, Homo Ludens. Um estudo sobre o elemento lúdico da cultura, tradução portuguesa, Lisboa, Edições 70, 2003. Note-se que Huizinga faz uma violenta crítica à distinção schmittiana amigo/inimigo, considerando-a um «logro patético» (p. 233).


[116] Cf. António Araújo, «Teologia política: algumas considerações críticas», in AA.VV., Estado, Regimes e Revoluções. Estudos em homenagem a Manuel de Lucena, org. de Carlos Gaspar, Fátima Patriarca e Luís Salgado de Matos, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2012, pp. 35-67.


[117] Cf. Jürgen Moltmann, A Alegria de Viver, tradução portuguesa, Apelação, Edições Paulistas, 1974, em esp. p. 33. Moltmann debruça-se sobre a importância do jogo e do que este implicava de regresso a uma «simplicidade perdida» no contexto de uma sociedade industrial desumana. Ao invés de vencer a alienação por uma transformação do modo de organizar o trabalho, um programa libertador poderia passar, segundo Moltmann, pelo aumento do espaço dedicado ao lúdico: «no jogo, e primeiramente jogando, libertamo-nos do constrangimento do sistema de vida actual e reconhece-se, rindo, que as coisas não devem ser como elas são e como se afirma que devem ser. Aprende-se a andar direito, uma vez que de repente as cadeias foram suprimidas».


[118] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., pp. 20-21. Porventura, mais do que a oposição Estado/estado de excepção, a dicotomia mais relevante surge entre catástrofe/estado de excepção. É a ideia de catástrofe ou emergência (Ernstfall) que justifica o poder executivo supremo assumido pelo príncipe, cuja pessoa é «depositária do estado de excepção», como, na esteira de Schmitt, refere Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., pp. 57-58.


[119] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 22.


[120] Cf. Victoria Kahn, «Hamlet or Hecuba…», cit., pp. 67-68.


[121] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 33.


[122] Cf. Johan Huizinga, Homo Ludens…, cit., p. 233.


[123] Cf. Hans Urs von Balthasar, Teodrammatica, cit., pp. 128ss; Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 21.


[124] Cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., pp. 173ss.


[125] Schmitt acentuava que Spiel requeria uma associação a play (e não a game), já que, a par da dimensão ou valência representativa, implica também a evocação de um agir, de um agir antagonístico ou agonístico: cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 19.


[126] Cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., pp. 24ss e pp. 265ss, bem como a nota do tradutor português, João Barrento, na p. 121. 


[127] Sublinhando que, mais do que se inspirar em Benjamin, Schmitt acaba por contrariar pontos essenciais da sua obra, apresentando mesmo uma «contra-interpretação» (Gegendeutung), cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., pp. 27ss. Refira-se que Benjamin se apoiou expressamente em Schmitt no trecho que dedica à dimensão política do Barroco: cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., pp. 57ss.  


[128] Cf. Carl Schmitt, Terra e Mare, tradução italiana, Milão, Giuffrè Editore, 1986, pp. 51ss. Já antes, num escrito de 1941, «O mar contra a terra», Schmitt opusera as duas realidades e aludira ao desenvolvimento de uma «mentalidade marítima» (Meeresbild): cf. Carl Schmitt, Du Politique. «Légalité et Légitimité» et autres essais, tradução francesa, Puiseaux, Éditions Pardès,  1990, pp. 137-141, em esp. p. 138. O mesmo ocorrerá noutro escrito de 1941, «Soberania do Estado e liberdade dos mares», mais centrado no Direito Internacional e na «luta pelos oceanos» do século XVI: cf. Carl Schmitt, Du Politique…, cit, pp. 143ss.  


[129] Cf. Caroline F. E. Spurgeon, Shakespeare’s Imagery and What it Tells Us, Cambridge, Cambridge University Press, 1935.


[130] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 17.


[131] Cf. Julia Reinhard Lupton, «Invitation to a Totem Meal…», cit., pp. 131-132.


[132] Cf. Jennifer Rust e Julia Reinhard Lupton, «Schmitt and Shakespeare», in Carl Schmitt, Hamlet or Hecuba…, cit., pp. XXIII-XXXV; Julia Reinhard Lupton, «Invitation to a Totem Meal…», na linha de Carlo Galli, de Adam Sitze e de Johannes Türk, «The Intrusion: Carl Schmitt’s Non-Mimetic Logic of Art», Telos, Vol. 142, 2008, pp. 73ss.


[133] Cf. Alexandre Franco de Sá, O Poder pelo Poder…, cit., passim; Id., «O ficcionalismo na emergência do decisionismo schmittiano», in AA.VV., Carl Schmitt Revisitado,  cit., pp. 6ss. 


[134] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 8.


[135] Num sentido próximo, Victoria Kahn, «Hamlet or Hecuba…», cit., em esp. pp. 81ss, que refere que Hamlet ou Hécuba se insere no processo de «vitimização» (self-dramatization) na busca de reabilitação que Schmitt empreende após ser libertado de Nuremberga. 


[136] Como refere Nutall, «não temos ideia alguma daquilo que Shakespeare pensava, no fim de contas, sobre qualquer assunto relevante. O homem é esquivo – podemos quase dizer, sistematicamente esquivo. Há algo de misterioso numa figura que pode escrever tanto e revelar-se tão pouco» (cf. A. D. Nutall, Shakespeare…, cit., p. 155).

 


[137] Cf. Jonathan Bate, Soul of the Age…, cit., p. 119.


[138] Cf.  Stephen Greenblatt, Will in the World. cit., p. 336.


[139] Cf. Michel Foucault, As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas, tradução portuguesa, Lisboa, Edições 70, 1988.


[140] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 18.


[141] Cf. Peter Burke, O Mundo como Teatro. Estudos de antropologia histórica, tradução portuguesa, Lisboa, Difel, 1992.


[142] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 13.


[143] Cf. Léo Strauss, La persécution et l’art d’écrire, tradução francesa, Paris, Presses Pocket, 1989, p. 58.


[144] Segundo Simona Draghici, no interessante posfácio à edição anglo-saxónica de 2006 de Hamlet ou Hécuba, faz notar – muito justamente – que John Dover Wilson e, em consequência, Carl Schmitt, deram grande importância ao efeito da necessidade de Shakespeare atender ao conhecimento da realidade pelo público londrino mas relegam para segundo plano, praticamente ignorando-a, a acção do Master of the Revels enquanto censor das peças teatrais, ou seja, o condicionamento que este certamente terá exercido e que explicará, porventura, a emergência quer do «tabu da rainha», quer do «desvio da figura do vingador»: cf. Simona Draghici, «Postface», cit., p. 65.


[145] Cf. Jonathan Bate, Soul of the Age…, cit., p. 18.


[146] John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., pp. 52ss. De igual modo, cf. Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession…, cit., p. 9.



 
 (originalmente publicado in Estudos em Homenagem ao Prodessor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015).
 

António Araújo



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