Schmitt & Shakespeare:
a
irrupção do jogo no drama do tempo (*)
1. Um livro e a sua
circunstância − concluído no início de 1956 e
baseando-se numa conferência que proferira na Universidade Popular (Volkshochschule) de Düsseldorf em 30 de
Outubro do ano anterior, Hamlet ou
Hécuba. A irrupção do tempo no jogo do drama[1] é um breve ensaio de Carl Schmitt
(1888-1985) que não integra o essencial da sua obra, incluindo a do
pós-guerra.
É sintomático, a este respeito, que o
texto sobre Hamlet não seja sequer
citado numa das principais biografias intelectuais de Carl Schmitt, da autoria
de Joseph W. Bendersky[2], a
qual, ainda que centrada no período do nazismo, não deixa de referir os anos do
doloroso refúgio em Plettenberg e do seu confronto com a solidão, em larga
medida ditada pela morte da mulher, em 1950, mas também pela persistência da
memória da época em que Schmitt fora o Kronjurist
dos primórdios do III Reich. Aliás, Hamlet
ou Hécuba não surge referido no conjunto das obras que Bendersky considera
mais importantes na produção schmittiana do pós-guerra, como O Nomos da Terra (1950), Teoria da Guerrilha (1962) ou Teologia Política II (1969)[3].
De igual modo, Gopal Balakhrishnan, no
retrato intelectual de Carl Schmitt que publicou com o expressivo título The Enemy[4],
não alude ao ensaio sobre Hamlet, o
qual, de resto, só muito recentemente foi publicado na íntegra em língua
inglesa[5],
facto que não pode deixar de suscitar alguma perplexidade tendo em conta a
vastidão imensa do panorama editorial anglo-saxónico, a ávida curiosidade de
ingleses e norte-americanos por tudo quanto respeite a Shakespeare e, enfim, a
redescoberta contemporânea do pensamento schmittiano por autores dos mais
variados quadrantes ideológicos[6] e
situados em ambos os lados do Atlântico[7].
Não é difícil explicar as razões desta
omissão. Inquestionavelmente, Hamlet ou
Hécuba ocupa um lugar menor, ou talvez lateral, no conjunto da obra de Carl
Schmitt e, aliás, não é particularmente representativo ou ilustrativo do seu
pensamento enquanto juspublicista. Neste livro, Schmitt não avança noções
jurídico-políticas particularmente originais nem sequer explora as sedutoras
aproximações conceptuais – mas também semânticas – que o celebrizaram entre as
duas guerras, como a crítica ao parlamentarismo liberal, o decisionismo ou a
distinção entre amigo/inimigo. Para alguns, tal corresponderá, porventura, a
uma tentativa de silenciamento ou de ocultação do papel que desempenhara
aquando da ascensão de Hitler ao poder, um tempo em que, sublinhe-se por
curiosidade, influentes académicos alemães apresentavam nas conferências da Deutschen Shakespeare-Gesellschaft comunicações
que procuravam detectar na obra do Bardo
fontes inspiradoras da eugenia e do programa nazi de selecção racial[8].
Em
face de tudo isto, seria fácil resvalar em três erros.
O
primeiro consiste numa excessiva valorização deste livro, procurando mostrar à outrance que o mesmo é muito mais
importante do que aparenta, seja para a compreensão do pensamento de Carl
Schmitt, seja como contributo interpretativo para aquilo a que o próprio
Schmitt designaria, num escrito de 1957, como «selva impenetrável da
shakespeorologia»[9].
Esta sobrevalorização de Hamlet ou Hécuba
é patente nos autores, como Julia Reinhard Lupton[10],
que, no universo anglo-saxónico dos estudos literários (em particular, nos
Estados Unidos), «descobriram» este texto – de resto, algo tardiamente[11] –
e procuram apresentá-lo como uma abordagem absolutamente original a Hamlet, que prima pela complexidade
analítica (o italiano Carlo Galli, ao invés, considera-o um «texto fácil»…) e
pela profundidade conceptual.
O
segundo erro seria exactamente o inverso. Corresponderia, no fundo, a uma
desvalorização extrema do livro sobre Hamlet,
encarando-o como um mero divertissement
intelectual de Carl Schmitt ou uma dissertação erudita de alguém que, passados
os tempos de fulgor e glória de intelectual público de renome europeu,
terminada a cruciante experiência do encarceramento e da humilhação que deu azo
a Ex Captivitate Salus (1950)[12],
via agora os trabalhos que dava à estampa serem recebidos com hostilidade e até
com indignação. Causaria escândalo a publicação, em 1959, de um livro de
homenagem por ocasião do seu 70º aniversário. Autores que o louvaram nos tempos
de Weimar, como Franz Neumann ou Carl J. Friedrich, menosprezavam agora os seus
novos escritos, fazendo-o com palavras ácidas. Quando, em 1955, se procede à
edição das obras de Walter Benjamin – e o ponto é importante, pois Benjamin,
como veremos, é um autor muito influente em Hamlet
ou Hécuba – as notas em que aquele sublinhara a importância de Schmitt para
o seu pensamento foram pura e simplesmente omitidas, o que é tanto mais
estranho quanto Benjamin, num fragmento autobiográfico de 1940 (ou seja, já
durante a guerra e pouco antes de se suicidar em Portbou, quando fugia rumo a
Portugal), voltara a salientar a relevância de Carl Schmitt na sua trajectória
intelectual, facto ainda hoje qualificado por alguns como «bizarro» e a carecer
de explicação[13].
«Poderemos esquecer o que Schmitt disse e escreveu depois de 1933?», escreveu
Walter Lewald num artigo de 1950 em que explicitamente apelava a que se
seguisse a voz daqueles que exigiam a «crucificação» (sic) de Carl Schmitt.
Existem,
assim, dois erros imediatos de que nos devemos precaver quando nos debruçamos
sobre Hamlet ou Hécuba. O primeiro
leva a sobrevalorizá-lo no contexto das diversas interpretações da peça de
Shakespeare, isolando-o da restante produção schmittiana, a qual é sumária e integralmente
caracterizada, de forma assaz simplista, como mera apologia ou tentativa de
legitimação jurídica do nazismo[14].
O segundo erro, precisamente inverso, consiste em descartar Hamlet ou Hécuba como uma rêverie passageira de um homem acossado,
uma incursão oportunista por territórios mais etéreos e seguros, situados fora
da sua área de especialização académica e sem incidência na vida política de
uma Alemanha em escombros. Relativamente a este segundo erro, deve recordar-se
que Carl Schmitt, pese o facto de se ter notabilizado como jurista, sempre
deixou nas obras que publicava – recorde-se, desde logo, Romantismo Político, de 1919 – a marca da sua sólida e vastíssima
cultura humanística, histórica e literária. Essa era, aliás, uma das
características mais notáveis dos seus trabalhos, um dos traços distintivos de
quem se proclamaria, com alguma imodéstia, o último representante do Jus Publicum Europæum, desdenhando, em Ex Captivitate Salus, a árida
«tecnicidade» (sic) em que mergulhara
a ciência jurídica do pós-guerra. E note-se, por outro lado, que o interesse de
Schmitt pela obra de Shakespeare já se havia manifestado noutras ocasiões: em
1952, escreve o prólogo e as notas finais à edição alemã do livro sobre Hamlet de Lilian Winstanley[15].
Por fim, mas não menos importante, na Alemanha da época, mesmo durante a 2ª
Guerra e logo após ela, a curiosidade pela obra de Shakespeare era intensa,
como o demonstram os trabalhos publicados por autores como Albrecht Günther,
Josef Kohler, Hans Glunz ou Karl Kindt – e que Schmitt revela conhecer, com
isso evidenciando não ser um jurista que ficara aprisionado pelo positivismo
normativo ou parado no tempo, no seu tempo de Weimar ou dos alvores do III
Reich.
Existe
um terceiro risco na interpretação de Hamlet
ou Hécuba, um erro mais «sofisticado», por assim dizer. Decorre ele da
tendência para tentar enquadrar, algo forçadamente, o texto de Schmitt sobre
Shakespeare no conjunto das grandes obras do jurisconsulto alemão produzidas no
período dos anos 20 e 30. Trata-se, por outras palavras, de buscar em cada
passo e em cada momento de Hamlet ou
Hécuba uma referência ou uma alusão, ainda que veladas, a elementos
presentes nos escritos de entre-guerras. Assim, diz-se, por exemplo, que, em Hamlet ou Hécuba, Carl Schmitt, o grande
teórico do decisionismo, enfrentou Hamlet, um dos maiores expoentes da
indecisão que a cultura ocidental produziu ao longo dos séculos[16].
Se esta afirmação constitui, em boa medida, um mero jogo de palavras,
procurando expor um paradoxo mais aparente do que real, o mesmo não se diga da
tentativa de enquadrar a conferência de Düsseldorf, e o livro a que deu lugar,
no todo da obra schmittiana[17].
Indubitavelmente, em Hamlet ou Hécuba existem vestígios de
diversos tópicos do pensamento de Carl Schmitt: a oposição terra/mar e a
afirmação de Inglaterra como potência e império naval, as considerações sobre o
conceito de soberania, o problema da representação e da legitimidade, a busca
de segurança e a necessidade de ordem num mundo devastado por tensões políticas
e guerras religiosas de proporções incomensuráveis. No entanto, considerar que
este livro de Schmitt representa como que um mero prolongamento destes tópicos,
ou uma releitura de Hamlet à sua luz,
significa perder de vista a invulgar singularidade de Hamlet ou Hécuba no contexto da obra do juspublicista alemão. Daí
não deve resultar a sua exaltação como interpretação originalíssima da tragédia
de Shakespeare, como também não deve derivar a sua caracterização como texto
marginal ou espúrio. Secundário no quadro da obra de Schmitt, sem dúvida; mas
nem por isso merecedor de desconsideração como excurso anómalo e, por assim
dizer, «estranho» relativamente a essa obra.
Em síntese, importa acima de tudo ter presente
que, quando profere a conferência em Düsseldorf e, pouco depois, quando publica
Hamlet ou Hécuba, Carl Schmitt era um
pensador que enfrentava o silenciamento, quer o silenciamento que o exterior
lhe impunha, quer o que ele próprio buscava numa atitude prudencial de
autodefesa que sempre foi dos traços dominantes do seu carácter (ou, talvez
melhor, da sua personalidade). Não por acaso, o tema do silenciamento estará
muito presente na sua interpretação da tragédia de Shakespeare, em que,
sintomaticamente, uma das derradeiras falas é «The rest is silence». Após a
guerra, após ser libertado de Nuremberga – sem condenação mas também sem
exculpação –, Schmitt disse que iria permanecer na «segurança do silêncio». Em Ex Captivitate Salus evocou várias
personagens históricas ou literárias com as quais pretendia veladamente
identificar a sua condição de pária intelectual na Europa do pós-guerra. Nomeia
Benito Cereno, de Melville, Thomas Hobbes, Benjamin Constant enquanto autor de Adolphe, o Guarda Florestal de Sobre os Rochedos de Mármore, de Ernst
Jünger, e até Jesus Cristo. Num certo sentido, é também com Shakespeare e a sua
criatura – Hamlet, príncipe da Dinamarca – que Schmitt procura irmanar o seu
trágico destino.
A opção pelo silêncio constituía uma
medida de autodefesa, mas também uma imposição de um tempo em que Carl Schmitt
não encontrou editor para os seus trabalhos e em que teve de publicar sob
anonimato os dois primeiros artigos – respectivamente, sobre Donoso Cortés e
sobre Francisco de Vitoria – que escreveu após a guerra. O silenciamento e, a
par dele, a selectividade da memória seriam cuidadosamente cultivados por
Schmitt nesses anos. Assim, ao republicar, em 1958, uma colectânea de escritos
seus dos anos 1924-1954, elimina cuidadosamente os escritos que mais o
comprometiam com o nacional-socialismo: nessa antologia, nem um só texto saído
entre 1933 e 1941 foi reeditado.
Aliás,
idêntica atitude tomara em 1940, ainda que num sentido inverso: a antologia de
textos de 1923-1939 que então dera à estampa, sobre a República de Weimar, fora
cuidadosamente revista de modo a evitar a publicação de escritos que o ligassem
ao regime da Constituição de 1919. Aliás, mesmo sem forçar analogias – mas essa
é a analogia que Schmitt verdadeiramente persegue com o Bardo –, também com Shakespeare se passará algo de semelhante: a
peça Ricardo II foi representada em
1595 ou 1596, mas na versão publicada em 1597 suprimiu-se a sequência de 160
versos em que Ricardo entrega formalmente o trono. Dela consta a 1ª Cena do IV
Acto e o célebre solilóquio em que o rei contempla o espelho, interroga-se
sobre a sua identidade após ter sido forçado a abdicar e acaba por
despedaçá-lo. O tema da abdicação era tabu nesse tempo de final de reinado de
Isabel I e a eliminação daquele trecho deveu-se a razões da mais elementar prudência[18],
bastando lembrar que um deputado puritano, Peter Wentworth, permaneceu dez anos
preso na Torre de Londres por ter tratado, numa famosa intervenção parlamentar,
a questão da sucessão da rainha.
Não
é difícil, assim, e sem necessidade de enveredar por abordagens psicológicas ou
avaliações de carácter completamente descabidas, encarar a incursão schmittiana
por Shakespeare como manifestação de um dos traços mais constantes da sua
personalidade. Numa interpretação benévola, Schmitt não se moveria por um
oportunismo vulgar (lembre-se, em todo o caso, as longas horas que passou numa
fila para apresentar a sua ficha de inscrição no Partido Nacional-Socialista,
instado por Heidegger e sob o seu patrocínio…), mas pela intuição prudencial da
necessidade de adaptação a conjunturas históricas tidas por adversas ou mesmo
hostis. É a consciência da inimizade do
tempo (a par, naturalmente, de outras circunstâncias que decorrem do seu
interesse pela obra de Shakespeare) que explica não apenas a opção schmittiana
pela abordagem da tragédia de Hamlet como, em diversos momentos, o próprio
sentido dessa abordagem.
Carl Schmitt (1888-1985)
|
2.
Contra o «historicismo» e o «psicologismo» − o ensaio de Carl Schmitt
procura, logo de início, esconjurar duas linhas de aproximação ao drama A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca,
que ao longo de décadas criaram raízes e fizeram escola.
Uma,
em que o «historicismo» assume lugar preponderante, que Schmitt rejeita, mas a
que acaba, de certo modo, por aderir, como se verá adiante. Outra, aquela que
Carl Schmitt, na esteira de John Dover Wilson[19],
recusa de forma mais reiterada, frontal e radical, envereda pelo
«psicologismo». Quando assume as vestes da analogia edipiana, teve a sua génese
na correspondência de Freud com Wilhelm Fliess e, sobretudo, em Traumdeutung (1900), sendo
posteriormente desenvolvida em 1909 por Ernest Jones nas páginas do The American Journal of Psychology e,
mais tarde, pelo mesmo autor, no «Estudo psicanalítico de Hamlet» que figura
como capítulo primeiro dos seus Ensaios
de Psicologia Aplicada (1923). Em 1949, Jones publicaria ainda um livro
sobre o tema, Hamlet and Oedipus[20].
Mesmo
recentemente – e ainda que sem aderir ao «psicologismo» −, autores de primeiro
plano como Stephen Greenblatt sublinham a importância de Shakespeare ter tido
um filho de nome Hamnet, que morrera em 1596 com onze anos de idade, sendo tal
facto apontado por Sigmund Freud como decisivo para a compreensão de Hamlet[21].
A isso, Freud juntava a circunstância de o drama ter sido escrito, ao que
parece, pouco depois da morte do pai de Shakespeare, ocorrida em 1601, ponto
ainda hoje considerado essencial para a génese de Hamlet[22].
No entanto, têm sido avançadas outras explicações, ainda que não se excluam
mutuamente. Salienta-se que, em Dezembro de 1579, uma jovem chamada Katherine
Hamlett ter-se-á afogado no rio Avon quando tentava encher um balde com água;
foi realizado um inquérito para apurar se teria sido uma morte acidental ou um
suicídio, pois, neste caso, a jovem não teria direito a ser sepultada em solo
consagrado[23].
O tema será abordado pelos coveiros no final de Hamlet, aquando da sepultura de Ofélia, afirmando aqueles que até
na morte os ricos e os poderosos levavam vantagem, pois mesmo quando se
suicidavam conseguiam ser enterrados segundo os ditames do seu credo.
Em qualquer dos casos, Carl Schmitt
rejeita liminarmente – dir-se-ia, visceralmente[24] –
a linha psicológica de abordagem ao drama, que, segundo ele, havia levado a um
«labirinto inextrincável». Diz, logo na abertura do seu livro, que procurará
«compreender Hamlet partindo da sua situação
concreta», ou seja, através da abordagem da narrativa, da story, formulando perguntas simples
«qual a acção do drama e quem é o Hamlet que actua, o protagonista do drama?».
Como referirá no breve artigo de 1957 em que procura explicitar as
interpretações avançadas anteriormente (na conferência de Düsseldorf, de 1955,
e em Hamlet ou Hécuba, de 1956), o seu
propósito consistia em afastar tudo o que relevasse do domínio do psicológico,
do psicopatológico ou do psicanalítico para atingir a story, aquilo a que, na esteira de Aristóteles, se devia designar
por síntese dos «factos objectivos», o mito, dado que mythos, em grego, não significa apenas mito como fonte do drama mas
também a própria acção do drama, o desenrolar da trama, a sucessão dos
acontecimentos.
Num certo sentido, aquilo que Carl
Schmitt pretende alcançar encontra-se anunciado na própria peça. Trata-se do
célebre diálogo entre Polónio e Hamlet, que tem lugar na 2ª Cena do II Acto.
Mergulhado na leitura de um livro, Hamlet aparece a Polónio – o «intriguista»,
figura dramatúrgica de que Walter Benjamin se ocupa detidamente[25] –
e este pergunta-lhe o que estava lendo. «Palavras, palavras, só palavras
sempre», responde o príncipe. «Sobre quê? Qual a questão?», indaga Polónio.
Hamlet replica de forma enigmática, devolvendo a pergunta e personalizando a
questão: «Entre quem é a questão?». Polónio esclarece: «Queria dizer a
questão-assunto; o que líeis» (a «questão-assunto», na tradução de José Blanc
de Portugal[26],
ou «a questão tratada», na de António M. Feijó[27];
«the matter you read», no original[28]).
Pois é precisamente a «questão-tratada» em Hamlet
que, acima de tudo, Carl Schmitt quer deslindar. De certo modo, Schmitt
acompanha a rainha Gertrudes quando, a dado passo, esta exclama, não suportando
mais a retórica palaciana de Polónio: «Menos arte e mais assunto, por favor!»
(II, 2)[29].
3.
Em busca da story − para alcançar a «questão-assunto»,
reconstruindo a story na sua
inteireza objectiva, Carl Schmitt nomeia três autores que, segundo o próprio,
influenciaram decisivamente o seu escrito e, de resto, são abundantemente
citados: Lilian Winstanley (1875-1960), e em especial o seu Hamlet and the Scottish Succession
(1921)[30];
John Dover Wilson (1881-1969) com What
Happens in Hamlet, de 1935[31],
mas também The Essential Shakespeare: a
Biographical Adventure, de 1932; e, finalmente, Walter Benjamin (Ursprung
des deutschen Trauerspiels, de 1928[32]).
Tendo essencialmente por base os
trabalhos de Lilian Winstanley, Dover Wilson e Walter Benjamin, Carl Schmitt
desenvolve a sua aproximação a Hamlet em torno de dois eixos interpretativos:
−
o
primeiro, que designa por «o tabu da rainha», relaciona-se com a circunstância
de, para Schmitt, a questão da culpabilidade ou da inocência de Gertrudes na
morte do marido nunca ser esclarecida por Shakespeare;
−
o
segundo, a que chama «desvio da figura do vingador» traduz-se, nas palavras de
Schmitt, num processo de «hamletização» (Hamletisierung)
do herói.
A
tragédia do príncipe da Dinamarca, construída segundo os cânones de um drama de vingança, acaba por abrir
espaço a um momento de indecisão ou de dúvida que se situa nos antípodas do que
seria justamente expectável num drama de vingança, em que o herói surge como um
agente resoluto e determinado na concretização da vindicta[33].
Para Schmitt, a instalação da dúvida e da melancolia no espírito do príncipe da
Dinamarca, levando-o até a questionar-se a sua sanidade mental, traduziria,
como se disse, um «desvio da figura do vingador».
O
desvio da figura do vingador, mais do
que um resultado (o resultado será, porventura, a «hamletização do herói»),
consiste num processo, cujo avanço se
manifesta em diversos momentos do drama. Assim, logo no I Acto Gertrudes pede
ao filho que dispa «essas cores da noite» (I, 2) que lhe ensombravam o
espírito. Além de ser acometido por pensamentos suicidas[34],
e para lá de confessar a Horácio «Até de mim me esqueço às vezes.» (II, 2),
Hamlet dirá, mais tarde, que sofre de «maus sonhos» (II, 2). A dado passo,
pergunta-se: «Serei um cobarde?» (II, 2). Confessa, em diálogo com Guildenstern
e Rosencrantz, «Não há muito, a causa ignoro, perdi toda a alegria; deixei de
todo os costumados exercícios e isto contendeu tão fortemente com o meu ânimo
que o belo quadro da terrena natura me parece estéril promontório» (II, 2).
Ofélia lamenta-se de o ver «assim caído» (III, 1), Polónio sugere a Cláudio que
Gertrudes falasse com o filho «para lhe sondar o mal» (III, 1) e o rei acede,
dizendo que «A loucura dos grandes mais requer que se vigie» (III, 1).
Guildenstern e Rosencrantz, encarregados pelo rei de perscrutarem a alma do
jovem príncipe, dizem que este se encontrava «desvairado», padecendo de uma
«lúcida loucura» (III, 1). «Tenho doente a minha inteligência»,
confidenciar-lhes-á Hamlet (III, 3).
Quer no «tabu da rainha», quer no
«desvio da figura do vingador» Carl Schmitt encontra uma «poderosa irrupção da
realidade histórica» no interior do drama. Essa irrupção (Einbruch) da historicidade em Hamlet,
deixando cicatrizes profundas na acção dos diversos protagonistas, era
inescapável. «A realidade histórica é mais poderosa do que qualquer estética e
também mais poderosa do que o indivíduo mais genial», escreve Schmitt. Resta
saber se a irrupção da realidade histórica, além de marcar Hamlet, não arrastou consigo o próprio William Shakespeare e,
inclusivamente, Carl Schmitt e o ensaio que escreveu no dramático pós-guerra,
num tempo em que era ostracizado e via desabar em seu redor o mundo pretérito
em que se notabilizara como jurista e pensador político.
As
conclusões a que chega não são absolutamente originais[35]
− nem, de resto, era esse o propósito de
Carl Schmitt[36].
Quanto ao «tabu da rainha», Gertrudes seria uma encarnação velada, mas
plenamente perceptível para o público londrino da época, de Maria Stuart e dos
rumores que então corriam sobre o seu envolvimento na morte de Henrique Stuart,
seu marido e pai do futuro rei James. Por seu turno, o «desvio da figura do
vingador» decorreria da necessidade de preservar a imagem do rei James, o
monarca que ascendera ao trono em condições de enorme complexidade e que
pertencia a uma linhagem que, como nenhuma outra, se vira dilacerada pela cisão
religiosa que então fracturara a Europa.
4. Da story à History –
Tempo de desordens!, exclama
Hamlet no final do I Acto da tragédia. Na verdade, as dramatis personæ que se cruzam nessa época de perigos vários
constituem a encarnação perfeita do ambiente tumultuoso e conspirativo que, a
uma escala mais reduzida, o Bardo
situará na corte de Elsinor.
Maria,
a quem se dirige o «tabu da rainha» de Hamlet,
tornara-se rainha regente dos Escoceses com uma semana de idade, casando mais
tarde com Francisco II. Depois de enviuvar, regressaria à Escócia, onde casou
com o seu primo, Henrique Stuart, Lorde Darnley, que, entre o mais, ordenou a
morte do seu secretário privado, o católico David Rizzio, assassinado durante
uma festa em Holyrood Palace, na presença de Maria, que se encontrava grávida
(Darnley, segundo se diz, julgava que a mulher engravidara de Rizzio). Por sua
vez, Lorde Darnley morreria na sequência de uma explosão que, ao que parece,
fora orquestrada por James Hepburn, 4º conde de Bothwell. Este seria julgado e
ilibado em Abril de 1567 e, um mês depois, casaria com Maria da Escócia, depois
de a ter raptado e, segundo se diz, violado. Maria seria presa pouco depois e,
em Julho desse mesmo ano de 1567 – ou seja, cerca de dois meses depois de ter
casado –, seria forçada a abdicar em favor do seu filho, James, na altura com
pouco mais de um ano de idade. Tendo tentado, sem sucesso, conquistar o trono
de Inglaterra, de que se julgava a legítima detentora (sentimento que era
partilhado por muitos ingleses católicos e que em 1569 estaria na base da
rebelião conhecida por Rising of the
North), acabaria por ser confinada por Isabel I em diversos castelos e casas
senhoriais. Ao fim de 18 anos sob custódia, seria acusada, condenada e
executada por conspirar contra Isabel I. A sua vida fora uma sucessão de lutas
e intrigas, desde o conflito entre a Inglaterra e a Escócia após a morte do seu
pai, Jaime V, e da decisão do Parlamento que anulou o Tratado de Greewinch (que
previa que, quando Maria, na altura com seis meses de idade, chegasse aos dez
anos, casaria com o príncipe Eduardo de Gales), passando pela convulsão
suscitada pela morte violenta de Lorde Darnley e pelo levantamento que a
forçaria a abdicar e, enfim, culminando na sua detenção e subsequente execução,
por ordem de sua prima Isabel.
Será
difícil descrever em breves linhas a vida tumultuosa de James Hepburn, 4º conde
de Bothwell e o principal suspeito do atentado à bomba que matou Lorde Darnley,
marido de Maria Stuart. Esta seria a terceira mulher de Bothwell, que a terá
conhecido ainda em França. Após inúmeras peripécias, que incluiriam a sua
prisão sem julgamento no Castelo de Edimburgo, em 1562, de onde conseguiu
escapar, raptaria e casaria com Maria Stuart. A oposição palaciana a este
casamento levá-lo-ia a fugir, sendo-lhe confiscados os títulos e as
propriedades. A sua fuga por mar, perseguido por nobres seus rivais, envolveria
uma batalha naval e uma tempestade, que o forçariam a rumar até à Noruega. O
seu plano consistia em chegar à Dinamarca[37]
e, com o apoio do rei Frederico II, formar um exército que restituísse o trono
a Maria Stuart. Contudo, seria preso na Noruega e conduzido ao porto de Bergen.
Bergen era a terra natal da sua primeira mulher, Anna Throndsen, que não perdeu
a ocasião para se vingar, com apoio da sua poderosa família e, em particular,
do seu primo, Erik Rosenkratz (curiosamente, Rosencrantz é um dos nomes de uma
das personagens de Hamlet). Num
processo que lhe foi movido por abandono da mulher, Anna reclamou a restituição
do seu dote, mas Bothwell tê-la-á persuadido a aceitar o seu navio a título de
indemnização. Tudo indicia que o rei Frederico o teria libertado se acaso não
tivesse sabido do seu envolvimento na morte de Lorde Darnley. Por isso, decidiu
mantê-lo sob detenção na Dinamarca, acabando por enviá-lo para o Castelo de
Dragsholm, onde Bothwell acabaria por enlouquecer, morrendo aos 44 anos de
idade. Um ponto extremamente curioso, e nem sempre referido, é que Anna
Throndsen, a aristocrata dano-norueguesa que foi a primeira mulher de Bothwell
e que dele se vingou terá, segundo vários rumores, possivelmente fantasiosos,
estado implicada na redacção de um conjunto de cartas, as Casket Letters, encontradas na posse de um criado de Bothwell
depois de este fugir da Escócia. As Casket
Letters, elaboradas por conseguinte antes de Bothwell ter sido detido em
Bergen, foram uma das principais provas da acusação no julgamento que ditaria a
morte de Maria Stuart.
Outra
personagem central na peça de Shakespeare – ou fora dela –, Robert Devereux, 2º
conde de Essex, teve igualmente uma vida que reflecte bem o tempo de desordens de que falava Hamlet.
Após enviuvar, a sua mãe casara com o conde de Leicester, favorito da rainha
Isabel I e padrinho de Devereux. Este, que fora educado no Trinity College,
tornar-se-ia favorito da rainha, sucedendo ao seu padrasto nessa «função» e no
cargo de Master of the Horse, o
terceiro dignitário da Corte. Mais tarde, a rainha atribuir-lhe-ia o monopólio
dos vinhos adocicados, que pertencera a Leicester, e passaria a integrar o Privy Council. Esteve com Drake na English Armada, que tentou perseguir os
espanhóis após a derrota da Invencível
Armada. Isabel I procurara convencê-lo a não se envolver nesta expedição
punitiva, mas Essex só regressará a Inglaterra depois do falhanço de uma
tentativa de tomada de Lisboa, havendo ainda notícia de um ataque a Faro, onde
Essex terá saqueado a biblioteca do Paço Episcopal, pertencente ao bispo D.
Fernando Martins Mascarenhas, e mais tarde doada pelo saqueador à Bodleian
Library, em Oxford[38].
Aliás, se Essex se cruza com Shakespeare, se a sua presença ecoa em Hamlet, como assevera Carl Schmitt, há
quem sustente, baseando-se no diário de William Keeling, o comandante do navio
em que o tradutor viajava, que a primeira tradução desta peça para uma língua
estrangeira foi feita para o português, em 1607, por um negro nascido na Serra
Leoa e educado na fé católica em Cabo Verde, chamado Lucas Fernandez, tendo
sido encenada a bordo da embarcação Red
Dragon, naquela que foi a primeira representação de uma obra de William
Shakespeare fora da Europa[39].
Além da tentativa de tomada de Lisboa, Essex e Raleigh comandariam em 1597 a Islands Voyage, também chamada Essex-Raleigh Expedition, a qual visava
atacar os navios espanhóis, ocupar e destruir as possessões espanholas nos
Açores e interceptar, justamente nesse arquipélago, a Spanish Treasure Fleet ou Silver
Fleet, ou seja, o comboio de embarcações que atravessavam o Atlântico
carregados de prata, ouro e pedras preciosas das Américas. Uma vez mais, Essex
desobedeceu às ordens da rainha e, em vez de começar por destruir a armada
espanhola, procurou interceptar a frota da prata, uma empresa que se viria a
revelar desastrosa e que culminou no regresso a Inglaterra, com Essex e Raleigh
a recriminar-se mutuamente pelo fracasso desta missão. De pouco lhes valeria a
disputa já que ambos acabariam os seus dias no cadafalso. O desastre dos Açores
contribuiria, de forma decisiva, para o declínio do apreço de Isabel I pelo seu
favorito, que ainda mais se adensou com o estrondoso falhanço da sua próxima
missão, a qual consistiu em debelar uma rebelião ocorrida na Irlanda no
contexto da Guerra dos Nove Anos. Enquanto Lord
Lieutenant of Ireland, Essex chefiou uma força de 16.000 homens – a maior
que até então a Inglaterra enviara àquele território – para combater o
movimento liderado por Hugh O’Neill, conde de Tyrone, com o apoio de Espanha e
da Irlanda. Para piorar a sua situação, Essex decidira, ao arrepio das ordens
superiores, regressar a Londres por mar e, mais grave ainda, apresentou-se no
quarto da rainha quando esta ainda não se encontrava devidamente vestida e
adornada. Teve de enfrentar o seu primeiro julgamento, que acabou na sua
condenação e na sua destituição de todos os cargos que ocupava. Em Agosto de
1600, o monopólio dos vinhos, a sua principal fonte de rendimentos, não foi
renovado e, muito provavelmente em resultado de tudo isso, começou a planear
uma revolta que, debelada pelas tropas leais a Isabel I em 1601, o levaria a um
segundo julgamento e, desta vez, à sua decapitação. Shakespeare far-lhe-á uma
breve alusão em Henrique V e, segundo
se diz, em Much Ado About Nothing.
Para Carl Schmitt, essas não são as únicas obras dramatúrgicas do Bardo do Avon em que Robert Devereux, 2º
conde de Essex, está presente. Também em Hamlet
ocupa lugar de destaque, de acordo com a interpretação schmittiana.
Neste
tempo de sangue e desordens, a dramatis
personæ que merece o maior realce por parte de Carl Schmitt é,
indiscutivelmente, o rei James. O seu pai fora assassinado, provavelmente por
aquele que, escassos dois meses depois do homicídio, casaria com a sua mãe.
Esta, por sua vez, seria executada, como executado seria também o filho de
James, Carlos I. O seu neto foi afastado do trono e morreu no exílio. Dos
Stuarts, dois morreram no patíbulo e apenas oito dos soberanos que ostentaram
este apelido chegariam aos cinquenta anos de idade.
James
fora coroado quando tinha pouco mais de um ano de idade, a sua mãe fora
designada regente da Escócia com uma semana de vida. Como salienta Carl
Schmitt, todos pretenderam apoderar-se de James, que foi raptado, escondido,
detido, sequestrado, ameaçado de morte. Baptizado como católico, seria retirado
a sua mãe e educado na fé protestante. Enquanto Maria Stuart morreu na fé
católica, James teve de se unir aos protestantes e manter boas relações com
Isabel I, a principal inimiga de sua mãe, que a teve praticamente reclusa durante
18 anos.
Crescendo
nesta atmosfera densa de conflitos e intrigas, cedo teve James de aprender as
artes do ardil e da dissimulação para conseguir afirmar-se – e até sobreviver –
num tempo dilacerado pela violência política e religiosa, por disputas sangrentas
entre grupos e facções rivais. Teve de se fazer Hamlet, ainda que Carl Schmitt
advirta que não devemos, de modo algum, resvalar no simplismo de considerar que
Shakespeare quis identificar de forma linear James I – curiosamente, casado com
uma princesa dinamarquesa[40] –
com o príncipe de Elsinor. A ambiguidade (ou, em termos schmittianos, a
resistência à pulsão decisionista), mesclada de gestos de força e de afirmação
de autoridade, foi a chave que permitiu a James suceder a Isabel, debelar
revoltas como a Gunpowder Plot de
1605 ou gerir inúmeros conflitos com o Parlamento ao longo de duas décadas de
reinado.
Enquanto
procurava fugir ao destino trágico dos Stuarts, conseguindo morrer no trono –
um trono que ocupou durante vinte e dois anos, um feito notável, ainda que não
comparável aos quarenta e cinco anos do reinado isabelino (devemos contar, no
entanto, que James já ocupava o trono da Escócia havia cerca de vinte anos) –,
o rei afirmou-se como pensador e filósofo, e promotor da tradução vernacular da
Bíblia. Henrique IV de França apelidou-o de le
plus savant fou de la chrétienté e, na verdade, a sua cultura e erudição
permitiram-lhe escrever, em 1597, Daemonologie
em que, segundo Carl Schmitt, o problema da aparição dos espíritos é tratado da
mesma forma do que em Hamlet. No ano
seguinte, publicará The True Law of
Monarchies, mas será Basilikon Doron,
de 1599, que o consagra como um dos principais teorizadores do direito divino
dos reis, tese que emerge em várias obras de Shakespeare, e, de acordo com
Schmitt, surge sobretudo em Hamlet.
Trata-se de um facto tanto mais singular quanto, nesta peça, o monarca em
funções é um usurpador, o que suscita perplexidades em torno de um dos tópicos
mais caros ao juspublicista alemão, o da legitimidade. Um usurpador pode
reivindicar o direito divino? Ou, ao invés, é a restauração do direito divino
que impõe a morte do rei ilegítimo, justificando, por sua vez, a vingança que
constitui o fulcro do drama da Dinamarca?
Deixando
em aberto a resposta a estas questões, sempre se dirá que a afirmação de
Schmitt segundo a qual Hamlet é a
peça de Shakespeare em que se manifesta, de forma mais evidente, a teoria do
direito divino dos reis parece ser bastante questionável. A origem divina da
investidura régia (e, logo, o seu carácter sagrado, vicarial ou representativo
do sacro) aparece, de um modo muito mais explícito, noutros lugares da obra
shakespeariana, em que o monarca é designado por «substituto de Deus» (Ricardo II, I, 2), Seu deputado eleito (Ricardo II, I, 2; III, 2; IV, 2. Henrique VI, Primeira Parte, V, 3. Henrique VI, Segunda Parte, III, 2), Seu ministro, Seu capitão, Seu
lugar-tenente. De igual modo, existem epítetos que aludem à majestade
associando-lhe uma forma sacral, como «bendito», «o rei coroado» e, sobretudo,
o «ungido» (anointed), expressão que
aparece sob diversas fórmulas: o «ungido aos olhos de Deus» (Ricardo II, I, 2), o «rei ungido» (Ricardo II, II, 3), o «ungido do Senhor
(Ricardo III, IV, 4), o «Corpo
ungido» (Ricardo III, V, 3), a «cabeça
ungida» (Henrique IV, Segunda Parte,
Prólogo)[41].
No entanto, perscrutar em cada expressão de Shakespeare um sentido político
determinado ou determinável, procedendo a partir daí a uma tentativa de
reconstrução do seu ideário, é algo que se afigura infrutífero e até arriscado.
Desde logo, porque é duvidoso poder-se sustentar que possuía um pensamento
político conceptualmente estruturado, articulado e coerente. Assim, por
exemplo, há quem refira que Shakespeare, ao colocar em Ricardo II o absolutismo num contexto medieval, situou
historicamente esse conceito, retirando-lhe a sua dimensão transcendental[42],
o que, por certo, não constitui um contributo favorável à teoria do direito
divino dos reis, o que poria em causa tudo quanto atrás se disse sobre a influência
dessa teoria em diversas obras de Shakespeare. Por outro lado, devemos recordar
a circunstância singela, mas decisiva, de William Shakespeare nos ter legado
nada menos do que 884.467 palavras, as quais não possuem, naturalmente,
significados precisos do ponto de vista conceptual, sobretudo em domínios onde
Shakespeare não era especialmente versado nem interessado, como a teoria
política. O levantamento obsessivo da sua linguagem, que permitiu detectar o
uso de 138.198 vírgulas ou de 15.785 pontos de interrogação, conduz àquilo a
que Schmitt, referindo-se às interpretações de cariz psicanalítico, designou
por «labirinto inextrincável». Tendo presente que, em Hamlet, o jovem príncipe recita 1.495 versos, estará votada ao
fracasso qualquer tentativa de em cada um deles descobrir um propósito
deliberado ou um sentido à clef
introduzido pelo autor.
5. A irrupção do tempo
no espaço dramático – sem entrar numa exegese política
aprofundada da tragédia shakespeariana, alguns pontos merecem ser mencionados para
compreendermos o sentido da interpretação avançada por Carl Schmitt.
Desde
logo, o clima ensombrado de nuvens de incerteza e medo que enquadra toda a
acção dramática. Na 1ª Cena do I Acto, Horácio afirma que a aparição do
Espectro na esplanada do Castelo «traz à nossa terra qualquer estranho mal».
Praticamente a seguir, dá conta dos rumores que corriam quanto à intenção de
Fortimbras – príncipe da Noruega que em torno de si reunira «um grupo de duros
sem terras / Que por vida e comida vão à aventura» (I, 1) – de «recobrar com
bruteza» os territórios que o pai de Hamlet conquistara. Utilizando uma imagem
de extraordinária beleza, Horácio diz: «Há orvalhos de sangue; está doente o
sol e o húmido astro» (I, 1)[43]. Orvalhos de sangue que percorriam a
Dinamarca («Algo está podre no reino da Dinamarca!…», na célebre frase de
Marcelo na 4ª Cena do I Acto), mas que percorriam igualmente a Inglaterra
daquele tempo ou, mais amplamente, toda a Europa ferida por uma cisão
político-religiosa sem precedentes. «Tempo de desordens! Ó maldita sorte / De
ter nascido para as corrigir!» (I, 5), exclamou Hamlet.
É nos tempos de desordens que se testa
o carácter dos homens. O Espectro, no dizer de Horácio, confrontava os vivos
com a necessidade de darem provas da «honra e [da] lealdade do tempo presente»
(I, 1). O tema do desconcerto do mundo e do tempo, desafiando e pondo à prova
as virtudes humanas, será introduzido por Hamlet no diálogo com Polónio em que,
a dado passo, afirma: «Pela forma como vai o mundo ser-se honesto é ser homem
só pescado entre dois mil» (II, 2). «Não há vilão nascido na Dinamarca / Que
não seja velhaco rematado.», novamente nas palavras de Hamlet (I, 5). Não
admira, por conseguinte, que as questões da lealdade e da autenticidade de
carácter percorram a obra do primeiro ao último acto, o que possui, como é
óbvio, implicações psicológicas, antropológicas mas também políticas. «Sê mais
verdadeiro para ti próprio…», aconselha Hamlet a Horácio, a primeira vez que se
encontram, quando o fiel companheiro regressa de Wittemberg, cidade onde
Martinho Lutero afixara as suas 95 teses e que, significativamente, é por mais
de uma vez citada na peça de Shakespeare (desde logo, como local onde o
príncipe seguia os seus estudos, existindo aí, como se sabe, uma das mais importantes
universidades protestantes da época, onde Lutero e Melanchthon foram
professores). Quanto à questão da fidelidade, emerge de forma muito notória na
comparação entre Horácio, que se mantém leal ao príncipe, e os traidores
Rosencrantz e Guildenstern. Junto destes, Hamlet invoca deveres recíprocos
(«pelos direitos da camaradagem, pela paridade da nossa juventude, pela sempre
guardada obrigação da amizade»: II, 2), mas deles não obtém a fidelidade
esperada. Aproximando-se o desfecho da peça, Hamlet irá comparar Rosencrantz a
uma esponja, que suga o favor de Cláudio, a sua autoridade e as suas
recompensas (IV, 1). E, mais ainda será Hamlet que, através de um engenhoso
estratagema, ditará a morte dos seus antigos companheiros que o atraiçoaram no
instante decisivo.
Num plano algo diferente da lealdade,
mas ainda num quadro que lhe é próximo – o da autenticidade das relações
humanas –, importa afirmar que parece ser sincera a devoção maternal de
Gertrudes por Hamlet. Se dúvidas existem quanto à sua culpabilidade na morte do
marido, o amor pelo filho é apresentado como verdadeiro e autêntico. Gertrudes
procura justificar, perante Cláudio, a morte de Polónio às mãos de Hamlet, que,
segundo ela, actuara «sem ver, de cabeça perdida» (IV, 2). Mais adiante, Cláudio
corrobora, junto de Laertes, a devoção da rainha pelo príncipe. Essa é, aliás,
uma das razões que o rei invoca para não ter ainda punido Hamlet. Laertes
pergunta-lhe o motivo pelo qual, tendo em conta a «segurança» e a «prudência»,
não aplacara os comportamentos do seu sobrinho. Cláudio invoca duas razões,
«Que talvez vos pareçam bem pouco importantes / Mas para mim são poderosas…». A
primeira prendia-se justamente com a devoção maternal de Gertrudes: «A Rainha,
sua mãe, quase só por ele vive». É extremamente interessante notar que,
aduzindo a segunda razão para tolerar as atitudes de Hamlet, Cláudio afirme,
com hipocrisia ou não, que também ele nutria idêntico afecto pelo jovem
príncipe: «Quanto a mim, por virtude ou por meu mal, / Sou-lhe tão chegado pela
alma e pelo corpo / Que, qual estrela só movente em sua esfera, / Só por ele
vivo» (IV, 7).
Tendo em conta o desconcerto do mundo
circundante e a perfídia enraizada no coração dos homens, só através do jogo e
do simulacro poderia Hamlet articular o seu plano de vingança. O príncipe
dinamarquês não seria um César Bórgia, como pretendeu Salvador de Madariaga num
escrito de 1948, que Schmitt cita[44];
mas, em contrapartida, também não era um jovem ingénuo e desconhecedor dos
males do mundo. Pelo contrário, além de parecer ser atraiçoado por sentimentos
de inveja face à perícia de Laertes no manejo das armas (IV, 7), reclama
possuir o dom da profecia (I, 5) quando o Espectro lhe comunica que o assassino
era o seu tio, Cláudio. Realista, dirá a Horácio existirem mais coisas no Céu e
na Terra do que na vã filosofia (I, 5). Depois, falando com Rosencrantz e
Guildenstern, mostra ter-se apercebido de que ambos tinham sido chamados à
corte pelo rei e pela rainha, facto que o olhar dos seus companheiros não conseguiu
esconder da sua visão arguta: «Mandaram-vos e há qualquer coisa de confissão
nos vossos olhares… Coisa que a vossa candura não tem arte para disfarçar» (II,
2). Não hesita em manipular Ofélia[45],
e o amor que esta lhe tem, para se fazer passar por louco (II, 1; III, 1),
sendo esta, no final, que realmente enlouquece, perdendo a razão e a vida (IV,
5). E, quando engendra o seu plano vingativo, solicita a Horácio que, como
sempre acontecera entre ambos, confie cegamente nos seus actos, «Por mais
estranho que pareça o que eu fizer / Como se acaso achardes que ajo / Como se
cómico ou palhaço fosse,» (I, 5). «Se disser frase que se não entenda […] /
Ambiguidades quaisquer, sem nexo, / Fingi nada perceber, nada façais…» (I, 5).
«Que grande velhaco […] eu sou!» (II, 2), chega a exclamar quando falava
consigo próprio.
Ao
entrar no domínio da representação da
loucura (v.g., no encontro tido
com Ofélia e que esta relata ao seu pai, Polónio, na 1ª Cena do II Acto), como
forma de autodefesa[46] e
de concretização do seu ardil, Hamlet parece aderir à lógica do tempo, ao
imperativo das circunstâncias, explorando ao limite o carácter subversivo
(verdadeiramente des-ordeiro) de uma
loucura que, afinal, se vem a revelar a mais poderosa das suas armas. Graças à
loucura simulada, Hamlet pode fazer e dizer o que quiser, revelando-se um
astuto conhecedor – ou jogador – de aparências. Aliás, havia-o dito a seu tio,
logo no I Acto: «[…] em mim há qualquer coisa dentro / Muito para além do
parecer; o resto é simulacro» (I, 2). Fazendo-se passar por louco, conseguiria
mais facilmente, por exemplo, furtar-se a revelar os seus intentos, derrotando
as tentativas que, a mando do rei e da rainha, Guildenstern e Rosencrantz fazem
para penetrar na intimidade do seu ser (III, 1). O simulacro da loucura era um
salvo-conduto de acção, mas também, ou principalmente, um dispositivo de
ocultação das reais intenções do príncipe.
Uma
questão que permanece em aberto – e essa era, e é, a questão – consiste em determinar em que medida a própria indecisão
de Hamlet e a sua tibieza não fazem parte da verdade encenada, da verdade encenada pelo jovem príncipe perante
os cortesãos de Elsinor, o que faria com que existissem não uma, mas duas, play within a play no interior do drama:
a representada pela companhia teatral que apresenta a morte de Gonzaga e, por
outro lado, a protagonizada por Hamlet ao longo de toda a tragédia[47].
Que o teatro é capaz de gerar ou desvendar a verdade, de produzir a própria
realidade, é algo que a representação cénica da morte de Gonzaga demonstra na
plenitude. Com efeito, será através da representação de um assassínio que o
assassino se desmascara. O próprio Hamlet o reconhece: tinha consigo a
informação que o Espectro lhe transmitira; mas, admitindo que se tratava de um
demónio que o enganara para o fazer perder, explorando a sua debilidade
melancólica, seria a representação teatral, e a reacção do monarca em face
dela, que dissiparia todas as dúvidas que no seu espírito subsistissem quanto à
culpabilidade de Cláudio: «Hei-de / Ter provas mais directas; a peça mas dará.
/ Com ela apanharei do Rei a consciência.» (II, 2). E, de facto, após o rei
abandonar abruptamente a representação de que Hamlet era encenador, o príncipe
adquire, quase em termos disfóricos, um novo vigor na concretização do seu
plano de vingança. Sozinho, diz: «Agora, sangue ardente beberia / E capaz sou
de tão terríveis feitos / Que o Sol por mim no Céu tremera» (III, 2). O príncipe melancólico transfigura-se num
vingador ávido de sangue e de morte, porventura até da sua própria morte: «De
ora avante, meus pensamentos serão só de morte – / Morte sanguinária – ou de
nada valem!» (IV, 4).
A
loucura, ou o seu simulacro, era o expediente capaz de produzir a verdade numa
corte dominada pela hipocrisia, hipocrisia que se estendia a todo o reino
apodrecido, em que, como acentua Hamlet, os que outrora desdenhavam Cláudio
agora pagavam vinte, trinta ou cem ducados por um retrato seu (II, 2). As
voltas da Fortuna, tema clássico que possui vários afloramentos em Hamlet (II, 2), serão expostas na peça
levada à cena no castelo perante Cláudio, Gertrudes e todos os cortesãos: «Cai
o poderoso, vão-se-lhe os amigos / Enriquece o pobre não tem inimigos» (III,
2).
Ao
aperceber-se de que este desconcerto se estendia a todo o mundo, mundo onde os
homens mais não eram do que «bobos da Natureza» (I, 4), «quintessência deste pó
da terra» (II, 2), Hamlet, que já fora acometido por sentimentos suicidas,
poderá ter encontrado na morte a saída para a realidade que o aprisionava («A
Dinamarca é uma prisão», diz, ao que Rosencrantz responde: «Então é que o mundo
o é também» – II, 2). Assim, o fatal duelo com Laertes poderá constituir o
desenlace intimamente desejado pelo jovem príncipe. Agonizante, impede Horácio
de o acompanhar no seu trágico destino, ou desígnio, para que o amigo fiel
possa narrar aquela à posteridade (V, 2). Na peça, todos morrem – o pai de
Hamlet, Polónio, Ofélia, Gertrudes, Cláudio, Laertes, Hamlet. Talvez melhor,
todos têm a graça ou a ventura de morrer. Excepto Horácio que, à maneira
romana, queria acompanhar na morte o seu companheiro. Hamlet proíbe-o e, no
fundo, obriga-o a sobreviver. Quanto a si próprio, faz a travessia de um drama de vingança para um drama de destino, do «destino que
desliza ao encontro da morte»[48].
Assim, Walter Benjamin observa que «Hamlet quer morrer por obra do acaso, e uma
vez que os adereços ominosos se juntam à sua volta como se ele fosse seu senhor
e conhecedor, no final deste drama trágico, como algo que lhe é inerente e que
ele supera, cintila por um instante a luz do drama de destino»[49].
Mas
se há momentos em que a indecisão é real, a ponto de o Espectro ter de intervir
para lhe pôr termo, como acontece no diálogo de Hamlet com Gertudes no quarto
desta (III, 4), ao jovem príncipe não faltava a frieza necessária a jogar o
xadrez da hipocrisia[50].
Antes de se deslocar ao quarto de sua mãe[51],
já plenamente convicto da culpabilidade de Cláudio e, por conseguinte, sedento
de vingança, percebe que deve conter a sua fúria, calibrar a ira, preservar a
dissimulação: «Agora, brando, vou ver minha mãe. / Ó coração, não esqueças tua
natureza, / Não faças, não deixes que a sombra de Nero / Entre neste peito.
Falarei de adagas mas sem as usar. / Alma, língua minha, será a hipocrisia / O
que em minhas palavras aceso ela pressinta – / Confirmá-lo jamais minha alma
consinta!...» (III, 2). O jogo deve prosseguir, pois, até ao desenlace final,
fatídico para todos, salvo para Horácio, transformado em involuntário cronista
do sangrento drama da corte de Elsinor, que claramente se aproxima, como intuiu
Benjamin, de um drama de destino e
não apenas de um drama de vingança.
Muito
possivelmente, Carl Schmitt não acompanharia esta ideia, como não acompanhou
Walter Benjamin quando este referiu a existência de um vislumbre de «centelha
cristã» no destino de Hamlet[52].
Schmitt rejeita com veemência tal ideia, do mesmo modo que refuta qualquer
desvio ao relato objectivo da story,
que, com alguma jactância, reclama ter feito, o que sempre implicaria a
primazia da sua proposta interpretativa sobre todas as demais. Em especial,
Carl Schmitt congratula-se pelo facto de o seu método de apreciação de Hamlet sob uma perspectiva histórica ser
capaz de questionar, ameaçando-o, o monopólio interpretativo da história da
arte que o materialismo dialéctico tinha alcançado. A conferência de Düsseldorf
e Hamlet ou Hécuba, como se vê,
continham, de forma algo elusiva, um programa político – ou político-ideológico
– de confronto com o marxismo, o máximo a que, naquele contexto de 1955-1956 e
com os antecedentes que haviam marcado a sua biografia, Carl Schmitt se poderia
permitir. Mostra, de todo o modo, que a tendência polemizante que constitui um
dos traços mais característicos do período áureo da sua obra[53].
Quanto à caracterização do monarca –
ou, se preferirmos, do poder –, existem elementos que podem não corresponder à
ideia de uma teoria absolutista da autoridade régia. Quando Laertes pede ao rei
Cláudio que o deixe regressar a França, o monarca revela uma completa abertura
a ouvir os seus súbditos («Ninguém, falando de razão ao Rei da Dinamarca, /
Perdeu suas palavras.»), e não autoriza a viagem sem antes perguntar se o seu
pai, Polónio, dera permissão; só então a autoridade régia pronuncia a sua
palavra, desse modo deixando intocada a autoridade parental (I, 2). Pouco
depois, há um diálogo de Horácio com Hamlet em que a humanidade do monarca é
sublinhada pelo seu filho. Horácio refere «Vi-o uma vez. Era um grande rei», ao
que Hamlet responde «Era um homem em tudo e por tudo» (I, 2). Monarca e homem
que, em vida, também cometera crimes, expiando agora, sob a forma de Espectro,
a culpa por os haver praticado, tendo morrido sem sacramentos, sem
extrema-unção. Deambulava pelo Purgatório, conceito católico que Shakespeare
introduz na peça, correndo riscos, uma vez que a doutrina protestante não só
negava esse conceito como rejeitava a existência de fantasmas: as aparições
eram entidades diabólicas disfarçadas, tema no qual James I era versado[54].
Mais ainda, apesar de Schmitt considerar que as dúvidas de Hamlet no I Acto se
situam no terreno da concepção protestante dos espíritos, o certo é que
Shakespeare coloca o Espectro a jurar por São Patrício, o santo patrono do
Purgatório[55].
E, quando o Espectro fala com o filho, diz estar condenado algum tempo a
vaguear de noite, «Até que os loucos crimes dos meus viventes dias / Os purguem
e me sejam perdoados» (I, 5).
Se a finitude da existência terrena é
evocada em diversas passagens[56],
este tema, quando abordado relativamente aos monarcas, suscita uma questão
específica, a dos dois corpos do rei.
Quando profere a sua conferência em Düsseldorf, Schmitt não conhecia,
obviamente, o trabalho de Kantorowicz, já que The King’s Two Bodies. A Study in Mediaeval Political Theology só
será publicado em 1957. Ainda assim, o dualismo dos corpos do rei era-lhe
familiar[57].
Mais do que isso, em Hamlet existem
referências claras ao corpo natural do rei, que goza, sofre e morre como o de
qualquer outro ser humano, seja qual for a sua condição[58].
Na 2ª Cena do I Acto, no diálogo entre Horácio e Hamlet, é patente a dualidade
entre monarca («Era um grande rei») e homem («Era um homem em tudo e por
tudo»). «O corpo está com o Rei mas o Rei não está no corpo…», diz Hamlet na 1ª
Cena do IV Acto, o que, sublinhe-se, não significa necessariamente uma alusão
consciente à doutrina medieval dos dois corpos do rei. Para mais, o corpo a que
aqui se faz referência, pelo menos numa primeira leitura, é o de Polónio,
morto. Mais explícita é uma passagem em que, logo a seguir, Hamlet dialoga com
Cláudio. Aí, a corporeidade dos monarcas é afirmada abertamente, e com o
propósito claro de associar a essa natureza corpórea uma noção de finitude. Diz
Hamlet: «Qualquer homem pode pescar com um verme que comeu um rei e comer o
peixe de que dele se alimentou». O verme havia comido o cadáver do rei, o peixe
comera o verme que o pescador usara como isco, o pescador come o peixe. No
limite, e citando Hamlet, «um rei pode passear pelas tripas de um mendigo» (IV,
1).
A par da indecisão, surgem espaços de
não-decisão ou, melhor dizendo, de decisão
condicionada. Por outras palavras, os soberanos, mesmo quando investidos de
poder absoluto, não ocupam de pleno o espaço da decisão. Como Laertes diz à
irmã, Ofélia, o «seu escolher é limitado» (I, 3). Laertes procurava avisá-la
para não pôr em causa a sua honra por Hamlet, já que este, no momento decisivo,
poderia não a desposar, mesmo que a amasse: «[…] deveis ter cautela: seu
nascimento, / Sua alta estirpe dá-lhe um querer também alheio… / Sujeito assim,
talvez nem sempre possa / Talhar seu destino com os desvalidos / Pois o seu
escolher implica outros valores: / A salvação, a sanidade de todo o seu Reino».
Essa era a razão e o princípio a que deveriam os monarcas sujeitar toda a sua
acção, mesmo na esfera íntima dos sentimentos. «Sê parca e prudente em
acreditá-lo / Pois em seus actos, mesmo particulares, / Há que pôr outro selo a
garanti-los e que mais não é / Do que a grande e principal própria voz da
Dinamarca» (I, 3).
Em todo o caso, a decisão do soberano é
inquestionável. «Vossas Majestades / Soberanos senhores das nossas pessoas, /
Basta-lhes ordenar e submissos, / Gratos, obedeceremos sem nos pedirem nada.»,
proclama Rosencrantz, falando por si e por Guildenstern, quando se dirige ao
rei e à rainha (II, 2). Numa etapa mais
adiantada da trama, caberá a Guildenstern pronunciar as palavras onde é mais
visível a natureza divina do mandato régio de zelar pela ordem do país e a
segurança das suas gentes. Quando Cláudio comunica a Rosencrantz e a
Guildenstern que devem levar consigo Hamlet, rumo a Inglaterra, Guildenstern
observará: «Tomaremos as nossas providências. / Mais de todos aliás sacro e
divino é o cuidado / De velar pela segurança dessas tantas vidas / Que vivem e
se nutrem por Vossa Majestade.» (III, 3).
Se a vontade régia, quando manifestada,
é inquestionável para os seus súbditos, o monarca não pode prescindir de uma
consideração das consequências das suas acções, atendendo ao ambiente e
condicionantes que as envolvem. Esse dilema atravessa o espírito de Cláudio e é
fonte das inquietações que o devoram, chegando a comparar-se a um homem que
serve a dois senhores. Tão nítida é a consciência do crime que cometera que se
confessa incapaz de rezar ao Céu. «Ó alma enlameada!», assim se descreve a si
próprio (III, 3), dizendo depois: «Cheia está minha alma / De tristezas e
contradições!...» (IV, 1).
O
rei e a rainha defrontam-se com uma dúvida essencial, que consistia em saber se
a melancolia e as atitudes inusitadas de Hamlet se deviam à dor pela morte do
pai (e pelo casamento da mãe com o tio) ou decorriam, como sustentava Polónio,
do facto de ter sido rejeitado por Ofélia (II, 2; III, 1). Ofélia constituía,
por assim dizer, o «trunfo» de Polónio neste jogo palaciano. Fosse ela a causa
e a razão dos padecimentos do príncipe, maior seria a capacidade de influência
e o raio de acção do seu pai. Não por acaso, Hamlet provoca Polónio,
chamando-lhe Jefte e dizendo: «que grande tesouro tens!» (II, 2). Jefte é uma
personagem do Antigo Testamento (Juízes, 12:7), um dos Juízes de Israel, que
possuía como grande tesouro a sua filha, que morreu virgem e solteira, em nome
da causa de Israel. Para Cláudio e para Gertrudes era fundamental saber a causa
da dor de Hamlet, o que indicia a participação de ambos no assassinato do seu
pai. E, à sua maneira, também Cláudio é sujeito a um «processo de
hamletização». Por um lado, o rei reconhece a necessidade de eliminar a causa
da desordem, isto é, o próprio príncipe: «A ordem desta nação não pode tolerar
/ Riscos tão perigosos como os que de hora a hora crescem / Devido a suas
lunáticas fantasias.» (III, 3). Quando, na 1ª Cena do III Acto, recebe
Rosencrantz e Guildenstern, Cláudio refere-se à «perigosa loucura enfurecida»
do sobrinho. Mais adiante, em diálogo com Gertrudes, já após a morte de
Polónio, Cláudio diz, sobre Hamlet: «Sua liberdade a todos ameaça» (IV, 1).
Mas, por outro lado, Cláudio alude, por diversas vezes, e com indisfarçável
inveja, à estima de que Hamlet gozava junto do povo. Ao procurar livrar-se do
príncipe, Cláudio diz, de si para si: «[…] não devemos aplicar-lhe todo o rigor
da lei: / O povo irresponsável adora-o, / Seus olhos não vêem outra coisa; não
pensam.» (IV, 3). Cláudio afirma, inclusivamente, que não pode levar Hamlet a
tribunal porque «É grande o amor que o povo lhe dedica, / O afecto que lhe faz
perdoar todas as faltas». Em face disso, reconhece os limites do seu poder para
debelar o comportamento do amado príncipe: «Leves são meus dardos para tão
fortes ventos / Tanto que regressariam de encontro ao meu arco / E não
atingiriam o alvo apontado…» (IV, 7).
Aliás,
são feitas, noutras ocasiões, referências ao carácter ignaro e volátil da
populaça, tópico também presente em várias obras de Shakespeare, sobretudo em Júlio César; «povo grosseiro e insano»,
assim lhe chama Cláudio (IV, 5). Daí que, quando Laertes regressa de França,
procurando vingar a morte do pai matando Cláudio (e aqui, note-se, não há
qualquer «desvio na figura do vingador»), um cortesão diz que o povo apoiava
esse gesto de revolta. O cortesão aconselha Cláudio a fugir: «Cuidado! Fugi,
meu senhor! / O oceano ao transpor os seus limites / Não devasta planícies com
gula maior / Do que o jovem Laertes à cabeça dos amotinados / Derruba os nossos
comandantes!». Eis, agora, o trecho que interessa: «A turba do povo chama-lhe
senhor / E, como se o mundo só agora nascesse, / Esqueceu-se a traição,
ignoram-se os costumes / Que ratificam e sustentam a palavra dada! / Gritam:
Escolhamos! Laertes será rei! Mãos, chapéus e línguas aplaudem / Ecoando até ao
céu: Laertes será rei! Laertes! / Com
que alegria gritam pela falsa pista, / Falsa partida, falsos cães
daneses!» (IV, 5). O mesmo povo que clamava por Laertes era aquele que amava
Hamlet, ainda que o considerasse «maluco», para usar a expressão do Primeiro
Coveiro (V, 1).
A
esta ameaça de ilegítima revolta, a esta irrupção do caos e da desordem,
Cláudio, quando se depara com Laertes, invoca a natureza sagrada do seu
mandato, a qual bastaria para pôr termo a qualquer acto sedicioso: «Há tanto de
sagrado a guardar o Rei / Que a traição mal espreita / E pouco realiza a seu
intento.» (IV, 5). Este será, provavelmente, em toda a tragédia de Elsinor, o
trecho em que a marca da teoria do direito divino dos reis ecoa com mais
nitidez.
No processo de decisão de Cláudio, como
no processo de decisão de Hamlet, a play
within a play desempenha um papel crucial. No rei, dissipa a dúvida sobre o
que ia no espírito do sobrinho: ao encenar o assassinato de Gonzaga, Hamlet
sabia a verdade e, a breve trecho, iria vingar-se. No príncipe, a reacção
intempestiva do monarca ao assistir à representação da peça, sintomaticamente
intitulada A Ratoeira, confirma
aquilo que lhe contara o Espectro: Cláudio tinha assassinado traiçoeiramente o
seu pai. O calculismo, todavia, prevalece em ambos os casos: Hamlet irá falar
com sua mãe contendo hipocritamente o desejo de vingança que lhe atravessa a
alma; Cláudio, gizado o plano de fazer desaparecer Hamlet a caminho de
Inglaterra, procura também refrear o seu ânimo violento: «[…] tu, coração de
cordas de aço, / Torna-te macio como os tendões das criancinhas / E poderá ser
que tudo acabe em bem!» (III, 3).
De certo modo, a doutrina anglicana de
que o tiranicídio conduz à rebelião e esta, por sua vez, à guerra civil, muito
presente nos dramas históricos de Shakespeare, também aqui emerge, ainda que um
modo mais insinuado, mas suficientemente claro para que se possa concluir que
Cláudio tinha consciência da ilegitimidade do seu poder, conquistado através do
homicídio do seu irmão e da usurpação da coroa, que de direito pertencia a
Hamlet.
Hamlet
é, além de um drama de vingança, um drama de sucessão, questão de que
adiante se falará. Por ora, e em íntima conexão com a reprovação do tiranicídio
e do direito de revolta, realce-se apenas a ideia de que uma mudança de rei
implica sempre uma mudança para todo o reino. Diz Rosencrantz: «Rei morto não é
só ele que morre / Mas, como um turbilhão engolfa / Tudo o que lhe está em
derredor, / É roda gigantesca em píncaros fixada / Em cujos longos raios mil
coisas se prendem. / Caia ele e tudo o que é menor, / Tudo o que é pequeno e
inferior consequência, / Espera a estrondosa ruína.». A frase seguinte é quase
uma máxima política: «Nunca / Suspira um rei sem que o povo inteiro gema» (III,
3).
Os monarcas, todavia, possuem uma
encarnação corpórea e, como tal, sujeita à efemeridade da vida, no que não se
distinguem do mais vulgar dos seus súbditos. Rosencrantz diz que a sua ambição
é tão vaga e difusa que não passa de «sombra de outra sombra», ao que Hamlet
responde: «É o que são os nossos corpos mendigos, os nossos monarcas e nossos
dilatados heróis: sombras e sombras de mendigos» (I, 2). Sendo príncipe, Hamlet
descreve-se como «indigno homem de lama» (II, 2) e, de todos os intervenientes
na tragédia, é, provavelmente, aquele que possui uma consciência mais aguda e
severa das suas debilidades, da sua «fraqueza merencórica» (II, 2) e da sua
transitoriedade enquanto ser humano.
6. Simplificação
interpretativa e regresso aos palcos isabelinos
– há uma advertência que Schmitt faz, a qual deveria ser escutada por muitos
dos que, ao longo dos séculos, procuraram encontrar os mais desencontrados
sentidos na opus magnum de William
Shakespeare. Essa advertência – a que, aliás, o próprio Schmitt talvez devesse
ser mais fiel – consiste, no fundo, num chamamento à razão das realidades
simples: Hamlet foi concebido como
uma peça que se destinava a um público concreto de uma época histórica
concreta. Mais, não foi escrito para ser lido mas para ser representado perante
espectadores historicamente situados, que tinham relativamente a nós o
privilégio de possuírem um conhecimento muitos mais próximo, porque
experienciado e vivido, de factos a que Shakespeare poderia tão-somente aludir,
tendo a certeza de que tal alusão seria compreendida pelo auditório, mas não
comprometeria em excesso a segurança do dramaturgo, desde que este se rodeasse
das devidas cautelas, o que não aconteceu com uma arriscada representação de Ricardo II, de que adiante se falará.
Existe outro dado importante: as peças eram escritas para serem levadas à cena,
não sendo imediatamente editadas sob a forma de livros ou folhetos, pelo que
cada representação – e aí residia em larga medida o motivo do seu fascínio –
era absoluta novidade para os que assistiam, desconhecedores do desenrolar da
trama e do desfecho final. Não existindo versões editadas, o público
acompanhava a acção sem saber o que se passaria de cena em cena, ouvindo
palavras que nunca tinha ouvido, confrontando-se com alusões e referências que
se inscreviam perfeitamente no tempo coevo. Com frequência, e tendo em conta as
dimensões meramente simbólicas que os elementos cénicos assumiam, era a
palavra, mais do que a trama, que adquiria lugar central no palco[59]. Words, words, words, essa era a
matéria-prima essencial de William Shakespeare e é na palavra que o seu génio
faz assentar toda a carga dramática da acção.
A
natureza enigmática do drama de Elsinor adensou-se com o passar dos séculos e
com a carga especulativa que sobrecarregou as referências, mais ou menos
crípticas, que a peça contém. Tendo em conta aqueles dados singelos, o programa
de Schmitt pressupõe um intuito de deliberada simplificação (Vereinfachung)[60],
apelando, por assim dizer, a um back to
basics num sentido «originalista», no âmbito do qual se pretende recuperar
o intencionalismo do autor, o seu original intent, e o funcionalismo da sua obra, o fim a que
se destinava. Schmitt refuta as especulações sobre a subjectividade de
Shakespeare, o que não significa que prescinda de uma busca das intenções que o
levaram a colocar Hamlet em cena.
Considera, todavia, que existiu um fragmento da realidade histórica,
perceptível para o autor, para os actores, para os seus patronos e para o seu
público, que se impôs a todos eles como irrupção do tempo no espaço do drama.
Só assim se explica que, sendo Hamlet
a mais complexa das obras de Shakespeare, haja sido também, mesmo na época em
que foi representada, a mais popular de todas. O público de então percebia
Hamlet melhor do que nós; percebia-o naquilo que afirmava explicitamente, mas
também naquilo que enunciava cifrada ou elipticamente e até mesmo naquilo que
ocultava deliberadamente.
Se a mensagem fundamental da
interpretação schmittiana apela, em simultâneo, a um esforço de simplificação e
a um combate a leituras anacrónicas, desfasadas do tempo e do espaço em que a
peça foi concebida e apresentada a público, deve notar-se que a tese de Schmitt
não se destaca pela sua novidade. Ela constitui o fulcro da abordagem empreendida,
nos anos vinte, por Lilian Winstanley, de quem o juspublicista germânico se
considera largamente devedor. Logo na introdução a Hamlet and the Scottish Succession, Lilian Winstanley refere que o
propósito do seu estudo é o de «ver a peça como ela foi vista por uma audiência
isabelina», colocando-se num ponto de observação susceptível de evitar o
anacronismo da nossa «remote posterity» e, bem assim, o peso esmagador da
literatura infindável que, ao longo de séculos, foi gerada pela obra de
Shakespeare, em torno da qual se elaboraram as mais variadas interpretações e
leituras, nem sempre tendo presente um dado tão simples quanto essencial: a
peça tinha um auditório determinado e preciso, o da época em que primeiramente
foi levada à cena, e era obviamente suposto tal auditório compreender o
desenrolar da trama. De acordo com Winstanley, o público londrino necessitava
de pontos de contacto ou agrafes mnemónicos com a realidade da época, pelo que
em não mais do que cinco minutos se aperceberia de que a Dinamarca que serve de
cenário ao drama era a anárquica Escócia daquele tempo, onde catolicismo e
protestantismo conviviam de forma frequentemente violenta[61].
As peças de Shakespeare são, assim, colocadas sob a perspectiva do «peculiar
point of view of the Elizabethan mind»[62],
o que representa uma proposta interpretativa tanto mais sedutora quanto vem
acompanhada, ainda que veladamente, de uma pretensão de autenticidade superior
a todas as demais leituras de Shakespeare, possuindo ademais a vantagem
suplementar da simplicidade e, por assim dizer, de um «anti-intelectualismo»
que decerto deve ter agradado a Carl Schmitt[63].
A
tese central de Winstanley é condensada em afirmações que sustentam,
designadamente, que existem mais semelhanças entre Hamlet e a realidade histórica coeva do que com a gesta nórdica que
lhe serviu de inspiração. Desta última, por exemplo, estavam ausentes o
Fantasma, Polónio, Ofélia ou Laertes. Todavia, isso servirá, quando muito, para
criticara ideia – de resto, pouco veiculada – de que Shakespeare se baseou
plenamente na saga nórdica, seguindo pari
passu todos os seus desenvolvimentos. Além de a tese de Winstanley
pressupor uma recuperação de algum «historicismo» − mais ainda, de um
«historicismo» quase hegemónico e totalizante[64]
–, ela implica a detecção, nem sempre fácil, de pontos de apoio que permitam
estabelecer elos ou pontos de contacto entre a tragédia de Shakespeare,
nomeadamente as suas personagens, e uma realidade pretérita de contornos
bastante difusos. Ao carecer de uma demonstração «empírica», assente no cotejo
peça/realidade, a proposta de Lilian Winstanley vê-se na contingência de
apresentar elementos probatórios algo esparsos e nem sempre fundamentados ou
concludentes, afirmando, por exemplo, que, da mesma maneira que Polónio é morto
na presença de Gertrudes, Rizzio foi morto, segundo se diz, na presença de
Maria Stuart[65];
ou sustentando que existe uma flagrante semelhança entre o consumo excessivo de
bebidas alcoólicas fortes na corte de Elsinor e na Escócia do século XVI; ou,
ainda mais, que Hamlet e James I se caracterizam ambos pelo modo descuidado
como se vestiam[66].
Daqui
não decorre que a tese de Lilian Winstanley deva ser liminarmente rejeitada (v.g., na questão central do paralelismo
entre a peça de Shakespeare e a questão da sucessão escocesa), tanto mais que o
que se procura é evidenciar a sua importância para a interpretação schmittiana
de Hamlet, a qual é notória a um
ponto tal que leva a concluir pela ausência de originalidade da abordagem de
Carl Schmitt nos seus passos fulcrais – o tabu da rainha Gertrudes/Maria e o
desvio da figura do vingador. Relativamente a esse último aspecto, note-se,
inclusivamente, que a própria expressão que Schmitt utiliza para elaborar o seu
conceito se encontra já no texto de Winstanley, onde, na comparação entre Hamlet e a gesta nórdica, se diz «the
hero of the Amleth saga never hesitates over his vengeance, but pursues it with
undeviating energy»[67],
ao passo que o Hamlet de Shakespeare se caracteriza, acima de tudo, pela
hesitação («The most peculiar trait in Hamlet’s character is his vacillation»[68]).
7. O desvio da figura
do vingador – o «desvio da figura do vingador»
reside, em termos muito simples, na circunstância do Hamlet shakespeariano, ao
invés do Amleth escandinavo que lhe serviu de fonte e de inspiração, ser, no
contexto de um drama de vingança, um personagem dilacerado pela dúvida e,
sobretudo, pela melancolia, pelo humor
melancholicus, categoria que Benjamin analisou detidamente no seu ensaio
sobre o drama barroco alemão[69],
e que, segundo parece, era muito acentuada em Le Cinquiesme Liures des Histoires Tragiques, que, baseando-se na
saga nórdica e inspirando Hamlet,
François de Belleforest escreveu em 1570 e foi dado à estampa em 1576. Quando
Bothwell foi acusado da morte de Lorde Darnley, crime de que Maria Stuart terá
sido eventualmente cúmplice, testemunhos da época afirmavam que a Rainha dos
Escoceses, que no ano anterior estivera à beira da morte por doença, se
encontrava gravemente enferma devido a «melancolia». Típico da modernidade e
dos seus alvores[70],
o tema da melancolia, a que Dürer dedicou uma célebre gravura, dará azo à não
menos célebre obra de Burton, The Anatomy
of Melancholy (1621). Antes dela, encontramos um famoso retrato de um jovem
de dezanove anos, lânguido e melancólico, miniatura pintada circa 1588 por Nicholas Hilliard,
considerado o grande retratista do período isabelino, aquele que, segundo
diversos historiadores de arte, melhor captou o universo das primeiras peças de
Shakespeare. Ora, o jovem melancólico retratado por Hilliard não é outro, supõe-se, que
não Robert Devereux, o 2º conde de Essex, favorito de Isabel I que, acusado de
tentativa de golpe palaciano contra a rainha, seria condenado por traição à
Coroa e decapitado.
Nicholas Hilliard
Young Man Among Roses,
c. 1588
|
Essex era um dos protectores da
companhia teatral de Shakespeare e, regressando a Hamlet, note-se que também o abatimento melancólico terá afectado o
príncipe da Dinamarca, levando a que se desviasse da missão que lhe cabia,
vingar a morte do pai. É esse o «desvio da figura do vingador» de que fala Carl
Schmitt, ainda que a melancolia fosse igualmente um mal que afectava o rei
James, a crer nas palavras de Lilian Winstanley[71],
pelo que a insanidade do espírito atravessa várias personagens desta trama,
fictícias ou reais, de Essex a Hamlet, passando pelo próprio James I. A dado
trecho, Hamlet carece mesmo que reapareça em cena o Espectro, para fortalecer
em si o desejo de vingança, para «aguçar teu quase embotado intento» (III, 4).
Ao
que tudo indicia, nas representações originais era Shakespeare que surgia em
palco sob a forma de Espectro, naquele que foi considerado o melhor desempenho
da sua carreira de actor[72].
Espectro ou Fantasma que, como nota Schmitt, não figurava na saga nórdica, a
qual relatava igualmente uma situação de vingança. Contudo, o Ur-Hamlet de Thomas Kyd, apresentado ao
público por volta de 1589 e possivelmente a maior fonte inspiradora de
Shakespeare, já introduzia no enredo um espectro ou um fantasma, ponto que Carl
Schmitt não refere, como, ao contrário de Lilian Winstanley[73],
não refere sequer o nome de Kyd e a sua obra, hoje desaparecida mas
extremamente popular na época em que o Bardo
escreveu a tragédia do príncipe dinamarquês. A omissão de Carl Schmitt é
relevante e grave, porque Thomas Kyd, autor muito famoso no seu tempo, a quem
se deve o arquétipo do drama de vingança da época, The Spanish Tragedy, companheiro de Marlowe, caiu em desgraça e foi
preso em 1594 sob acusação de ter escrito textos subversivos e heréticos. Na
altura, de pouco lhe valeu ter, entre os seus patronos, o conde de Essex, sendo
a sua obra Cornelia dedicada à
condessa de Essex. Jamais reabilitado após a prisão em Birdwell, onde
alegadamente sob tortura terá acusado Marlowe de «não ser religioso, de beber
muito e de ser cruel» e, sobretudo de ser ateu e blasfemo, Kyd morreria nesse
mesmo ano, com trinta e seis anos de idade. Em resultado das acusações de Kyd,
Marlowe seria interrogado pelo Privy
Council, ficando em liberdade provisória e sujeito a severas medidas de
coacção. Pouco depois, numa rixa, Marlowe seria morto, aos vinte e nove anos de
idade, existindo a tese de que terá sido assassinado a mando da Coroa. Ora, o
destino de Kyd (e, sem dúvida, de Marlowe) certamente terá sido conhecido por
Shakespeare e possivelmente marcou o tom críptico e elíptico das suas obras,
com destaque para Hamlet. Ao que
parece, a Kyd deve-se não apenas uma peça denominada Hamlet, modelar e popular drama de vingança, como a criação da
figura do Espectro e, mais decisivamente, a expressão «ser ou não ser»,
ilustrativa da ambiguidade do protagonista. Assim, o «tabu da rainha» e o
«desvio da figura do vingador», que Schmitt atribui a um circunstancialismo
político circunscrito à questão sucessória de Isabel e à ascensão ao trono do
rei James, podem ter uma explicação bem menos linear do que aquela que nos é
apresentada em Hamlet ou Hécuba.
8.
Alusões e reflexos, irrupções do tempo – no seu ensaio, Schmitt
introduz uma distinção curiosa e, essa sim, profundamente original. Reconhece
que as obras de Shakespeare contêm milhares de alusões laterais ou incidentais
a acontecimentos históricos coevos, não fugindo Hamlet a essa tendência. Daí que uma interpretação adequada da peça
exija uma diferenciação entre os diversos graus ou tipos de influência nela
presentes. Existem, de acordo com Schmitt: (a) meras alusões, perfeitamente efémeras, compreensíveis para os
espectadores da época mas depressa votadas ao esquecimento; (b) verdadeiros reflexos do contexto
histórico no interior do drama; (c) por fim, irrupções essenciais do tempo, estruturalmente determinantes.
Entre as primeiras, encontramos, por
exemplo, na 4ª Cena do IV Acto uma alusão às dunas de Ostende, que os ingleses
defenderam heroicamente contra os espanhóis, em 1601. De igual modo, na 2ª Cena
do I Acto há uma referência de Laertes à sua vinda à corte para assistir à
coroação de Cláudio, a qual consta do Second
Quarto, de 1604, mas não do First
Quarto, de 1603, e que só será compreensível atendendo à coroação do rei
James, ocorrida em Julho de 1603.
Muito distintos são os reflexos do contexto histórico. Entre
eles, avulta a execução do conde de Essex, a quem a companhia teatral de
Shakespeare, os The Lord Chamberlain’s
Men, estava profundamente ligada. À relação entre a peça de Shakespeare e o
destino de Essex dedica Lilian Winstanley um capítulo inteiro da sua obra Hamlet and the Scottish Succession, porventura o livro que, como se
referiu, mais marcou a interpretação schmittiana da tragédia do príncipe da
Dinamarca[74].
Lilian Winstanley, entre outros dados, recorda que, desde Edmond Malone
(1741-1812), se detectou uma similitude entre as palavras de Horácio
pronunciadas após a morte de Hamlet e a oração de Essex ao subir ao cadafalso.
Schmitt, decerto baseando-se em Winstanley, refere exactamente essa
semelhança.
Por
fim, existem as irrupções do tempo.
Entre elas, encontramos a participação de Maria Stuart no assassinato de
Henrique Stuart, seu marido e pai de James, responsável pelo «tabu da rainha»;
e a dramatis personæ do rei James,
associada ao «desvio da figura do vingador». Schmitt adverte que, de modo
algum, se pode concluir que Hamlet se identificava com James e o seu destino.
Não é, contudo, particularmente claro na explicação que oferece para ligar
James ao «desvio da figura do vingador». Há uma pergunta que Susan Sontag
formulou relativamente a Walter Benjamin – «Como é que um melancólico consegue
tornar-se um herói da vontade?»[75] –
e a que Carl Schmitt não consegue responder quando se confronta com Hamlet. É
que, desde logo, se existe uma «hamletização do herói», uma perda inicial de
sentido de acção, no final emerge uma «heroicização de Hamlet», através da sua
entrega plena, inflamada até, ao cumprimento de um plano de vingança que
deveria culminar na morte do seu adversário maior, Cláudio, homicida e
usurpador. Portanto, a noção do «desvio da figura do vingador», mesmo a ser
verdadeira, só é válida até um dado momento da peça; mas, sendo assim, o
paralelismo com James I é, também ele, parcial. A questão não se colocaria se
Schmitt não tivesse proclamado que havia reconstituído a realidade objectiva,
chegando ao ponto de qualificar-se como um «desmancha-prazeres» (sic), que destruíra dezenas ou centenas
de interpretações de Hamlet. Contudo,
se afirma ter reconstituído a story,
onde começa e acaba ela? Em que ponto acaba o «desvio da figura do vingador» e
a sua convergência com a figura do rei James? No momento em que este assume o
trono de Inglaterra?
Além dos dados que resultam da
hermenêutica textual – ponto que o juspublicista alemão menospreza em excesso,
nomeadamente ao não ter em conta o diferente valor das várias edições da obra,
quando coloca o First Quarto (Q1) a
par do Second Quarto (Q2) e do First Folio[76] –, Schmitt aduz argumentos que, também
eles, relevam de uma interpretação de tipo historicista, designadamente a
ligação da companhia teatral a que Shakespeare pertencia ao conde de
Southampton, católico condenado à morte, e ao infortunado conde de Essex,
executado em 1601, no período final do reinado isabelino. Na época, por
compreensíveis razões de autodefesa, todas as companhias teatrais procuravam
colocar-se sob a alçada de patronos da alta nobreza. Na verdade, eram elevados
os riscos que corriam, bastando recordar que, em 1605, pouco depois da subida
ao trono de James I, a peça Eastward Hoe,
de George Chapman, Ben Johnson e John Marston, por satirizar com o súbito
afluxo à corte londrina de escoceses rudes, levaria os seus autores à prisão,
sob a ameaça de lhes cortarem as orelhas e o nariz…
A
companhia teatral a que Shakespeare teve maior ligação, os The Lord’s Chamberlain’s Men, actuava sob os auspícios de Henry
Carey, 1º barão de Hunsdon, mais tarde do seu filho e, por fim, do próprio rei,
logo em 1603, o ano em que este ascende ao trono, tornando-se então King’s Men. Além disso, e como se viu,
Shakespeare e os seus companheiros tinham uma ligação especial a Essex e a
Southampton. A este último tinha Shakespeare dedicado em 1593 aquele que foi o
maior êxito editorial de toda a sua carreira, o poema narrativo Venus and Adonis, usando palavras que
actualmente nos surpreendem pelo servilismo mas que devem ser lidas no contexto
da época:
Ilustre
Senhor, não sei se vos causarei ofensa ao dedicar-vos estes versos grosseiros,
nem se o mundo me censurará por escolher tão poderoso esteio para amparo de tão
singelo fardo. Se forem merecedores do vosso agrado, isso será para mim grande
honra e prometo que devotarei todos os meus momentos de descanso a exaltar-vos
numa obra de maior fôlego. Mas se o primeiro furto do meu engenho se revelar
canhestro, será grande a minha mágoa pelo seu tão nobre padrinho…[77]
Henry Wriothesley, 3º conde de
Southampton, era um cortesão particularmente poderoso e influente já que, por
morte do pai (um católico que preso três vezes sob acusação de traição), havia
sido educado na corte por William Cecil, Lorde Burghley, Secretary of State em duas ocasiões (1550-1553 e 1558-1572) e Lord High Treasurer desde 1572.
Tratava-se, pois, de um dos principais, se não o principal, conselheiro de
Isabel I durante longos anos. Quando Southmpaton atingiu dezassete anos, Cecil
procurou casá-lo com a sua neta, filha de Edward de Vere, 17º conde de Oxford,
mas o jovem rejeitou o matrimónio, pelo que teve de desembolsar uma colossal
indemnização de 5000 libras. Southampton tinha, ao que parece, inclinações
sexuais ambivalentes, mantendo uma amante na corte mas sendo conhecidas
histórias do seu envolvimento com soldados, no decurso da campanha da Irlanda.
Nicholas Hilliard, o grande retratista da época, que também pintará o conde de
Essex, figurou-o com uma longa madeixa de caracóis louros a cair sobre o ombro
esquerdo, algo que não era habitual os homens usarem naquele tempo[78].
Em 2002, seria descoberto um outro retrato, que se diz ser de Southampton, em
que este surge vestido de mulher ou, pelo menos, como um homem extremamente
efeminado. Datado de 1590-1593, o retrato coincide com o período em que
Shakespeare buscava afanosamente a protecção do jovem Southampton, que terá
conhecido no Verão de 1592, quando o jovem aristocrata perfizera dezoito anos.
A ele dedicará outro poema, The Rape of
Lucrece (1594), utilizando, uma vez mais, palavras de grande servilismo mas
também, porventura, de maior intimidade, a ponto de alguns verem nesta
dedicatória o vestígio de uma relação pessoal muito forte entre ambos:
Ao Mui Ilustre Henry Wriothesley,
Conde
de Southampton e Barão de Titchfield.
Não
tem fim o amor que devoto a Vossa Senhoria; daí que este panfleto, sem começo,
não seja mais do que uma metade supérflua. É a confiança que tenho na vossa
honrada indulgência, e não o valor dos meus versos grosseiros, que asseguram o
seu bom acolhimento. O que fiz, pertence-vos; o que hei-de fazer, também é
vosso; tudo quanto é meu também vos pertence. Fosse maior o meu mérito, que
maior seria o meu dever; entretanto, e tal como é, é inteiramente dedicado a
Vossa Senhoria, a quem desejo longa vida repleta de felicidade.
O
vosso servidor para todo o serviço
Anos
depois, William consegue que ao seu pai seja reconhecido o direito a usar
brasão. As armas, curiosamente, serão desenhadas por Richard Burbage, o actor
principal da companhia de Shakespeare, cujo extraordinário desempenho em Hamlet ditou em boa medida o estrondoso
êxito da peça junto do público londrino e, no fim de contas, a sua centralidade
na obra dramatúrgica do Bardo. No
brasão, foi colocada uma espada e um falcão prateado, sendo este último uma
referência explícita à ligação de Shakespeare com o seu patrono, Southampton.
Quanto à dedicatória, data de 1594, ano em que é fundada a The Lord Chamberlain’s Men. Esta será envolvida numa empresa
bastante arriscada. Em Fevereiro de 1601, levam à cena Ricardo II, de Shakespeare, uma peça em cujas edições haviam sido
suprimidos 160 versos que mais abertamente aludiam à questão-tabu da época: a
sucessão de Isabel I. Num episódio histórico que tem muitas afinidades com a play within a play orquestrada por
Hamlet na corte de Elsinor, à companhia foi pedido, por uma quantia elevada,
que não deixasse de representar as cenas em que o monarca era deposto e
assassinado, destinando-se esta apresentação a preparar o desastroso coup d’État que, no dia seguinte, Essex
tenta levar a cabo. Para os espectadores da época, um drama histórico não era
uma fábula sobre um acontecimento remoto, sendo antes visto como uma
representação da realidade. Por isso, levar à cena Ricardo II só podia ser visto como um incitamento à revolta. No
entanto, apesar terem sido feitas inquirições, os membros da companhia
acabariam por não ser acusados e, mais ainda, representariam perante a rainha,
na véspera da execução de Essex. Ao contrário do que seria de esperar, Isabel I
encarou a representação de Ricardo II com
rara benevolência, dizendo-se mesmo que terá afirmado, numa ou em várias
ocasiões: «I am Richard II, know ye not that»?». A rainha apreciava as peças
dos The Lord Chamberlain’s Men, o que
talvez explique a sua atitude complacente. Segundo se diz, gostara tanto da
personagem Falstaff de Henrique V (1599)
que terá pedido a Shakespeare que escrevesse uma peça em que o boémio e
fanfarrão se apaixonasse, desejo a que o dramaturgo corresponderia em The Merry Wives of Windsor. À parte
aquele faux pas, que certamente lhes
terá servido de aviso, os membros da The
Lord Chamberlain’s Men eram conhecidos pelo seu apego à ordem, sendo
avessos a rixas e conflitos, evitando envolvimentos que pusessem pôr em causa a
segurança do seu negócio. Em 1602, Christopher Beeston, pertencente à
companhia, foi acusado do crime de violação; sintomaticamente, apesar de o
processo ter sido arquivado por falta de provas, em Agosto desse mesmo ano
Beeston abandona os The Lord
Chamberlain’s Men e ingressa nos Worcester’s
Men. The Lord Chamberlain’s Men foi
a companhia a que Shakespeare mais esteve ligado durante a sua carreira; aliás,
no ambiente teatral da época, não há registo de uma ligação tão duradoura de um
actor e autor (e também sócio) a uma única companhia. Resta saber se a aversão
a querelas por parte dos The Lord
Chamberlain’s Men era uma qualidade desta companhia que atraiu Shakespeare
ou se foi ele, um homem sensato e dotado de «um espírito aguçado para o
negócio»[80],
que lhe imprimiu essa característica de aversão ao risco.
Aparentemente, a companhia de Shakespeare
havia tomado o partido de James na questão da sucessão de Isabel I – um
verdadeiro «tabu da rainha», sobre o qual era interdito falar naquela época – e
a repressão que a monarca inflige ao seu antigo amante, o conde de Essex, e ao
conde de Southampton, condenado ainda que não executado, obriga a que o seu
grupo teatral, prudentemente, abandone Londres e se desloque em actuações pela
província, o que, aliás, sucedeu várias vezes ao longo da vida de Shakespeare,
nomeadamente quando os teatros da capital eram encerrados por razões
sanitárias, como forma de combater o alastramento de pestes e epidemias. Aliás,
a companhia de que Hamlet se servirá para desmascarar o seu tio, denominada Os Comediantes da Cidade[81],
encontrava-se, também ela, proibida de representar, como Rosencrantz sublinha.
«Que sorte os levou para tais viagens? Ficarem no seu teatro melhor lhes
conviria quer quanto a honras quer quanto a proventos», observa Hamlet. Ao que
Rosencrantz responde: «Julgo que o azar foi terem-lhe proibido as representações
fechando-lhes o teatro devido à revolução» (II, 2).
Resolvida
a questão da sucessão a favor de James, este indultará Southampton (a quem será
concedida a incumbência e a honra de transportar a espada cerimonial do reino),
devolverá à viúva de Essex os bens que lhe haviam sido confiscados, restaurará
o condado de Essex, e permitirá à companhia de Shakespeare regressar a Londres
e ter o privilégio de representar perante a corte, o que acontecerá nada menos
do que 187 vezes, mais do que todas as outras companhias juntas (no reinado de
Isabel I, actuavam na corte a uma média de três vezes por ano; nos primeiros
dez anos do reinado de James I, esse número aumentaria para dez vezes por ano).
Apresentada perante o próprio monarca, Macbeth
corresponderá ao gosto de James pela bruxaria e pelo esoterismo, não
deixando de conter referências bem mais terrenas à Gunpowder Plot, que o público londrino da época entendia na
perfeição. Shakespeare e outros actores serão nomeados ajudantes de câmara, a
companhia ficará sob protecção do monarca sob o nome King’s Men, que a remuneraria generosamente, e receberá uma cruz do
Lord Chamberlain (além do privilégio
de os seus membros se engalanarem com quatro metros de tecido escarlate
fornecido pela Coroa). Tudo isto, note-se, ocorre no próprio ano da subida ao
trono de James I e constitui uma reabilitação extremamente expressiva, ainda
que devamos ter presente um dado muito importante, que Schmitt omite: como se
disse, em vida de Isabel I, os membros da companhia não haviam sido condenados
– facto singularíssimo naquele tempo – e tinham mesmo representado perante a
rainha nas vésperas da execução de Essex. Ainda assim, para Carl Schmitt, todos
aqueles factos são de tal forma objectivos e esmagadores no seu poder explicativo
da realidade que se impõem a quaisquer tentativas de interpretação psicológica
ou à própria liberdade criativa do autor; como, por outro lado, a peça é
incapaz de retratar, na sua plenitude, uma realidade histórica que a
transcendia e que remetia para o meta-teatro[82].
Trata-se de uma simplificação algo
grosseira da conclusão alcançada por Schmitt e que não faz justiça ao ensaio da
sua autoria. É que, na verdade, muito mais do que a identificação de Gertrudes
com Maria Stuart e da questão da subida ao trono do seu filho, os pontos mais
interessantes de Hamlet ou Hécuba situam-se
noutros lugares ou, melhor dizendo, nas considerações que Schmitt faz para
fundamentar uma aproximação que pretende primar pela lhaneza, pela
simplicidade, mas também pela objectividade e pelo despojamento relativamente
às interpretações, v.g. de natureza
psicológica, que contribuíram (ainda mais) para tornar Hamlet uma obra impenetrável, mesmo tendo em conta a sua
impenetrabilidade originária, de que Schmitt se dá conta, nomeadamente quanto
cita uma conhecida afirmação de T. S. Eliot («Shakespeare é tão grande que
possivelmente nunca conseguiremos fazer-lhe justiça. Mas, se não podemos
fazer-lhe justiça, deveremos, pelo menos, mudar de tempos a tempos os métodos
com praticamos a injustiça») e, sobretudo, quando refere uma frase de Erich
Franzen: «De todos os estudiosos de Hamlet,
aquele que mais se aproximou da verdade foi Shakespeare».
9.
Hécuba, lágrimas de sangue – para compreender a aproximação de Carl Schmitt
à verdade de Shakespeare, talvez devêssemos ter começado pelo óbvio: o título, Hamlet ou Hécuba. A alusão à rainha de
Tróia, constante da 2ª Cena do II Acto, e que Schmitt transcreve logo na
abertura do livro, seguindo o texto do quarto
de 1603 [Q1]. Nas versões, mais fiáveis, do quarto
de 1604 [Q2] e do First Folio, de
1623:
Por Hécuba!
Que lhe é Hécuba, ou
ele a ela,
Que deva chorar por
ela?
[83]
É
interessante esta evocação de Hécuba, não só pela sua presença noutras peças de
Shakespeare (Coriolano, I, 3; Cymbeline, IV, 2) e no seu poema The Rape of Lucrece (1594), dedicado ao
conde de Southampton, como pelo facto de a mulher de Príamo e rainha de Tróia,
mãe de dezanove filhos, transformada em escrava (e, noutras versões, numa
cadela de olhos de fogo que tentaria morder o povo que a apedrejara), ser uma
figura trágica e enlouquecida pela morte de seus filhos Policena e Polidoro, e
que percorre a cultura ocidental surgindo em diversas passagens da Ilíada de Homero – com destaque para
aquela em que chora a morte de Heitor[84]
–, servindo de tema a duas peças de Eurípides (As Mulheres de Tróia e Hécuba),
aparecendo nas Metamorfoses de Ovídio
(«Ainda há pouco a maior de todas, poderosa por tantos genros e filhos… eis-me
agora exilada, despojada.»), no Inferno
de Dante («Ecuba trista, misera e
cativa» – XXX: 13-20)[85],
no prefácio à 1ª edição da Crítica da
Razão Pura (1781), de Kant[86],
e, mais recentemente, no último livro publicado em vida por Ronald Dworkin, Justiça para Ouriços[87].
Quando
aparece em Elsinor a companhia que irá representar a crucial play within a play do III Acto, Hamlet
pede-lhes que recitem um diálogo entre Eneias e Dido em que se fala da morte de
Príamo e, enquanto estes o fazem, ordena-lhes que prossigam até à referência a
Hécuba («Continua até onde se fala de Hécuba.» – II, 2). Hécuba é convocada
para o interior do drama por determinação expressa de Hamlet. Depois de os
actores saírem, ocorre o solilóquio do príncipe da Dinamarca em que este se
interroga sobre o que levaria o actor a chorar por Hécuba, antecipando a
questão das lágrimas de palco ou lágrimas de actor que estará presente,
muitos anos depois, no escrito de Diderot Paradoxe
sur le comédien (1770-1778) e na sua distinção entre lágrimas verdadeiras («trágicas») e lágrimas cénicas. Hamlet compara as lágrimas de actor com as suas
ou, melhor, interroga-se sobre como se comportaria em palco um actor que tivesse
que chorar a sua dor, a dor de Hamlet, filho de um pai assassinado e de uma mãe
que casara com o novo rei, seu tio, escassos dois meses depois do homicídio,
tudo sugerindo, ademais, ter sido adúltera. «Que faria ele, / Tivera ele a
deixa e motivo de exaltação / Que tenho eu? Afogava o palco em lágrimas» (II,
2)[88].
As lágrimas de Hamlet – «lágrimas, mas
de sangue», como as descreve a sua mãe (III, 2) – eram irrepresentáveis. A essência da dor (ou a dor essencial, se preferirmos) encontra-se na sua irrepresentabilidade. Dela só pode
existir um pálido reflexo especular, não mais do que isso, ou seja, apenas um
«reflexo», uma «emanação» ou um «espelhamento» da realidade material, para
utilizar noções – ou, melhor, expressões – que Schmitt iria articular, por
exemplo, em Catolicismo Romano e Forma
Política (1925)[89].
As lágrimas de Hécuba, que choraram a
morte de Heitor, não eram as lágrimas por
Hécuba, choradas no lamento de Príamo pelos actores em palco. Entramos, então,
no domínio da diferença entre realidade e formas de representação[90],
algo que, no que respeita à realidade política, ocupa um lugar central no
pensamento schmittiano, quer na Teologia
Política, de 1922, quer na Teoria da
Constituição, de 1928.
A
par das lágrimas de Hamlet, note-se que também Laertes chora – e chora lágrimas
de sangue, não de palco. Primeiro, pelo seu pai, Polónio, morto por Hamlet («Ó
lágrimas, / Vós, sete vezes salgadas, queimam-me estes olhos / Para que mais
não possa ver nem sentir!» – IV, 5). Depois, ao saber do afogamento da sua irmã
(«Minhas lágrimas susterei, mas…» – IV, 7). Laertes configura-se, em certa
medida, como um «duplo» de Hamlet[91],
já que ambos tiveram os pais assassinados e, note-se, a ambos o povo queria
como reis. Laertes, quando regressa de França, é aclamado como monarca e Hamlet
era amado pelos dinamarqueses. Partilhavam a destreza no manejo da espada e,
ninguém sai vencedor no duelo que travam; saem, isso sim, irmanado no mesmo
fatal destino. A dying voice de
Laertes (se assim lhe podemos chamar), à semelhança da de Hamlet, revela honra
e dignidade na hora da morte. Por isso, o tema das lágrimas de Laertes não é
irrelevante no contexto da tragédia, já que tanto ele como Hamlet tinham
motivos para chorar, não lágrimas por Hécuba mas lágrimas de verdadeira dor.
Carl Schmitt, estando ciente das
divergências profundas entre os dois quartos,
de 1603 e de 1604, e do First Folio,
de 1623, irá, neste trecho em que se cita Hécuba, preferir o First Quarto, o menos valorizado quanto
à sua fiabilidade textual (o «bad» quarto),
mas o mais expressivo para a reconstituição da dor do jovem Hamlet. No fundo,
para a reconstituição da sua situação
concreta, da story do príncipe
dinamarquês[92].
Na verdade, há um passo constante do First
Quarto que não surge nas edições subsequentes e Schmitt tê-lo-á utilizado,
de forma algo manipulatória, pela sua particular eloquência ou expressividade
dramática, deixando de lado considerações quanto à sua fidedignidade literária,
uma opção bastante criticável se tivermos presente as inexactidões
desconcertantes dos «maus» quartos,
que afectam sobremaneira Hamlet, além
de discrepâncias textuais profundíssimas: o quarto
de 1603 tem 2200 versos, o de 1604 tem 3800 versos e o Folio de 1623 tem 3570 versos[93].
Várias vezes, Carl Schmitt opta pela versão mais próxima da representação
teatral, mas menos fiável. Fá-lo, em particular, na cena em que Hamlet, na
comparação que faz com o actor, pergunta: «Que faria se tivesse perdido /
aquilo que perdi eu? / se o seu pai tivesse sido assassinado / e uma coroa lhe
tivesse sido usurpada?».
Note-se que neste trecho o drama de sucessão é colocado no mesmo
plano do drama de vingança, já que
existe uma referência explícita à usurpação da coroa («e uma coroa lhe tivesse
sido usurpada?»)[94].
O ponto é importante porque Schmitt dedica o Excurso I do seu livro a discutir
o modo como o problema sucessório está presente no drama de Shakespeare. No
fundo, a explorar um tema que lhe era particularmente caro, o da legitimidade de Hamlet enquanto herdeiro
do trono da Dinamarca, por sucessão do seu pai e não através da «concessão» que
lhe é feita pelo seu tio, Cláudio[95]
(por curiosidade, em The Tempest
encontra-se também um caso de fratricídio e de afastamento de um governante
legítimo). O Excurso I contém as passagens de todo o livro em que a marca do
jurista – ou, mais precisamente, do constitucionalista – se faz sentir com mais
intensidade. Para Schmitt – e como, de resto, para os dois autores que segue
mais de perto, Lilian Winstanley e John Dover Wilson –, a questão é de extrema
relevância para a compreensão do sentido objectivo da tragédia de Elsinor,
verdadeira «obsessão» da abordagem schmittiana. Se Hamlet fosse o legítimo
sucessor de seu pai, Cláudio não teria sido apenas um assassino, um regicida,
mas também um usurpador, que privara o príncipe, em simultâneo, do pai e do
trono. As questões encontram-se, em larga medida, interligadas, pelo que a
tensão drama de vingança vs. drama de
sucessão não é nítida nem talvez sequer absolutamente decisiva. Aliás, é
sintomático que Cláudio, no preciso momento em que designa Hamlet seu primeiro
herdeiro, proceda, logo de seguida, a uma manifestação de devoção paternal pelo
jovem príncipe, que reitera cinicamente quando dele se despede, indo o sobrinho
a caminho de Inglaterra, onde deveria ser morto por ordem do tio arvorado em
pai (IV, 3). Em todo o caso, e tendo em conta o que atrás se referiu sobre
ascensão ao trono do rei James, é no tópico da sucessão, muito mais do que no da vingança, que a irrupção do
tempo se faz sentir com maior acuidade, ponto que Schmitt não explora, o
que é tanto mais curioso ou singular quanto tal constituiria um poderosíssimo
argumento a favor da sua proposta interpretativa em torno do «desvio da figura
do vingador».
Sem entrar nas digressões schmittianas
sobre o direito sucessório dos reis na Dinamarca e na Inglaterra da época, ou
seja, atendo-nos ao drama de Shakespeare, é possível concluir que, na verdade,
a um drama de vingança se junta um drama de sucessão (aliás, como já notou
Frank Kermode, um quarto de todas as peças de Shakespeare gira em torno de
problemas de sucessão ao trono)[96].
Hamlet é um príncipe despojado do trono, Cláudio é um monarca usurpador. Tal
facto é evidente logo no trecho acima citado do First Quarto, onde existe uma referência clara à usurpação da
coroa, e que, estranhamente, Schmitt não invoca em seu favor. É certo que cita
diversas passagens que exprimem a noção de que Hamlet não se batia apenas para
vingar a morte do pai mas igualmente para reivindicar o trono que legitimamente
lhe pertencia. Contudo, ao invés dessas passagens, Schmitt prefere deter-se
naquela que juridicamente é mais densa. Conduzindo-nos até ao final da peça,
recorda que a sucessão se processava através da manifestação da vontade do
soberano moribundo, a dying voice, a
que se seguiria uma election por um
conselho (talvez melhor: na election
deveria ter-se em conta a dying voice
do monarca falecido). Considerando-se legítimo herdeiro da coroa da Dinamarca,
na parte final do drama (V Acto, II Cena), Hamlet, ferido de morte por Laertes,
designa Fortimbras, sobrinho do rei da Noruega, como sucessor ou, melhor
dizendo, através da sua dying voice
prefigura a election subsequente:
«Mas profetizo que Fortimbras há-de ser eleito / E sobre ele recai meu voto
moribundo…»[97].
A designação (legítima?) de
Fortimbras como sucessor implicaria, ao que tudo indica, algo que,
curiosamente, Schmitt, um teórico da soberania, não explora: o domínio da
Noruega sobre a Dinamarca. E, mais do que isso, uma certa «traição» de Hamlet à
memória do seu pai, surgida sob a forma do Espectro ou do Fantasma. É que, como
Horácio recorda a Marcelo e Bernardo na 1ª Cena do I Acto, na esplanada do
Castelo de Elsinor, Hamlet-pai havia morto Fortimbras-pai, rei da Noruega[98],
derrotando o «exército dos trenós» e conquistando as terras que, na agonia da
morte, Hamlet-filho concederá a Fortimbras-filho. A Fortimbras, porventura
também investido, como Hamlet, nas vestes de um vingador da morte de seu pai.
Em síntese, o Excurso I de Hamlet ou Hécuba – ou, melhor dizendo,
as considerações feitas sobre as últimas palavras de Hamlet – adquire escasso
significado jurídico-político, ao contrário do que a leitura de Schmitt parece
pressupor. A questão do drama de sucessão, de certo modo, já se encontrava
resolvida, e resolvida num sentido afirmativo, noutros momentos da tragédia.
Mesmo não querendo recorrer ao texto de 1603, quer no Second Quarto de 1604, quer no First
Folio abundam as alusões à questão sucessória. Além da já citada 2ª Cena do
I Acto, em que Cláudio designa Hamlet seu primeiro herdeiro, e de outras
referidas por Schmitt, poderá mencionar-se o diálogo de Hamlet com a sua mãe,
na 2ª Cena do III Acto, em que aquele se refere asperamente a Cláudio nos seguintes
termos:
Um
rei palhaço,
Gatuno
do Reino e da Justiça,
Reles
larápio que vai à prateleira e mete
No
bolso a preciosa coroa real?!
10.
O tabu da rainha – à apropriação da coroa está indissociavelmente ligada a
apropriação da viúva do rei. É em torno da participação desta no assassinato do
monarca que surge o «tabu da rainha», a dúvida em torno da culpabilidade de
Gerturdes que atravessa todo o drama. É igualmente controversa a questão de
saber se participara na morte do marido ou se fora ela própria a assassina.
Sendo esse o «tabu da rainha», que Shakespeare quis deliberadamente manter sem
resposta, de pouco adianta avançar argumentos que levem a concluir num sentido
ou noutro. Alguns insistem, todavia, em defender a inocência da rainha ou, pelo
contrário, em sustentar a sua culpabilidade, avançando leituras que, não raras
vezes, são afectadas por pré-compreensões extrínsecas ao texto ou às intenções
do autor. Em 1957, um ano depois de Schmitt dar à estampa o seu livro, Carolyn
Heilbrun, professora na Universidade de Columbia e autora de diversas novelas
policiais, publicaria o ensaio «The Character of Hamlet’s Mother», argumentando
que, ao longo dos séculos, os homens que procuraram interpretar a peça nunca
tinham conseguido captar a essência do carácter de Gertrudes, a qual não só não
matara nem participara no homicídio do marido como nem sequer era adúltera[99],
assim inaugurando a corrente de interpretação feminista de Hamlet, que mereceu observações mordazes por parte de autores como
Harold Bloom[100].
Schmitt refere passagens da obra que apontam no sentido da culpabilidade e
outras no sentido da inocência. Recorda o que se diz na play within a play da 2ª Cena do III Acto, quando a rainha/actriz
da peça afirma: «Num segundo marido se me perca o mundo; / Quem o primeiro mate
case com o segundo». E, mais explicitamente, «As razões para eu voltar a casar
/ Seriam vil interesse e não o amor. Duas
vezes o mataria sem respeito / Se um segundo esposo me beijasse no leito!»
[itálico acrescentado].
Numa
das cenas mais cruciais do drama, o diálogo nocturno entre Hamlet e Gertrudes
de que resulta a morte de Polónio, o filho acusa abertamente a mãe do
homicídio. Após a morte de Polónio, Gertrudes exclama: «Que acto brutal e
sanguinário!». Hamlet responde: «Quase tão sanguinário como o da má mãezinha /
Que mata um rei e casa com o irmão…». A rainha replica, repondo a dúvida: «Que
mata um rei?». Hamlet insiste: «Sim, minha senhora, foi o que eu disse». De
novo, a mãe instaura a dúvida, proclamando a inocência: «Que fiz eu para que
ouses flagelar-me / Gritando contra mim como um possesso?». Esta interrogação
de Gertudes restaura o tabu e mantém a dúvida sobre a sua culpabilidade. E, de
modo algum, ao contrário do que sustenta Carl Schmitt, se poderá ver na
exortação do Espectro a Hamlet para que mate o tio mas poupe a vida da mãe,
constante da 5ª Cena do I Acto[101]
e na 4ª Cena do III Acto, um indício possível da inocência da rainha. O rei
morto pode ter agido por amor à sua esposa, sendo a determinação para que a sua
vida fosse poupada não um atestado da sua inocência mas um gesto de perdão[102],
ditado pelo imenso afecto que por ela nutria. Aliás, há um dado curioso: o rei
foi morto enquanto dormia, pelo que, ele próprio, não pôde ver a mão que o
assassinara com o mortífero veneno. O Espectro, no entanto, sabe que foi
Cláudio que matou o rei e di-lo a Hamlet na 5ª Cena do I Acto. No entanto, se a
autoria material do homicídio está resolvida, continua a subsistir a dúvida
sobre a cumplicidade e a culpabilidade de Gertrudes, cujo comportamento, de
resto, o Espectro não hesita em censurar com palavras cruéis e amargas. Um
ponto importante, decisivo: Gertrudes não morre devido a uma acção intencional
de ninguém, nem de Cláudio, nem de Hamlet, que obedeceu à ordem do Espectro; a
rainha morre, no final da peça, por um lapso ou acaso do destino, que a leva a
beber da taça envenenada.
Carl Schmitt conhece as fontes de Hamlet e, entre elas, destaca a saga
nórdica passada a escrito por Saxus Gramamaticus (c. 1150-1220) na Gesta
Danorum (ou Danorum Regum Heroumque
Historiae), em que filho e mãe se unem para matar o assassino (filho que
ostenta o nome de Hamlet, Amleth ou Amlóði, o equivalente a «louco»)[103].
Não é isso que ocorrerá na peça de Shakespeare, como não se tomará o caminho de
Orestes na tragédia de Ésquilo, que matou o assassino de Agamemnon, Egisto, e a
própria mãe, Clitemenestra. Talvez Hamlet tenha sido impedido de matar a mãe devido
à determinação do Espectro de poupar a vida de Gertrudes. Ou talvez também
Hamlet partilhasse o «tabu da rainha», não tendo uma convicção segura sobre a
sua culpabilidade. Ou talvez ainda, na lógica de um drama de vingança levado às
derradeiras consequências[104],
o pior castigo reservado a Gertrudes foi ter sobrevivido, quando todos à sua
volta caíram: o rei e seu primeiro marido, Polónio, Ofélia, o marido Cláudio,
Hamlet, Laertes e, com eles, a própria Dinamarca. A todos Gertrudes
sobreviveria, ainda que dilacerada pelo peso da culpa, da culpa trágica[105].
Uma culpa que o Espectro anuncia, logo no I Acto, ao determinar a Hamlet que
não se vingue de Gertrudes: «Poupa tua mãe; deixa que o Céu / E os espinhos que
no peito alberga / A firam e destrocem» (I, 5). Sentimento que se desvenda no
diálogo nocturno que Gertrudes mantém com o filho, na 4ª Cena do III Acto.
Interpelada reiteradamente por Hamlet, a rainha suplica: «Cala-te! Oh cala-te,
Hamlet! / Teus olhos vão-me ao fundo da alma / E lá eu própria vejo nódoas tão
negras / que nunca mais perderão a cor!…». Mais adiante, «Oh! Cala-te! / Tuas
palavras são punhais para os meus ouvidos. / Mais não! Tem piedade, Hamlet!». E
ainda: «Oh Hamlet, parte-se-me em dois o coração!...», a que o filho responde,
com dureza: «Deitai fora então a pior metade». A autoconfiança de Hamlet, que
chega a anunciar ameaçadoramente que «o pior ainda está para vir», decorre, em
boa medida, da aparição do Espectro, o qual surge no quarto da rainha e lhe
incute ânimo vingativo, do mesmo passo que lhe ordena que explore e aprofunde a
dilaceração interior em que Gertrudes vivia[106].
O «tabu da rainha» tem, para Schmitt,
correspondência com a realidade histórica. O marido de Maria Stuart, Henry Lord
Darnley, pai de James, seria assassinado pelo conde de Bothwell, em Fevereiro
de 1566. Em Maio desse mesmo ano, Maria Stuart casaria com o conde de Bothwell,
o que suscitou uma imensa controvérsia, tendo a questão da cumplicidade de
Maria na morte do marido sido amplamente discutida. Schmitt fala do «enorme
escândalo» então gerado, com os católicos a acreditarem nas juras de inocência
feitas por Maria Stuart e a Escócia protestante, a Inglaterra e os próximos de
Isabel I a acreditarem na sua cumplicidade no homicídio do primeiro marido.
Simplesmente, era muito arriscado
reabrir essa questão numa altura em que se discutia em surdina a sucessão de
Isabel I, ou seja, mesmo após terem decorrido quase quatro décadas sobre o
crime perpetrado pelo conde Bothwell. Shakespeare, sobre o qual ainda hoje não
há certezas sequer sobre se era católico ou protestante, aborda o tema mas
evita tomar partido nessa querela que readquiriria actualidade ante a iminência
da morte de Isabel I e a abertura do problema da sua sucessão. Qual o motivo,
então, para Shakespeare correr o risco de colocar em cena uma rainha que casa
meses depois com o assassino do seu marido? Schmitt não formula essa pergunta
e, por conseguinte, não oferece uma resposta. De qualquer modo, tudo sugere
que, no quadro da interpretação schmittiana, a resposta só poderia ser uma: tal
ia ao encontro dos interesses de Essex e de Southampton – e também de James –
no jogo da sucessão isabelina.
Hamlet, a tragédia do jogo, seria, ela própria, uma peça que serviu de peça num
jogo mais vasto. Daí o subtítulo deste texto, em que se inverteram as
coordenadas linguísticas que servem de subtítulo ao ensaio de Schmitt; se este
falava da «irrupção do tempo no drama do jogo» (Der Einbruch der Zeit in Das Spiel), pode igualmente falar-se,
talvez até com mais propriedade, numa «irrupção do jogo no drama do tempo». É o
carácter dramático daquele tempo que impõe o jogo, o Spiel, como única forma de acção política no âmbito daquilo a que
Elias chamaria «sociedade de corte»[107].
Filho
de Maria Stuart, James, apesar de manter a sua posição no jogo sucessório,
nunca renegou a sua mãe e, no seu livro Basilikon
Doron (1599) exortou mesmo o seu filho a honrar a memória da avó. Desse
modo, ao abordar o tema da rainha que casa com o assassino do marido,
Shakespeare não poderia pronunciar-se abertamente pela culpabilidade da
monarca, sob pena de alienar a simpatia ou o apoio de James. E, mais
decisivamente do que isso, Hamlet não é uma cópia perfeita de James, questão
que Carl Schmitt deixa muito clara quando aborda o «desvio da figura do
vingador»: «Não digo que o Hamlet de Shakespeare seja uma réplica do rei James,
o que seria desastroso do ponto de vista artístico e impossível do ponto de
vista político». Daí a importância da distinção schmittiana entre alusões,
reflexos e irrupções do tempo, um procedimento que, até certo ponto, lhe
permite ultrapassar o non sequitur a
que chegara Lilian Winstanley, que afirma, a dado passo: «não considero que
Hamlet seja apenas um retrato de James I; parece-me que contém também muito de
Essex, do Essex no seu último ano de vida. […]; entendo que Hamlet não é o retrato de ninguém»[108].
11. Representação e
jogo, ou o mundo como teatro – havia, porém, outro
senhor a quem Shakespeare tinha de servir e satisfazer: o público londrino que
acorria a ver as suas peças; esta, em particular, terá sido representada pela
primeira vez no Globe pela sua
companhia, The Lord Chamberlain’s Men, em 1600. A Inglaterra protestante –
Londres, em particular – estava firmemente convicta da culpabilidade de Maria
Stuart. Assim, actuando no fio da navalha, Shakespeare terá encontrado, através
do «tabu da rainha», o expediente que lhe assegurou uma representação
aproximada da realidade. Representação imperfeita, decerto, eivada de máscaras
e de disfarces, mas a única possível no contexto daquilo que Schmitt designa
por «realidade histórica temível».
A
indecisão ou double bind (Gregory
Bateson) de Hamlet faz parte do Spiel.
Talvez não do jogo de Hamlet entre os cortesãos de Elsinor, mas do jogo que
Shakespeare joga com o público que assistia à peça, à play. Até do ponto de vista da expressão corporal, existiam regras
para exprimir a indecisão do príncipe; assim, no famoso solilóquio de Hamlet
onde são proferidas as palavras to be or
not to be, o actor deveria começar por estender ao mão dizer ao dizer «ser»
e depois a esquerda quando pronunciava «ou não ser», unindo-as em seguida para
concluir: «eis a questão». Quando evoca Hécuba, Hamlet coloca-se na posição
hipotética, algo ambígua, do actor que tivesse de o representar a ele. É Hamlet-actor
de si próprio, num mundo que é um palco,
para utilizar a famosa expressão «All the world’s a stage», constante da
comédia pastoral As You Like It,
escrita por Shakespeare em 1599 ou 1600. Curiosamente, as duas rainhas
inimigas, Isabel I e Maria Stuart, haviam, cada qual à sua maneira, reconhecido
o carácter simbólico ou representativo do seu mandato, afirmando a primeira:
«Nós, príncipes, é como se estivéssemos em palco à vista do mundo». Por sua
vez, a Rainha dos Escoceses dissera que «o teatro do mundo é mais amplo que o
reino de Inglaterra». Tratava-se, como refere Peter Ackroyd[109],
de um lugar-comum do período final do Renascimento, não de um dito
particularmente original de William Shakespeare. Schmitt considera que se trata
de um vislumbre do surgimento do Barroco[110],
enquanto um seu comentador, Carlo Galli, pretende situar a questão no tempo
suspenso do Maneirismo[111].
O juspublicista germânico sublinha que, nos alvores do século XVII, a
totalidade do mundo havia sido convertida em palco, como Theatrum Mundi, Theatrum
Naturæ, Theatrum Europæum, Theatrum Belli, Theatrum Fori. A
teatralidade do agir e o sentimento cénico marcavam sobremaneira os que viviam
no perímetro do poder[112].
É sintomático que, nos conselhos que dá ao filho, James I, além de o advertir
para honrar a memória da sua infortunada avó, lhe recorde que nunca se
esquecesse que, enquanto rei, estaria sempre em cena, com todos os olhares
centrados na sua figura. Isabel I, Maria Stuart e James I, todos tinham plena
consciência da teatralização inerente à dimensão representativa e performativa
do exercício do poder régio. Não obstante ser esse o domínio em que os
elementos de cenarização e de encenação mais sobressaíam, toda a sociedade
entendia a acção humana como teatral. «O mundo é um actor», rezava o lema do Globe. No mundo-feito-palco, que haveria a fazer? Representar, obviamente. To play, jogar com os interlocutores.
Mas, de algum modo, também Carl Schmitt acaba por «jogar» com o seu auditório,
designadamente quando recorre à versão de Hamlet
que, sendo considerada mais imperfeita ou duvidosa do ponto de vista da
fidedignidade (Q1, ou o «bad» quarto
de 1603), é aquela que, no entender do autor de Hamlet ou Hécuba, melhor exprime a relação do príncipe da Dinamarca
com o poder.
Mas o ponto mais relevante, no quadro
da interpretação schmitiana, prende-se com a instauração de um dispositivo
especular – Hamlet reflecte-se no actor que, por sua vez, reflecte Hamlet – e,
sobretudo, a introdução de um elemento lúdico (Spiel) num contexto dramático a que convencionalmente é alheio.
Schmitt distingue, como vimos, meros
reflexos, por um lado, e verdadeiras
irrupções. O seu ensaio, porém, evoca diversas vezes a questão da
representação, a ponto de chamar para o título a alusão de Hamlet a Hécuba que
confronta, de um lado, as lágrimas derramadas por Hécuba e, do outro, aquelas
com que o príncipe inundaria o palco se acaso tivesse de representar a sua dor.
A representação teatral – e talvez também a representação política –,
configuram-se, neste contexto, como meros reflexos da realidade e é justamente
por isso que, quando existe uma irrupção do tempo no jogo dramático, a
liberdade criativa do autor e dos actores tenha de sofrer uma compressão. Aí
reside o sentido profundo da irrupção do tempo: ela é, em si mesma, tão intensa
e violenta («dramática», no fundo) que o espaço da representação acaba por ser
limitado. A realidade impõe-se ao criador: Shakespeare não escreveu a peça que
queria, mas aquela que as circunstâncias do tempo lhe permitiam. Teve de deixar
em aberto a questão da culpa de Gertrudes, em torno dela construindo o «tabu da
rainha», como teve de introduzir o «desvio da figura do vingador» por imposição
do problema sucessório de Isabel e da ascensão ao trono de James. O espelho é
frequentemente usado como metáfora da realidade
representada, não da realidade real. Mas, no jogo dos espelhos, que Orson Welles
apresentaria de forma magistral em A Dama
de Xangai (1947), aqueles também funcionam como instrumentos de
apresentação da realidade, ainda que em termos reflexos ou, por assim dizer,
«especulares». Em Ricardo II, só
quando se olha ao espelho o rei se confronta com a sua condição de monarca
deposto. Aqui, em Hamlet, o príncipe
confronta a mãe com um espelho (metafórico, decerto) para que a rainha possa
nele ver-se no mais íntimo do seu ser: «Não me irei sem mostrar-vos um espelho
/ Onde podeis ver-vos por dentro.» (III, 4).
O
rosto é um espelho da alma, ou poderá não sê-lo para os que vivem num ambiente
dominado pela dissimulação e pela hipocrisia. Por isso Cláudio pergunta a
Laertes se verdadeiramente amava o seu pai ou se, pelo contrário, seria um
«triste simulado», um «Rosto que não espelha o coração?» (IV, 7). Simplesmente,
a representação e o jogo, impostos pela dramática necessidade de viver (e
sobreviver) num mundo-feito-teatro, obrigam a que, frequentemente, o rosto não
seja o espelho do coração. Se tal sucede, de um modo geral, na apresentação do eu na vida de todos os dias,
para usar o conhecido conceito de Erving Goffman[113],
o jogo do simulacro torna-se mais necessário num ambiente palaciano – ou, mais
latamente, político –, para mais quando nele se desenrola e precipita um drama de vingança que tem por objecto a
própria figura do monarca. O domínio do poder é aquele em que, por natureza, as
máscaras, as personæ, se interpõem
entre o rosto do coração e o rosto representado. Homem d’un só parecer / D’un só rosto e d’ua fé, / D’antes quebrar que
volver, / Outra cousa pode ser, / Mas de corte homem não é, escreveu Sá de
Miranda na carta «A El-rei D. João»[114]. Esta multiplicidade dos rostos e das
máscaras é uma imposição irrecusável do viver cortesão, como assegura Sá de
Miranda (por natureza, um homem de
corte não pode ter um só rosto). Daí que, para Hamlet, viver na Dinamarca seja
«uma prisão». Prisão que impõe uma cisão no eu, o seu estilhaçamento numa
pluralidade de rostos. Para representar e simular a loucura, Hamlet teve de se
dividir. Di-lo-á a Cláudio, num diálogo que é, ele próprio, pleno de hipocrisia
e inverdade. Hamlet, regressado da viagem a Inglaterra, pede perdão a seu tio
ou, talvez mais precisamente, a Laertes. E justifica-se: «Terá sido Hamlet que
ofendeu Laertes / – Nunca o Hamlet verdadeiro / Sim o fora de si, o
tresloucado. / Não tem sido o Hamlet consciente / Não fui realmente eu e
portanto nego. / Quem então? Sua loucura e nada mais.» (V, 2).
Não por acaso, o subtítulo do livro é
«A irrupção do tempo no jogo do drama». A dado trecho, Hamlet refere-se à
inautenticidade do jogo, comparando os votos nupciais de sua mãe às juras
falsas dos jogadores de dados (III, 4). Prosseguindo o crudelíssimo discurso
que pronuncia perante Gertrudes, o filho pergunta-lhe porque trocara seu pai,
«a alta montanha», pelo tio, um «lamaçal», que demónio a fizera entrar «neste
infernal jogo de cabra-cega» (III, 4).
Schmitt, que conheceu a obra de Johan
Huizinga Homo Ludens (1938)[115],
apercebe-se das potencialidades explicativas do elemento lúdico para
compreender o processo de instauração do Estado moderno. A temática do jogo,
sublinhe-se, será explorada por autores que, situados num quadrante ideológico
muito distinto, desenvolveram a Teologia Política[116],
com destaque para o livro de Jürgen Moltmann traduzido entre nós com o título A Alegria de Viver[117].
Sublinhe-se que Moltmann – como, de resto, outros «teólogos políticos», com
destaque para Johann Baptist Metz ou Dorothee Sölle – conhecia a obra de
Schmitt, Teologia Política I (1922) e
este, por seu turno, em Teologia Política
II (1969), mostra estar familiarizado com os trabalhos de Metz e Moltmann.
A questão central, que surge mais
insinuada do que explicitada neste livro de Schmitt – e que, essa sim,
percorre, ainda que sob outros cambiantes, vários momentos da sua obra, como a
reflexão sobre o parlamentarismo –, é a de saber se, num tempo dominado pelos
«simulacros» (Braudillard) ou pelo «espectáculo» (Lipovetsky), a política
deixou de ser um espaço de decisão (ou de decisionismo…) para se converter num
espaço de jogo, um jogo no âmbito do qual as próprias linhas de demarcação da
amizade e da inimizade perderam nitidez e clareza, ou até fulgor dramático,
enquanto categorias fundadoras do «político». Em Carl Schmitt, o jogo e o seu
sentido lúdico remetem para um sistema secundário, que não se confunde com a
seriedade própria da ordem política, e a partir daqui emerge uma constelação de
dicotomias: jogo/seriedade, liberdade/necessidade, Estado/estado de excepção,
teatro/política[118].
Simplesmente, o Spiel ou play, ainda que envolvendo uma dimensão
de conflitualidade, não convoca, pelo menos de forma necessária, a demarcação
entre amigo vs. inimigo e, pelo
contrário, supõe até a supressão da inimizade que é própria da acção política
autenticamente decisionista. Mais: para Carl Schmitt, o jogo é alheio à
contraposição verdade/falsidade, o Spiel,
por natureza, não é verdadeiro ou
falso[119].
Deste modo, o jogo integra-se no processo de «despolitização»[120]
que, segundo Schmitt, caracteriza a modernidade e, a esta luz, a política
reconfigurada como espaço de liberdade indiferenciada, já não como um lugar de
decisão e seriedade[121],
conclusão que valeu a Schmitt uma acerba crítica por parte de Huizinga, que
contesta, desde logo, um dos pressupostos essenciais daquela construção, a
«desconcertante antítese entre jogo e seriedade»[122].
Porém,
se o jogo passa a configurar-se como metáfora
do mundo, de acordo com Hans Urs von Balthasar[123],
tal significa que a totalidade do mundo é susceptível de ser representada, ao
menos metafórica ou alegoricamente[124],
através da imagem do jogo. Porém, se assim for a política, porque inserta no
mundo, será absorvida pela hipertrofia do Spiel.
O jogo adquire, então, uma hegemonia inescapável, relativamente à qual todas as
demais dimensões da vida, incluindo a política, não se conseguem furtar. Todo o mundo é um palco.
A
noção de que o jogo implica uma diluição das fronteiras de amizade e de
inimizade surge, de resto, na própria peça de Shakespeare. A dado momento,
quando confronta Laertes com o seu cego desejo de vingança, Cláudio diz-lhe:
«Bom Laertes / Se quereis saber a verdade / Sobre a morte de vosso querido pai,
/ Na vossa vingança está já escrito / Que,
como no jogo, / Amigos e inimigos por igual trateis / Confundindo o que
ganha e o que perde?» (IV, 5; itálicos acrescentados). Na verdade, para aquele
que se dispõe to play, para quem
aceita a política como Spiel[125],
a diferença entre Freund e Feind tem necessariamente de ser posta
de parte, sob pena de o jogo não poder jogar-se. E essa imposição tem um
desdobramento na «despolitização» e «neutralização» da contemporaneidade, tema
que Schmitt explorara, pelo menos, desde 1928.
12. Hamlet, mito
europeu – no início do seu ensaio, Carl Schmitt interroga-se
sobre um problema central: como foi possível ao espírito europeu, sujeito a um
profundo processo de desmitificação desde o Renascimento, ter gerado um mito
com a força e a atractividade de Hamlet? Esta pergunta é colocada logo nas
primeiras páginas do livro, mas Schmitt só procura responder-lhe na parte final,
quando se confronta com um debate central da cultura alemã, a discussão sobre a
essência e as origens da tragédia. Neste passo, a diferença entre «tragédia» (Tragödie) e «drama trágico-lutuoso» (Trauerspiel), amplamente aprofundada por
Walter Benjamin[126],
faz emergir, uma vez mais, a importância do jogo, do Spiel, na dinâmica de Hamlet.
No entanto – e este ponto é decisivo –, Schmitt afasta-se de Benjamin[127]
por considerar que o drama inglês não se poderia aproximar do Trauerspiel alemão, dado que aquele relevava
da configuração histórica peculiar que a Inglaterra assumira enquanto ilha, que
paulatinamente tomou o domínio dos oceanos, tema desenvolvido em Terra e Mar (1942)[128]
e, em especial, em O Nomos da Terra (1950).
É sintomático que em todas as peças
de Shakespeare exista, pelo menos, uma referência ao mar, geralmente
apresentado como um meio hostil, espaço de tempestades e naufrágios[129].
Em Hamlet, porém, o rei Cláudio alude
ao «mar sereno» (III, 1). Ao alcançar a hegemonia dos mares – segundo Carl
Schmitt mais por força da iniciativa privada do que por acção de um Estado em
convulsão, chefiado por uma dinastia indecisa, «hamletiana», quanto a esse
projecto[130]
–, a Inglaterra (ou, se preferirmos, a Grã-Bretanha do rei James) assume uma
feição singular e ainda mais insular,
o que se projectou em todas as esferas da vida. «Esta terra de majestade / […]
Esta fortaleza que para si própria a Natureza construiu / […] Este torrão
abençoado, este país, este reino de Inglaterra», diz-se em Ricardo II (III, 2). A dramaturgia inglesa adquirira um carácter
«bárbaro» ou «elementar» e o teatro isabelino recorria a métodos muito mais
«brutais» ou «directos» de interacção com o público[131].
Mais ainda, Hamlet não se configura
como um Trauerspiel, tipicamente
continental (ou «terrestre»), mas com
uma verdadeira tragédia, já que as duas irrupções do tempo – de um tempo
conflitual e negativo[132]
–, patentes no «tabu da rainha» e no «desvio da figura do vingador» tornaram
possível que Hamlet, à semelhança de Fausto e de Dom Quixote, se guindasse à
categoria de mito europeu da modernidade, e que a peça se elevasse do nível do Trauerspiel para o da Tragödie. Esta é caracterizada pela
«realidade objectiva da tragédia em si mesma», pelo confronto entre as
coordenadas dramatúrgicas e a realidade histórica, que a audiência realmente vivia. Por isso, a tragédia,
no limite, não é passível de ser ficcionada, representada, teatralizada ou
relativizada. Assim se compreende o propósito schmittiano de inserção da peça
no contexto histórico preciso da Scotish
Succession. O «tabu da rainha» e o «desvio da figura do vingador» são
indício de uma poderosa e devastadora irrupção
do tempo, de um tempo trágico, não de uma mera alusão ou de um simples reflexo.
E se as lágrimas por Hécuba remetem ainda para o domínio do artifício e da
estética, sobretudo do ficcionalismo, tópico muito presente no pensamento
schmittiano[133],
e, por conseguinte, da representação e do Trauerspiel,
as lágrimas por Hamlet são lágrimas de sangue, verdadeira e essencialmente trágicas, insusceptíveis de serem
levadas ao palco porque se situam no âmbito da política e da realidade. No
caso, de uma realidade histórica que assistia a um progressivo adensar da
secularização, da despolitização e da «estetização», características do
alvorecer da modernidade, em que a decisão soberana cede o passo perante o
domínio da representação liberal, de que Hobbes é um precursor. Resta saber se,
para o juspublicista alemão, não se viviam dois dramas do tempo trágico: aquele
em que Shakespeare apresentou Hamlet;
e outro, mais recente mas de idêntica e catastrófica tragicidade, aquele em que
Schmitt proferiu a sua conferência em Düsseldorf e posteriormente a deu à
estampa com o título Hamlet ou Hécuba.
No
entanto, no cortejo com Fausto, alemão e protestante, e com Quixote, castelhano
e católico, Hamlet situava-se numa posição incerta, reflectindo o cisma que
determinara o destino da Europa no contexto de uma situação histórica que era,
ela própria ambivalente, porquanto compreendia a dissolução da ordem simbólica
tardo-medieval e, na transição para a Idade Moderna, a afirmação de um novo
ordenamento político, jurídico e espacial da terra, o nomos[134].
A visão de Hamlet como um mito de
grande alcance e projecção vai ao encontro da ideia schmittiana, não afirmada
abertamente, de que a Europa do pós-guerra era um mundo lacerado pela fractura
de um espírito «hamletiano» em que Carl Schmitt não se revia e do qual se
sentia desfasado – desfasamento que, em larga medida, era deliberado, empenhado
e até militante, ainda que não combativo mas passivo, prudente e silente. O seu
ensaio sobre Hamlet ou Hécuba é mais
autobiográfico do que parece[135],
e nele pressente-se a marca dramática, verdadeiramente trágica, de uma experiência pessoal de confronto com o weberiano «desencantamento
do mundo» (Entzauberung der Welt). Se
William Shakespeare possuía um carácter esquivo e fugidio[136],
se ambicionava a uma tranquilidade burguesa que lhe permitisse prosseguir a
carreira de poeta e autor de teatro com periódicas estadias na sua terra natal,
Carl Schmitt sempre foi igualmente uma personalidade furtiva, amargamente
marcada pelo desejo de segurança, em cujos escritos nem sempre é possível
perceber as verdadeiras intenções que lhes subjazem nem os reais desígnios que
os animam.
13. Schmitt &
Shakespeare – num registo mais objectivo, dir-se-á,
a concluir, que Hamlet é uma obra de
alusão e de ocultação, em que a elipse e o não-dito surgem como formas de
autodefesa do próprio autor num contexto histórico problemático. A
interpretação de Schmitt assemelha-se neste aspecto à obra que analisava e, sem
forçar analogias descabidas, há uma clara identificação do jurista alemão com o
poeta e dramaturgo inglês, cuja biografia fugidia e opaca tem, desde há vários
séculos, inspirado as mais desencontradas interpretações, a ponto de na sua
obra se poder encontrar tudo e o seu contrário. É impressionante o contraste
entre a escassez do que se sabe sobre a sua vida e a vastidão das
interpretações que em torno dela têm sido propostas. A imensidão da bibliografia
shakespeariana assume proporções colossais, insanas, calculando-se que todos os
anos sejam publicados cerca de 4.000 estudos de fôlego sobre Shakespeare e o
seu génio. O «mito» Shakespeare construiu-se, em larga medida, devido ao facto
de sabermos tão pouco sobre a sua vida. Basta referir que, mesmo considerando
as liberdades na grafia que existiam no seu tempo, nas sete assinaturas que
dele se conhecem o seu nome não aparece escrito duas vezes da mesma maneira e
jamais surge grafado como «Shakespeare» (note-se que, no único autógrafo que se
conhece de Christopher Marlowe, este assina «Cristofer Marley»…). Ao fim de
quatrocentos anos de pesquisas, sabe-se que nasceu em Stratford, aí constituiu
família, foi para Londres, onde ingressou no mundo do teatro, tendo
posteriormente regressado à terra natal, fez testamento e morreu. De autêntico
e objectivo, é isto o que de essencial se sabe sobre William Shakespeare.
Porventura, mais do que a representação de peças que sustentavam a tese do
direito divino dos reis, ou que afirmavam a união da Grã-Bretanha (em Cymbeline, concebida para a corte,
Shakespeare utiliza quase cinquenta vezes as palavras «Britânia» e «bretões»
para se referir à nova unidade política[137]),
ou ainda que engrandeciam a linhagem do monarca, como Macbeth[138],
o incomparável contributo que deu para o enriquecimento da língua inglesa foi o
serviço mais importante prestado a James I e ao sentido político do seu reinado. Para a afirmação do inglês em
detrimento do latim – e recorde-se a tradução da Bíblia para a língua
vernacular, um projecto cultural e espiritual, mas também político, de James I
–, Shakespeare inventou 2035 palavras. Só em Hamlet, existem 600 palavras que jamais tinham sido usadas. A par
disso, criou inúmeras expressões ainda hoje de uso corrente (vanishing into thin air, pomp and circumstance, cold comfort), criando um legado ímpar
para a consolidação do inglês num tempo em que o latim, a língua da Roma
católica, ainda era dominante (dos quase 6000 volumes que a Bodleian Library
tinha em 1605, apenas 36 eram escritos em língua inglesa). Aliás, e como já
notaram diversos comentadores, apesar de Shakespeare ser considerado um autor
dramático do período isabelino, a sua fase de produção mais intensa e brilhante
situa-se no reinado de James I. À maior maturidade do autor associava-se,
indiscutivelmente, uma maior tranquilidade das suas condições de trabalho,
agora que actuava sob os auspícios do próprio rei e contava com a sua
protecção. A criatividade e produtividade de Shakespeare muito devem aos
Stuart, possivelmente mais do que aos Tudor.
Schmitt
não pretende abertamente irmanar-se com Shakespeare, mas alimenta claramente a
pretensão de ter compreendido, como poucos, o sentido profundo da sua obra. Hamlet é uma peça que lida com questões
políticas extremamente sensíveis numa época perigosa. William Shakespeare não
deixou de as abordar, fazendo-o de um modo suficientemente nítido para ser
percebido pelo seu público mas, em simultâneo, suficientemente cauteloso para
não ser perseguido e punido pelo exercício do seu génio criativo. Em Hamlet não existe apenas uma play within a play, que é representada
pelos actores que derramam lágrimas de palco por Hécuba. Por trás dessa peça
dentro da peça, outra peça existe, outro drama se desenrola: aquele que impõe
ao autor que seja também actor, jogando o jogo do simulacro e fazendo uso, como
o príncipe da Dinamarca, das artes da alusão, da elisão e da ilusão. Para
alguns, este não será ainda o jogo dos espelhos e das duplicações que encontramos
no período absolutista, em que o mundo é representado como se fosse visto
através do olhar do soberano[139].
Trata-se, isso sim, de uma dúplice representação, que é capaz de conter laivos
de comicidade e, ao mesmo tempo, de acolher a seriedade trágica que era
extrínseca ao drama[140],
e que dele faz, segundo Schmitt, não um Trauerspiel
mas uma verdadeira Tragödie.
Haverá, assim, como que a play within a play within a play. Este
era um jogo que Shakespeare dominava, aliás. Devido ao facto de em Inglaterra
os papéis femininos serem representados por homens, ao contrário do que já
sucedia em França, em Itália ou em Espanha, Shakespeare subverteu e satirizou
essa convenção disfarçando de rapazes as suas figuras femininas. Nesse jogo de
espelhos e de confusão de géneros, presente na figura de Rosalind em As You Like It e de Viola em Twelfht Night, temos, em palco, uma
rapariga que faz de rapaz que, por sua vez, faz de rapariga… Noutros casos, o
génio criativo de Shakespeare introduz na própria peça a sua condição de peça,
a sua natureza teatral ou representativa, interpelando o auditório e
destruindo, por instantes, a suspension
of disbelief que ditava o envolvimento do público, momentaneamente
devolvido à realidade. Em Henrique V,
uma personagem pergunta, referindo-se ao espaço do teatro: «Poderá este pequeno
recinto albergar as vastas campinas de França?»; em Henrique VI, Parte Segunda, vai ao ponto de solicitar ao público
para «suprir a nossa actuação com a vossa imaginação». Para usar um conceito de
Peter Burke, era o mundo como teatro[141]
levado à sua máxima expressão, aquela em que o próprio mundo era chamado ao
palco, convocado para o interior da peça, devendo colaborar, através da
imaginação, para corrigir as suas deficiências e colmatar as suas lacunas. Se
aí o intuito era subverter as regras dramáticas e explorar seja a comicidade
cénica (Rosalind em As You Like It e
Viola em Twelfht Night), seja os
limites da representação teatral (Henrique
V e Henrique VI, Parte Segunda),
noutros casos o objectivo consistia em garantir um espaço de segurança,
dissimulando aquilo que o público entendia mas que não era dizível ou não era
representável, o que convoca de novo o tema dos limites da representação. Para tanto, segundo Carl Schmitt,
Shakespeare fez-se valer de artifícios como o «tabu da rainha» e o «desvio da
figura do vingador», sendo o primeiro, enquanto proposta interpretativa de Hamlet, muito mais linear, inteligível e
credível do que o segundo. Em todo o caso, é sintomático que Schmitt haja
escolhido Hamlet como objecto de
estudo e, mais ainda, tenha desenvolvido em seu torno uma proposta
interpretativa ancorada em tópicos como a ocultação e a alusão, a opacidade da
mensagem narrativa ou os não-ditos, considerando que esses expedientes foram
usados por uma necessidade de autodefesa em face de um ambiente hostil. O ponto
crucial não reside tanto no facto de Carl Schmitt apresentar uma interpretação
original e ter ou não razão e pertinência na leitura que realiza, mas sim na
circunstância de nessa leitura crepuscular e desgastada se encontrarem
vestígios – ou reflexos… – da sua
própria situação pessoal, tal como Schmitt a encarava e deixou afirmado em Ex Captivitate Salus. Dizendo alcançar o
máximo de objectividade na sua leitura, acaba por marcá-la, pois, com uma
fortíssima carga subjectiva.
De
todo o modo, a sua leitura de Hamlet
é, objectivamente, próxima da obra de Shakespeare e do seu sentido histórico.
Carl Schmitt não atribui os silêncios de Shakespeare a meras razões
contingentes de autodefesa; os não-ditos, em Hamlet, correspondem, acima de tudo, a uma impossibilidade de
representação dos dados externos, expressa através do conceito de irrupção, revelador da transcendência da
realidade relativamente à arte e à própria liberdade inventiva do génio criador[142],
ponto em que o autor de Romantismo
Político afronta directamente as concepções estéticas românticas.
Em
Hamlet ou Hécuba, porém, a linha
interpretativa dominante – ou, pelo menos, mais claramente apreensível – faz
radicar a origem dos «tabus» e dos «desvios» em motivos de natureza pessoal, em
sentimentos de medo e de autodefesa. Deste modo, e ainda que interpelando uma
realidade histórica concreta e precisa, essa linha acaba por ser contaminada
por um «subjectivismo hermenêutico» em torno da personalidade do autor (no
caso, William Shakespeare) a que Schmitt é involuntariamente conduzido. Num
certo sentido, também Carl Schmitt será sujeito e limitado pela irrupção do tempo, não só do tempo em
que Hamlet foi concebido mas também,
e porventura até mais decisivamente, do tempo em que Hamlet ou Hécuba foi escrito e publicado.
Mais
do que o ajuste de contas com o romantismo
estético, também presente em Hamlet
ou Hécuba, as contingências do tempo sobre a liberdade criativa constituem,
seguramente, o ponto crucial do refugiado em Plettenberg. No período terminal
dos Tudor e no período inaugural dos Stuart não se chegara certamente ao
extremo, descortinado por Leo Strauss em 1952, de a técnica de escrita ser
condicionada em absoluto pelo medo da perseguição[143].
Todavia, os perigos existiam, eram reais e intensos, e Shakespeare estava
consciente deles. Hamlet poderá não
ser exemplo de literatura perseguida,
mas é seguramente uma obra onde são visíveis as marcas e os signos de uma literatura cautelar ou prudencial[144].
Quando chega a Londres, o jovem William terá muito possivelmente visto,
expostas na antiga ponte, as cabeças decapitadas dos membros da nobreza e dos
grupos sociais mais elevados. Eram aí exibidas às dezenas, servindo de alimento
aos corvos, e existia um oficial público, o Keeper
of the Heads, cujo único encargo era zelar pela encenação deste espectáculo
de sangue em que o poder se projectava de forma ostensiva e macabra. Ao
contemplar essas cabeças, entre as quais se chegou a encontrar a de um seu
parente afastado, Shakespeare, por certo, ter-se-á sentido «um fraco humano», o «bicho da terra tão pequeno» a que
Camões alude no Canto I de Os Lusíadas.
Além
do mais, e para não nos cingirmos a uma explicação meramente «prudencial» ou
«securitária» da obra de William Shakespeare, devemos ter presente que o
próprio autor viveu na transição para a modernidade, com todas as tensões e
rupturas que isso implicava, envolvido num universo de representações mentais
que oscilavam entre catolicismo e protestantismo, entre tradições feudais e
ambição burguesa, entre instinto e racionalidade, entre fé e cepticismo[145].
Todos à sua volta, incluindo o seu pai e os seus companheiros, os seus patronos
ou colegas de ofício como Thomas Kyd e Christopher Marlowe, experienciaram pessoalmente
as incertezas de um tempo de desordens.
Resta saber em que medida as contradições da época se projectaram na dinâmica
interna de Hamlet, como sustenta John
Dover Wilson, para quem a escatologia de Horácio e Hamlet é protestante, o
Fantasma é católico[146]
e Bernardo e Marcelo são isabelinos sem convicções religiosas firmadas.
Se atendermos ao que Schmitt escrevera
pouco antes em Ex Captivitate Salus,
se tivermos em conta o ostracismo e o silenciamento a que se encontrava votado
nos meios intelectuais alemães, não é difícil alcançar que, no universo das
suas representações mentais, o autor de Hamlet
ou Hécuba acabava por ver o reflexo do seu próprio rosto na tragédia da
corte de Elsinor, agora ampliada numa tragédia mais vasta, que envolvia toda a
Europa.
Talvez
se encontre no próprio Hamlet a mais
eloquente conclusão que se pode extrair do sinuoso percurso schmittiano pela
obra de Shakespeare. Essa conclusão é a que consta da derradeira fala do jovem
príncipe, quando este suspira, moribundo; e diz:
The
rest is silence.
(*) O presente
estudo corresponde, com profundas alterações, ao texto que serviu de base à
intervenção que fiz no colóquio sobre Carl Schmitt que teve lugar na Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa nos dias 8 e 9 de Maio de 2013, sendo
organizado pelos Professores Doutores Carlos Blanco de Morais e Luís Pereira
Coutinho, a quem agradeço novamente o honroso convite para participar naquelas
jornadas. Reunindo as diversas intervenções nesse colóquio, seria
posteriormente publicado, em formato digital, o livro Carl Schmitt Revisitado, org. de Carlos Blanco de Morais e Luís
Pereira Coutinho, Lisboa, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade
de Direito de Lisboa, 2014, em que, por absoluta indisponibilidade de tempo,
não me foi possível integrar um trabalho que, pese as suas flagrantes
deficiências e a reformulação de que entretanto foi alvo, é agora dado à
estampa numa obra colectiva de homenagem ao Professor Doutor Bernardo da Gama
Lobo Xavier, iniciativa a que desde a primeira hora me associei com o maior
aprazimento.
[1] No original: Hamlet
oder Hekuba, Der Einbruch der Zeit in Das Spiel, Düseldorf-Colónia, Eugen Diederichs
Verlag, 1956.
[2] Cf. Joseph W. Bendersky, Carl Schmitt. Theorist for the Reich, Princeton, NJ, Princeton
University Press, 1983. Note-se que a mais recente e desenvolvida biografia de
Carl Schmitt, um volume de 700 páginas, dedica uma das suas quatro partes aos
tempos do pós-guerra, com um capítulo inteiro em que se analisa em que medida Ex Captivitate Salus e Halet ou Hécuba representaram um comeback de Schmitt como intellectual
público: cf. Reinhard Mehring, Carl
Schmit. A Biography, trad. inglesa,
Cambridge-Oxford e Boston, 2014.
[3] Cf. Joseph W. Bendersky, Carl Schmitt…, cit., p. 275, nota 4. De resto, nas listagens da
principal bibliografia activa de Carl Schmitt não é usual surgir Hamlet ou Hécuba: cf., por exemplo,
Jacky Hummel, Carl Schmitt. L’irréductible
réalité du politique, Paris,
Éditions Michalon, 2005, pp. 111-112.
[4] Cf. Gopal Balakhrishnan, The Enemy. An Intellectual Portrait of Carl Schmitt, Londres-Nova
Iorque, Verso, 2000. De igual modo, o estudo mais vasto e profundo sobre a obra
de Carl Schmitt realizado entre nós, e ainda que centrando-se em particular no
período dos anos 20 e 30, não refere Hamlet
ou Hécuba: cf. Alexandre Franco de Sá, O
Poder pelo Poder. Ficção e Ordem no combate de Carl Schmitt em torno do Poder,
Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009.
[5] Cf. Carl Schmitt, Hamlet
or Hecuba. The Intrusion of the Time into the Play, introd. de Jennifer
Rust e Julia Reinhard Lupton, Candor, NY, Telos Press Publishing, 2009. Há uma
edição anterior, mas igualmente recente, de 2006, que Julia Reinhard Lupton não
refere nos seus trabalhos: Carl Schmitt, Hamlet
or Hecuba. The Irruption of Time into Play, ed., tradução e posfácio de
Simona Draghici, Plutarch Press, Corvallis, Or., 2006. Com tradução de David
Pan, alguns fragmentos do texto de Schmitt foram publicados em 1987, com o
título «Sources of the Tragic», Telos,
nº 72, Verão de 1987, pp. 133-152.
[6] Neste sentido,
cf., entre outros, recenseando a abundante bibliografia produzida no mundo
anglo-saxónico, Victoria Kahn, «Hamlet or Hecuba: Carl Schmitt’s Decision», Representations, Vol. 83, nº 1, Verão de
2003, p. 67, em esp. nota 1; mais desenvolvidamente, Jan-Werner Müller, A Dangerous Mind. Carl Schmitt in Post-War
European Thought, New Haven, CT, Yale University Press, 2003.
[7] Sobre «Schmitt
na América», num breve apontamento, cf. Miguel Nogueira de Brito, «A excepção
no pensamento político e jurídico de Carl Schmitt», in AA.VV., Carl Schmitt Revisitado, cit., em esp.
pp. 169ss.
[8] Cf. Gerwin Strobl, «The Bard of Eugenics: Shakespeare
and Racial Activism in the Third Reich», Journal
of Contemporary History, Vol, 34, nº 3, 1999, pp. 323-336. Sobre a
apropriação de Shakespeare pelo nazismo, cf. Victoria Kahn, «Hamlet or Hecuba…»,
cit., pp. 80-81, citando os trabalhos mais desenvolvidos de Werner Habicht,
«Shakespeare and Theater Politics in the Third Reich», in Hannah Scolnicov e
Petter Holland (eds.), The Play Out of
Context: Transferring Plays from Culture to Culture, Cambridge, Cambridge
University Press, 1989, pp. 110ss; Wilhelhm Hortmann, Shakespeare on the German Stage: The Twentieth Century, Cambridge,
Cambridge University Press, 1998. De acordo com Victoria Kahn, a apropriação de
Shakespeare pelo nazismo contribui para explicar o interesse de Schmitt por Hamlet e a sua forma de abordagem à
peça, o que constitui uma tese não só bastante arriscada como, aparentemente,
sem qualquer base factual.
[9] Trata-se do
texto «Was habe ich getan?», em que Schmitt sintetiza o seu ensaio e procura
responder aos seus críticos, tendo sido originalmente publicado em Diestland-Europa. Uitgegeven door de
Jong-Nederlandse Gemeenschap, II, 1957, nº 1, pp. 7-9, e traduzido em
italiano como «Amleto», Il Borghese,
de 19-XII-1957, pp. 996-997, surgindo como post
scriptum na edição italiana de Hamlet
ou Hécuba: cf. Carl Schmitt, Amleto o
Ecuba. L’irrompere del tempo nel gioco del drama, tradução italiana de
Simona Forti, Bolonha, Il Mulino, 1983, pp. 119-124. Este texto não é publicado
na edição castelhana: cf. Carl Schmitt, Hamlet
o Hecuba. La irrupción del tiempo en el drama, tradução castelhana de Román
García Pastor, s.l., Universidad de Murcia, 1993; cf. ainda a edição francesa:
Carl Schmitt, Hamlet ou Hécube,
tradução francesa de J.-L. Besson e J. Jourdheuil, Paris, L’Arche, 1992.
[10] Além da
introdução à tradução norte-americana de Hamlet
ou Hécuba, Julia Reinhard Lupton é autora de diversos artigos em que o
ensaio de Schmitt ocupa um lugar central, tendo dirigido, designadamente,
seminários académicos dedicados em exclusivo ao tema: cf.
http://www.thinkingwithshakespeare.org
[11] Note-se, por
exemplo, que um excerto da conferência de Schmitt havia sido publicado em
Espanha logo em 1956, na Revista de
Estudíos Políticos, nº 85, com o título «Hamlet y Jacobo I de Inglaterra».
[12] Cf. António
Araújo, «Schmitt e o nazismo. Apresentação a Ex Captivitate Salus», Estado
& Direito. Revista Semestral Luso-Espanhola de Direito Público, nº 14,
2º semestre de 1994, pp. 79-109 [com tradução de vários trechos daquela obra, a
partir da tradução castelhana efectuada por José Caamaño Martínez publicada no Boletín de la Universidad de Santiago de
Compostela, nºs 57-58-59 e 60, 1951-1952, pp. 145-168]. Desta obra existem
traduções em várias línguas, como, por exemplo, em italiano: cf. Carl Schmitt, Ex Captivitate Salus. Esperienze degli anni
1945-47, Milão, Adelphi Edizioni, 2ª ed., 1993, com um estudo de Francesco
Mercadante.
[13] Cf. Horst Bredekamp, Melissa Thorson Hause e Jackson
Bond, «From Walter Benjamin to Carl Schmitt, via Thomas Homes», Critical Inquiry, Vol. 25, nº 2, Inverno
de 1999, pp. 247-266. Cf. ainda, Julia Reinhard Lupton e Kenneth Reinhard, After Oedipus. Shakespeare in Psychoanalysis,
Ithaca-Londres, Cornell University Press, 1992, em esp. o segundo capítulo,
«The Trauerspiel of Criticism», pp.
34ss. Sobre
este relacionamento, cf. o «Comentário» in Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, edição,
apresentação e tradução portuguesa de João Barrento, Lisboa, Assírio &
Alvim, 2004, pp. 293-294. Cf. ainda Samuel Weber, «Taking Exception to the
Decision: Walter Benjamin and Carl Schmitt», Diacritics, Vol. 22, nºs. 3/4, 1993, pp. 5-23.
[14] Cf., por ex.,
Simon Critchley e Jamieson Webster, The
Hamlet Doctrine, Londres-Nova Iorque, Verso, 2013, p. 41 [tb. publicado
como Stay, Illusion! The Hamlet Doctrine,
Nova Iorque, Vintage Books, 2014], obra que analisa Hamlet ou Hécuba, confrontando-o com o legado de Benjamin, sem ter
em conta, por exemplo, o contributo fundamental – dir-se-ia, decisivo – de
Lilian Winstanley ou John Dover Wilson para a leitura schmittiana de Hamlet; cf. a recensão daquela obra por
Katharine Craik, «Opheliacs», Times
Litterary Supplement, de 25-IV-2014, p. 9.
[15] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet. Sohn der Maria Stuart, tradução alemã, Pfullingen/Würtemberg,
Günther Neske, 1952, pp. 7-25 e pp. 164-170 [ed. original: Lilian Winstanley, Hamlet and the Scottish Succession being an examination of the
relations between the play of Hamlet to the Scottish succession and the Essex
conspiracy, Cambridge,
Cambridge University Press, 1921]; disponível online no endereço:
http://www.sourcetext.com/sourcebook/library/winstanley/index.htm. Aliás,
Schmitt mantinha contacto com Lilian Winstanley, a quem agradece a cedência do
manuscrito que aquela estava a redigir sobre outra obra de Shakespeare, The Tempest. Note-se,
pela sua curiosidade, que existe na Internet um blogue dedicado a Lilian
Winstanley: http://lilianwinstanley.blogspot.pt/ Uma reavaliação recente da
tese de Winstanley acaba, de algum modo, por aderir ao seu sentido essencial,
salientando a revisitação contemporânea do «historicismo», ponto que corrobora
a ideia de que as interpretações de Winstanley e de Schmitt (e, bem assim, de
Dover Wilson) ainda são enquadráveis no âmbito de uma corrente «historicista»:
cf. Stuart M. Kurland, «Hamlet and
the Scottish Succession?», Studies in
English Literature 1500-1900, nº 2, Primavera de 1994, pp. 279ss.
[16] Cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione
italiana», in Amleto o Hecuba…,
cit., p. 7; Simon Critchley
e Jamieson Webster, The Hamlet Doctrine,
cit., pp. 41ss, apelidando Schmitt de «Herr Professor Dr. Decision» (p. 42).
[17] De
certo modo, esse é um problema que afecta a interpretação fornecida por Carlo
Galli na introdução à edição italiana de Hamlet
ou Hécuba, sem prejuízo de se reconhecer que o ensaio introdutório de
Galli, um profundo conhecedor da obra de Schmitt, constitui um dos mais
completos, densos e informados escritos que se redigiram sobre este livro do
jurista alemão. Cf., neste sentido, Julia Reinhard Lupton, «Invitation to a Totem Meal:
Hans Kelsen, Carl Schmitt and Political Theology», in AA.VV., The Return of Theory in Early Modern English
Studies. Tarrying with the Subjunctive, ed. de Paul Cefalu e Bryan
Reynolds, Londres, Palgrave Macmillan, 2011, pp. 121ss, que se ocupa
extensamente da interpretação schmittiana de Hamlet, com desenvolvidas referências ao texto de Carlo Galli. O texto de Galli seria publicado com o título «Hamlet:
Representation and the Concrete», in AA.VV., Political Theology and Early Modernity, ed. de Graham Hamill e
Julia Reinhard Lupton, Chicago-Londres, The University of Chicago Press, 2012,
pp. 60ss, surgindo, nessa mesma obra de que Julia Lupton foi co-organizadora, o
texto de Adam Sitze, «The Tragicity of the Political: A Note on Carlo Galli’s
Reading of Carl Schmitt’s Hamlet or
Hecuba», a pp. 48ss (cf. ainda Adam Sitze, «A Farewell to Schmitt: Notes on
the Work of Carlo Galli», The New
Centennial Review, Vol. 10, nº 2, Inverno de 2010, pp. 27ss). A abordagem de
Román García Pastor e José L. Villacañas Berlanga, no estudo «Hamlet y Hobbes.
Carl Schmitt sobre Mito y Modernidad Política» que serve de intróito à edição
espanhola de Hamlet ou Hécuba, pouco
se detém sobre este ensaio de Schmitt ou sequer sobre a obra de Shakespeare,
tomando antes o «mito Hamlet» como pretexto para uma digressão sobre outros
lugares do pensamento schmittiano, como as suas reflexões sobre o destino da
Europa, Thomas Hobbes e o Leviatã. Por outro lado, e num sentido diametralmente
oposto, há quem opte por se concentrar na peça de Shakespeare ignorando o
contributo de Carl Schmitt, como sucede com Simona Draghici no posfácio à
edição anglo-saxónica de 2006 de Hamlet
ou Hécuba. Ainda assim, Draghici apresenta uma brilhante síntese do que
Shakespeare se viu constrangido a fazer para possibilitar a representação da
sua peça numa conjuntura adversa e perigosa (o que, no fundo, constitui um
aspecto dominante da interpretação schmittiana). Tendo em conta a gradual
secularização do teatro inglês e, em especial, a ascensão de James ao trono,
refere Simona Draghici que «What Shakespeare had to do to make the play
acceptable under the new circumstances was to alter its tenor away from
vengeance, neutralize the mother’s involvement, make the ghost a theological
issue between hell, purgatory and reason, while turning the protagonist into a
man of peace, fond of learned arguments and books, wishing to assert himself
and his ideas in a rather reluctant world».: cf. Simona Draghici, «Postface»,
in Carl Schmitt, Hamlet
or Hecuba…, cit., p. 69.
[18] Cf. Jonathan Bate, Soul of the Age. The Life, Mind and World of William Shakespeare,
Londres, Penguin Books, 2008, p. 257.
[19] São
elucidativas as palavras que, em Julho de 1950, Dover Wilson escreve no
prefácio à 3ª edição do seu livro What
Happens in Hamlet, já depois de ter lido os ensaios de Salvador de
Madariaga e Ernest Jones sobre Hamlet.
Retomando o que havia dito logo na introdução da primeira edição da sua obra,
nos anos trinta, diz: «to abstract one figure from an elaborate dramatic
composition and study it as a case in the psychoanalytical clinic is to attempt
something at once wrong in method and futile in aim»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., p. VII.
[20] Cf. Ernest
Jones, Amleto e Edipo, tradução
italiana, Milão, ES, 2008, edição acompanhada dos estudos «Hamlet e Freud», de
Jean Starobinski, e «Incesto e sociedade», de Paolo Caruso.
[21] Cf. Stephen Greenblatt, «The death of Hamnet and the
Making of Hamlet», The New York Review of
Books, 21-X-2004. Do mesmo autor, Will
in the World. How Shakespeare Became Shakespeare, Londres, Pimlico, 2005,
p. 311, que, a par dos livros de Park Honan (Shakespeare. A Life, Nova Iorque, Oxford University Press, 1999),
de Peter Ackroyd (Shakespeare. The
Biography, Londres, Vintage Books, 2006) e de Katherine Duncan-Jones (Shakespeare. An
Ungentle Life,
Londres, Methuen, 2001), integra o conjunto das biografias recentes de
Shakespeare com maior projecção. Cf. ainda, a este propósito, a obra,
profusamente ilustrada, de Jonathan Bate e Dora Thornton, Shakespeare. Stagging the World, Londres, The British Museum Press,
2012, que acompanhou a exposição realizada no Museu Britânico entre Julho e Setembro
de 2012. Entre nós, uma introdução recente e muito informativa à vida e obra de
Shakespeare pode encontrar-se no livro de Mário Avelar, O Essencial Sobre William Shakespeare, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2012.
[22] Cf., por ex., a referência de Mário Avelar, O Essencial Sobre William Shakespeare,
cit., p. 103.
[24] Ainda que,
segundo alguns, acabe por utilizar o termo «tabu», de conotação freudiana,
quando se refere ao «tabu da rainha»: cf. Simon Critchley e Jamieson Webster, The Hamlet Doctrine, cit., p. 43. Não o
afirmando tão explicitamente, cf., no entanto, Julia Reinhard Lupton, «Invitation to a Totem Meal…», cit., em esp. p.
133. Aliás, abordagens recentes à vida de Maria Stuart (personagem central na
interpretação schmittiana de Hamlet)
e sua influência literária buscam apoio na teoria freudiana: cf. Jayne Lewis, Mary Queen of Scots. Romance and Nation,
Londres Routledge, 1998, p. 7. Curiosamente, leituras contemporâneas da obra de
Schmitt sustentam que a sua teoria da soberania se assemelha à noção freudiana
do «pai da horda primitiva», o que decerto mereceria a mais viva rejeição por
parte do jurista germânico: cf. Kenneth Reinhard, «Toward a Political Theology
of the Neighbor», in Slavoj Žižek, Eric Santner e Kenneth Reinhard, The Neighbor. Three Inquiries in Political
Theology, Chicago, University of Chicago Press, 2005, p. 56.
[25] Cf. Walter
Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão,
cit., pp. 129ss, apontando Polónio como um exemplo de aproveitamento, por parte
de Shakespeare, do velho esquema do bobo demoníaco (p. 131).
[26] Cf. William
Shakespeare, A Tragédia de Hamlet,
Príncipe da Dinamarca, 4ª ed., tradução e prefácio de José Blanc de
Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 2001, p. 80.
[27] Cf. William
Shakespeare, Hamlet, tradução de
António M. Feijó, Lisboa, Edições Cotovia-Biblioteca de Autores Independentes,
2007, p. 63.
[28] Seguiu-se a
versão constante de William Shakespeare, The
Complete Works, ed. de Stanley Wells e Gary Taylor, Oxford, Clarendon
Press, 1988, pp. 653ss.
[29] Na tradução de
José Blanc de Portugal. «Mais substância e menos arte.», na tradução de António
M. Feijó. «More matter with less art», no original.
[30] Cf. Lilian
Winstanley, Hamlet and the Scottish
succession: being an examination of the relations between the play of Hamlet to
the Scottish succession and the Essex conspiracy, Cambridge, Cambridge
University Press, 1921.
[31] Cf. John Dover
Wilson, What Happens in Hamlet,
reimp., da 3ª ed. [1951], Cambridge, Cambridge University Press, 1996. É extremamente interessante o modo como John Dover
Wilson, num registo autobiográfico publicado no The Times Literary Supplement em 1964, explica como se tornou
editor das obras completas de Shakespeare: cf. J. Dover Wilson, «How I Took to
Editing Shakespeare», in AA.VV., The TLS
on Shakespeare, ed. por Michael Caoines e Mick Imlah, s.l., The Times Literary Supplement, s.d., pp.
98ss.
[32] De que existe
tradução portuguesa: Walter Benjamin, Origem
do Drama Trágico Alemão, edição, apresentação e tradução portuguesa de João
Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.
[33] Sobre a
vingança, em articulação com o conceito de inimizade no pensamento de Schmitt,
cf. David Teles Pereira, «Nemesis:
sobre os conceitos políticos de inimizade e vingança», in AA.VV., Carl Schmitt Revisitado, cit., pp. 40ss. Em termos mais amplos, cf.,
entre a vastíssima bibliografia existente, Gabriella Slomp, Carl Schmitt and the Politics of Hostility,
Violence and Terror, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2009, em esp. pp.
38ss.
[34] «Oh! Pudesse eu
livrar-me desta deusa carne em que nasci / Pudesse ela fundir-se, solver-se em
um orvalho… / Não fora o mandamento do Eterno / Contra os quer a si próprios
assassinam!...» (I, 2; na tradução de José Blanc de Portugal).
[35] Cf. Carlo
Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 7. Assim, além dos
trabalhos de Lilian Winstanley, Schmitt reconhece que, mesmo no universo
germânico, o nexo histórico com Essex já havia sido destacado por Lessing em Hamburgische Dramaturgie (1767-1769) e
por Schiedermair em Der Graf von Essex in
der Literatur (1908-1909).
[36] Além das obras
de J. Dover Wilson e, sobretudo, de Lilian Winstanley, cf., mais recentemente,
numa leitura muito próxima da de Carl Schmitt, Alvin Kernan, Shakespeare. The King’s Playwright. Theater in the Stuart Court,
1603-1613, New Haven, CT, Yale University Press, 1995. A tentativa de
interpretar Hamlet praticamente como um relato biográfico de James I
foi empreendida por vários autores, com realce para Henry Brown, King James I, Of England, and VI, Of
Scotland. Shakespeare’s Patrons. Londres,
Aldine House Covent Garden, 1912, em esp. pp. 16ss.
[37] Esta ligação
entre a biografia de Bothwell e o cenário de Hamlet foi, como seria de esperar, salientada por Lilian Winstanley, Hamlet
and the Scottish Succession…, cit., p. 44.
[38] Recentemente,
uma associação cívica de Faro solicitou a restituição à cidade daquela colecção
de incunábulos: cf. Luís Miguel Queirós, «O caso da biblioteca que o conde
inglês roubou ao bispo do Algarve», Público,
de 14-I-2014, pp. 28-29.
[39] Cf. Michael Dobson, Shakespeare and Amateur Performance. A Cultural History, Cambridge,
Cambridge University Press, 2011, p. 2; Simon Critchley e Jamieson Webster, The Hamlet Doctrine, cit., p. 74.
[40] O ponto é
sublinhado, naturalmente, por Lilian
Winstanley, Hamlet and the Scottish
Succession…, cit., p.
44.
[41] Cf., para uma
primeira abordagem, Federico Trillo-Figueroa, El Poder Político en los Dramas de Shakespeare, Madrid, Editorial
Espasa Calpe, 1999, pp. 147ss.
[42] Cf. A. D. Nutall, Shakespeare.
The Thinker, New Haven, CT, e Londres, Yale University Press, 2007, p. 81.
[43] Na tradução de
José Blanc de Portugal. Na tradução de António M. Feijó, a referência é feita a
estrelas «perladas de sangue».
[44] Na linha de
Dover Wilson (cf. o Apêndice F em John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., pp. 321ss), Carl Schmitt rejeita a
visão de Hamlet perfilhada por Madariaga e mantém-se fiel a uma concepção, de
certo modo, «clássica» do príncipe da Dinamarca como um homem indeciso,
inclinado a dúvidas existenciais e ao exercício do intelecto, mais do que da
acção. Tal resulta sobremaneira dos seus papéis privados (v.g., um texto intitulado Hamlet-Galerie),
em que elenca como personalidades afins de Hamlet: Adlai Stevenson, o
socialista italiano Giuseppe Saragat, Paulo VI, John Kennedy, Enrico
Berlinguer: cf. Andreas Höfele, «Hamlet in Plettenberg: Carl Schmitt’s
Shakespeare», Shakespeare Survey,
Vol. 65, Dezembro de 2012, pp. 378ss.
[45] Como refere
Dover Wilson, talvez com exagero mas, neste passo, com inteira pertinência,
«The attitude of Hamlet towards Ophelia is without doubt the greatest of all
the puzzles in the play, greater even than that of the delay itself»: cf. John
Dover Wilson, What Happens in Hamlet,
cit., p. 101.
[46] É curioso
observar que Hamlet aconselha Ofélia a ingressar num convento ou, em
alternativa, a casar com um louco: «casa com um louco porque os sensatos sabem
bem em que monstros os transformam» (III, 1). Há quem observe que a «crueldade
verbal» que Hamlet revela face à sua mãe, Gertrudes, só é ultrapassada pela
«raiva sexual» que demonstra perante Ofélia, o que seria explicável à luz dos
laços de amizade viril que mantém com outras personagens, designadamente
Horácio: cf. cf. Julia Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince. Tragedy, Citizenship, and Political Theology», in
AA.VV., Alternative Shakespeares 3 (New
Accents), Oxford, Routledge, 2008, p. 199.
[47] Dizendo que
«The play scene is the central point of Hamlet», Dover Wilson fala em «parallel
sub-plots», num capítulo que, tendo por base o título da peça A Ratoeira, expressivamente se chama
«The multiple mouse-trap»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., pp. 138ss.
[50] Há quem afirme,
a este respeito: «throughout the play, Hamlet “plays the Machiavel”, adopting a
posture of frustrated ambition in order to cloak his agenda»: cf. Julia
Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince…», cit., p. 190.
[51] Sobre esta cena
crucial da peça, cf. John Dover Wilson, What
Happens in Hamlet, cit., pp. 247ss.
[54] Cf., por todos,
Stephen Greenblatt, Hamlet in Purgatory,
Princeton-Oxford, Princeton University Press, 2001, o qual adverte, logo no
prólogo, que a sua obra não tem por intuito determinar a natureza «católica» ou
«protestante» do Espectro (ob. cit.,
p. 4).
[55] Sobre esta
alusão a São Patrício, cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., pp. 79ss e sobretudo Stephen
Greenblatt, Hamlet in Purgatory,
cit., pp. 233ss, que, após salientar que a ligação, na peça de Shakespeare,
entre São Patrício e o Purgatório foi estabelecida no final do século XIX pelo
filólogo germânico Benno Tschischwitz, chama a atenção para a relevância de
outra fala em Hamlet, quando o
Espectro exorta Horácio e Marcelo a jurarem e Hamlet pergunta «Há-de ser hic et ubique?» (I, 5; na tradução de
António M. Feijó), o que, segundo Greenblatt, remete para uma oração
tradicional católica rezada em Inglaterra, em que se pedia perdão e mercê por
todas almas de todos os lugares (hic et
ubique), tendo esta prece sido criticada, ou mesmo ridicularizada, por
autores protestantes como Thomas Rogers, em The
Catholic Doctrine of the Church of England (1607).
[56] Recordem-se as
afirmações feitas por Hamlet no cemitério (V, 1). Deambulando, encontra uma
caveira («Essa caveira já teve uma língua dentro; já pôde um dia cantar») e,
mais acolá, outra, que bem poderia ter sido a de um jurista, a quem pergunta:
«Onde estão agora os teus distinguo?
As tuas subtilezas? Para onde foram as tuas causas, os teus pareceres e as tuas
manhas?». O Primeiro Coveiro diz, de Ofélia, quando Hamlet lhe pergunta o que
se vai enterrar: «O que foi uma mulher, meu senhor, mas agora, paz à sua alma,
é só uma morta.». Atente-se ainda no célebre diálogo de Hamlet com a caveira de
Yorick (V, 1), possivelmente o trecho em que o memento mori é mais visivelmente evocado em toda a peça.
[57] Cf. Jennifer Rust, «Political Theologies of the Corpus Mysticum: Schmitt, Kantorowicz
and de Lubac», in AA.VV., Political
Theology and Early Modernity, cit., pp. 102ss; Eric L. Santner, The Royal Remains. The People’s Two Bodies
and the Endgames of Sovereignty, Chicago, The University of Chicago Press,
2011, cujo capítulo 5 é precisamente dedicado a uma análise de Shakespeare,
Schmitt e Hofmannsthal.
[58] Sobre o influxo da doutrina dos dois corpos do rei em
Hamlet, cf. Jerah Johnson, «The Concept of the King’s Two
Bodies in Hamlet», Shakespeare Quarterly, Vol. 18, nº 4,
Outono de 1967, pp. 420-434.
[59] Como refere
Mário Avelar, «da dimensão algo simbólica ou meramente sugestiva que os
elementos cénicos assumiam, deduz-se a importância que a palavra tinha em
palco. Poderá, assim, inferir-se que o público estaria particularmente atento
ao discurso, aos jogos de palavras, aos trocadilhos, às insinuações. Mais do
que na acção, era, afinal, na palavra que então assentava a dimensão dramática»
(O Essencial Sobre William Shakespeare,
cit., p. 75).
[63] Trata-se,
aliás, de uma perspectiva perfilhada por Dover Wilson, outro autor que marcou
profundamente a leitura de Schmitt, e que afirma: «the drama of which he
[Hamlet] is the hero was written by na Elizabethan for Elizabethans. If
therefore we of the twentieth century desire to enter fully into that situation
we must ask ourselves how it would present itself to English minds at the end
of the sixteenth»: cf. John Dover Wilson, What
Happens in Hamlet, cit., p. 26.
[64] «One thing
seems, at any rate, absolutely certain, that Shakespeare is using a large
element of contemporary history in Hamlet.
It appears to me that in the total construction of the play, the literary
source is comparatively unimportant, and the historical source exceedingly
importante»: cf. Cf. Lilian
Winstanley, Hamlet and the Scottish
Succession…, cit., p. 166. Ou seja, Lilian Winstanley afasta-se de um
«historicismo» que procura escrutinar à saciedade as fontes literárias de Hamlet (a saga nórdica, a peça de Kyd,
etc.) mas para o fazer tem de valorizar, porventura em excesso, o influxo da
realidade histórica em que a peça foi escrita ou, melhor, apresentada ao
público. É também esse o projecto de Dover Wilson, que critica os resultados a
que chega o «método histórico», caracterizado como uma tentativa de «explicação
das situações concebidas por Shakespeare tendo por referência as suas fontes
hipotéticas»: cf. John
Dover Wilson, What Happens in Hamlet,
cit., p. 35. Nesse âmbito poderíamos situar também a busca quase obsessiva de
«modelos clássicos» de Hamlet, que Shakespeare teria supostamente seguido,
desde Catão, o Jovem, a Lúcio Júnio Bruto ou a Quinto Servílio Cepião, passando
por Hércules: cf. Simona Draghici, «Postface», cit., pp. 73-74.
[66] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet
and the Scottish Succession…, cit., em esp. p. 94. Simona Draghici avança
uma explicação mais subtil, e fundamentada, para o comportamento do jovem
príncipe após o encontro com o Espectro: «He has subjected himself to a repeate
critical moral and existential self-examination, renounced the learning acquired
at Wittenberg, and been practising abstinence from alcohol and sexual activity,
from sumptuous dress and living, abstinence and purification which he
eventually urges his mother to pursue and would like to impose upon Ophelia
when telling her to go to a nunnery»: cf. Simona Draghici, «Postface», cit., p.
71.
[68] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet
and the Scottish Succession…, cit., p. 76, em contraste com as fontes da
peça, em que Hamlet não mostra quaisquer sinais de dúvida ou hesitação (p. 78).
[70] Cf. o texto
«Melancolia e modernidade» de Claudio Magris, Alfabetos. Ensaios de Literatura, tradução portuguesa, Lisboa,
Quetzal Editores, 2013, pp. 69ss («Ainda que tenha raízes antigas e implicações
religiosas, além de uma inseparável dimensão clínica, a melancolia é sobretudo
uma categoria, um modo de ser, uma poesia do Moderno, que nasce marcada pela
consciência de um pecado original, de uma perda indefinível – não de Deus, mas
da “vida verdadeira”, ou melhor, do sentimento de poder alcançá-la» – pp.
70-71).
[73] Cf. Lilian Winstanley, Hamlet
and the Scottish Succession…, cit., pp. 48ss. Winstanley, aliás, enfatiza a
presença do espectro na peça de Kyd (ob.
cit., p. 66).
[75] Cf. Susan
Sontag, «Sob o Signo de Saturno», pref a: Walter Benjamin, Rua de Sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900,
tradução portuguesa, Lisboa, Relógio D’Água, 1992, p. 25.
[76] Para uma
primeira abordagem, cf. Paul Collins, The
Book of William. How Shakespeare’s First Folio Conquered the World, Nova
Iorque-Berlim-Londres, Bloomsbury, 2009. Manifestando igualmente perplexidade
pelo uso (até contra os seus argumentos…) que Schmitt faz das diversas versões
de Hamlet, cf. Victoria Kahn, «Hamlet
or Hecuba…», cit., p. 85.
[77] Apud Bill Bryson, Shakespeare.
Dos oito aos oitenta, tradução
portuguesa, Lisboa, Bertrand Editora,
2008, p. 91.
[78] Cf. Charles
Nicholl, Shakespeare and His Contemporaries,
Lisboa, National Portrait Gallery Publications, 2005, pp. 70-71 (que, todavia,
não reproduz o retrato da autoria de Hilliard).
[80] Cf. Harold Bloom, The
Western Canon. The Books and Schools of the Ages, Nova Iorque, Harcourt
Brace & Company, 1994, p. 55.
[81] A referência ao
espaço urbano (ou seja, não-rural) que designava a companhia (Comediantes da Cidade) e onde esta actuava
(«Continuaram a ser apreciados como quando os vi na cidade? Têm admiradores e casas cheias?», pergunta Hamlet, II,
2) é igualmente muito elucidativa.
[83] Na tradução de António M. Feijó (Lisboa,
Edições Cotovia, 2007, p. 76). Compare-se com a tradução de José Blanc de
Portugal, baseada no First Folio:
«Por Hécuba! Mas… / Que tem ele com Hécuba ou Hécuba com ele, / Para que o
actor tenha de chorar por ela?» (p. 97). Na tradução de Sophia de Mello Breyner
Andresen: «Por Hécuba! / O que é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, / Para que
ele assim deva chorar por ela?» (Porto, Lello & Irmãos – Editores, 1987, p.
103). Refira-se, por curiosidade, a tradução mais antiga de Domingos Ramos,
recentemente reeditada: «Por Hécuba; que lhe fez Hécuba? Que é ele a Hécuba para
chorar assim por ela?» (Estarreja, Mel
Editores, 2009, p. 114). No original: «For Hecuba! / What’s Hecuba for him, or
he to Hecuba, / That he should weep for her?» (cf. William Shakespeare, The Complete Works, cit., p. 668).
[84] Cf. Homero, Ilíada, Canto XXIV, 748-59, tradução
portuguesa de Frederico Lourenço, Lisboa, Livros Cotovia, 2005, pp.
496-497.
[85] Cf. Dante
Alighieri, Divina Comédia, tradução
portuguesa de Vasco Graça Moura, Lisboa, Quetzal Editores, 2011, p. 269:
«Hécuba triste, mísera e cativa, / depois que viu a Policena morta, / e de seu
Polidoro a morte a priva / à beira-mar, de tal dor se transporta, / qual cão
ladrando em desvairadas ganas; / que tanta dor a mente já lhe entorta.»
[86] Cf. Immanuel
Kant, Crítica da Razão Pura, tradução
portuguesa, introd. e notas de Alexandre Fradique Morujão, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1985, p. 4.
[87] Cf. Ronald
Dworkin, Justiça Para Ouriços,
tradução portuguesa, Coimbra, Edições Almedina, 2012, p. 282.
[88] Na tradução de
António M. Feijó. «Que devia eu fazer com as razões que tenho?! / Inundaria de
lágrimas o palco», na tradução de José Blanc de Portugal.
[89] Cf. Carl
Schmitt, Catolicismo Romano e Forma
Política, tradução portuguesa, prefácio, tradução e notas de Alexandre
Franco de Sá, Lisboa, Hugin Editores, 1998, em esp. pp. 34-35.
[90] Cf. Carlo
Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 9. Alexandre Franco de Sá, O Poder pelo Poder…, cit., pp. 249ss.
[91] Considerando
que os «duplos» de Hamlet seriam Fortimbras, no plano do poder e da força, e
Horácio, no plano da amizade e do intelecto, cf. Julia Reinhard Lupton,
«Hamlet, Prince…», cit., p. 200, texto que
contém amplas referências, de sentido crítico, ao ensaio de Carl Schmitt.
[92] Schmitt voltará
a utilizar o First Quarto (Q1), pelo
menos, mais duas vezes no seu ensaio. Quanto o invoca para referir que, nessa
versão de 1603, existia uma 6ª Cena no IV Acto em que Gertrudes se aliava ao
filho contra o segundo marido. E, depois, para sublinhar que em Q1 existia, na
2ª Cena do II Acto, uma alusão mais explícita ao sentido da acção de Hamlet, a
qual não visaria apenas vingar a morte do pai como recuperar o trono usurpado,
colocando-se assim no mesmo plano o drama de vingança e o drama de sucessão. De
acordo com Schmitt, tratava-se de uma exortação feita, pelo grupo de Essex e de
Southampton, ao indeciso James para que disputasse a coroa, a qual, nas versões
subsequentes, perdera significado e, como tal, fora suprimida.
[94] Como refere
Dover Wilson, «The usurpation is one of the main factors in the plot of Hamlet, and it is vital that we moderns
should not lose sight of it»: cf. John Dover Wilson, What Happens in Hamlet, cit., p. 34, que desenvolve amplamente o
tema à luz do constitucionalismo britânico da época, a pp. 30ss, com isso
visando demonstrar a sua tese nuclear, de acordo com a qual o cenário real de Hamlet era a Inglaterra contemporânea de
Shakespeare, não uma Dinamarca imaginária. «Shakespeare’s Denmark […] was
Elizabethan England», afirma peremptoriamente Dover Wilson (ob. cit., p. 68). Essa ideia foi
contestada por E. A. J. Honigmann, «The Politics in Hamlet and “The World of the Play”», Stratford-upon-Avon Studies, nº 5, 1963, e, depois, por Gunnar
Sjögren, «Hamlet and the Coronation of Christian IV», Shakespeare Quarterly, Vol. 16, nº 2, 1965, pp. 155ss, que sustenta
que as coordenadas do direito constitucional inglês da época pura e
simplesmente não permitiam o desenvolvimento ocorrido em Hamlet, ao contrário com o que acontecia com o constitucionalismo
da Dinamarca que, esse sim, apontava na teoria e na prática para uma monarquia
electiva, tal como desenhada na trama da peça de Shakespeare. Cf. uma digressão
pouco conclusiva sobre este tópico em Julia Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince…»,
em esp. pp. 192ss. Da mesma autora, o capítulo «The Hamlet Elections» no seu livro Thinking With Shakespeare. Essays on Politics and Life, Chicago, The University of Chicago Press, 2011, pp.
69ss.
[95] Com efeito,
Cláudio, na 2ª Cena do I Acto, designa Hamlet como seu sucessor: «Que o mundo
saiba / Que sois o mais próximo herdeiro deste trono,» (na tradução de António
M. Feijó); ou «E que o mundo saiba / Que és o primeiro na minha sucessão, / Do
trono herdeiro […]» (na tradução de José Blanc de Portugal).
[96] Cf. Frank
Kermode, Shakespeare’s Language,
Londres, Penguin, 2000. Id., The Age of
Shakespeare, Nova Iorque, Modern Library, 2003.
[97] Na tradução de
José Blanc de Portugal. «Mas prevejo que a eleição venha a recair / Em
Fortimbras. Na morte lhe dou meu voto.» (na tradução de António M. Feijó). Para
Dover Wilson – e, consequentemente, para Carl Schmitt –, o ponto é decisivo
para traçar um «exacto paralelismo» (sic)
com James I: cf. John Dover Wilson, What
Happens in Hamlet, cit., p. 37. Há quem pretenda sustentar, numa visão algo
maniqueísta e redutora, que para Schmitt o essencial era a designação através
da dying voice, não da election, e que a peça acaba com dois
duplos de Hamlet: Fortimbras, o «Duplo como Rival», que recebe a dying voice de Hamlet e lhe sucede; e
Horácio, o «Amigo-Filósofo», que é «eleito» pelo príncipe como narrador da
história. Fortimbras pertenceria ao domínio da «razão de Estado» e do uso
ditatorial da força (chega a dizer-se «there is a bit of Schwarzenegger in
Fortinbras»…), ao passo que Horácio se inscreveria numa tradição de humanismo
cívico, próxima de Aristóteles, Séneca, Cícero e Montaigne, a qual, ao invés de
recorrer à força, apela ao uso da «razão deliberativa» (deliberative reason): cf. Julia Reinhard Lupton, «Hamlet, Prince…»,
cit., em esp. p. 200.
[98] «Pelo menos
rumorejam que o nosso defunto Rei, / Cujo fantasma agora mesmo apareceu a nós /
Foi, como vocês sabem por Fortimbras, rei da Noruega/ (Ardendo no auge do mais
forte orgulho da rivalidade) / Desafiado para combater. Com o que o nosso
valente Hamlet / (Pois assim todo o mundo conhecido o estima) / Matou o tal
Fortimbras. Este, por formal tratado, / Por lei ratificado e pelos juízes de
armas, / Perdeu com a sua vida todas estas terras» (na tradução de José Blanc
de Portugal).
[99] A questão
sempre foi controversa, não decorrendo apenas das interpretações feministas de Hamlet; Dover Wilson (aqui referido
apenas por ter sido uma das fontes de Schmitt), analisa-a com argumentos
convincentes no sentido da prática de adultério por parte de Gertrudes: cf.
John Dover Wilson, What Happens in Hamlet,
cit., Apêndice A, pp. 292-294.
[100] Cf. Harold Bloom, Hamlet.
Poem Unlimited, Edimburgo, Cannongate, 2003, p. 58. Id., Shakespeare. The Invention of the Human,
Nova Iorque, Riverhead Books, 1998, pp. 383ss.
[102] Cf. Hans Urs
von Balthasar, Teodrammatica, Vol. I
– Introduzione al drama, tradução
italiana, Milão, Jaca Book Edizioni, 1978, pp. 450ss, em esp. pp. 458-459.
[103] À semelhança da
generalidade da crítica, não refere, contudo, as narrativas islandesas
anteriores ao século XIII, que supostamente terão igualmente marcado a peça de
Shakespeare: cf. Israel Gollancz, Hamlet
in Iceland, Londres, David Nutt, 1898.
[104] Quando tem uma
oportunidade de, pura e simplesmente, matar Cláudio no seu quarto, quando
rezava, e se abstém de o fazer, Hamlet parece inclinar-se para essa noção de vingança.
Fazê-lo, naquelas circunstâncias, «Seria prémio, recompensa; não vingança.»
(III.2).
[105] A qual, segundo
Walter Benjamin, se opõe à culpa natural:
cf. Origem do Drama Trágico Alemão,
cit., p. 262.
[106] «Não o
esqueças: Esta visita é só / Para aguçar teu quase embotado intento. / Mas olha
como o espanto assusta a mãe! / Interpõe-te entre ela e sua alma em guerra: /
Para o mais fraco corpo seja a mão mais forte. / Fala-lhe, Hamlet.» (III, 4; na
tradução de José Blanc de Portugal). «Não te esqueças. Esta minha visitação /
Serve só para te aguçar o quase rombo propósito. / Mas olha, o espanto
apodera-se de tua mãe. / Ah, insinua-te entre ela e a sua alma em armas. / Mais
forte age a imaginação em corpos mais fracos. / Fala-lhe, Hamlet» (na tradução
de António M. Feijó).
[107] Cf. Norbert
Elias, A Sociedade de Corte, tradução
portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1987.
[110] Situando
Shakespeare no tempo barroco, enquanto «homem barroco», cf. Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit., p.
27.
[111] Cf. Carlo
Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 14. No mesmo sentido,
Simona Draghici salienta que a Inglaterra isabelina não poderia ter
desenvolvido uma cultura barroca, enveredando antes por um «maneirismo nórdico»
construído a partir do «realismo tardo-gótico»: cf. Simona Draghici, «Postface», cit., p. 69.
[112] Cf. Garry
Wills, Making Make-Believe Real. Politics
as Theater in Shakespeare’s Time, New Haven, CT, Yale University press,.
2014.
[113] Cf. Erving
Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de
Todos os Dias, tradução portuguesa, Lisboa, Relógio D’Água, 1993.
[114] Cf. Francisco
de Sá de Miranda, Obras Completas,
Vol. II, Texto fixado, notas e prefácio de Rodrigues Lapa, 3ª ed., revista,
Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1977, p. 39. Sobre estes versos, cf. Luís
F. Sá Fardilha, «Sá de Miranda e a Corte», Revista
da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas, Anexo V, 1993, pp. 61ss.
[115] De que existe
tradução portuguesa: cf. Johan Huizinga, Homo
Ludens. Um estudo sobre o elemento lúdico da cultura, tradução portuguesa,
Lisboa, Edições 70, 2003. Note-se que Huizinga faz uma violenta crítica à
distinção schmittiana amigo/inimigo, considerando-a um «logro patético» (p.
233).
[116] Cf. António
Araújo, «Teologia política: algumas considerações críticas», in AA.VV., Estado, Regimes e Revoluções. Estudos em
homenagem a Manuel de Lucena, org. de Carlos Gaspar, Fátima Patriarca e
Luís Salgado de Matos, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2012, pp. 35-67.
[117] Cf. Jürgen
Moltmann, A Alegria de Viver,
tradução portuguesa, Apelação, Edições Paulistas, 1974, em esp. p. 33. Moltmann
debruça-se sobre a importância do jogo e do que este implicava de regresso a
uma «simplicidade perdida» no contexto de uma sociedade industrial desumana. Ao
invés de vencer a alienação por uma transformação do modo de organizar o
trabalho, um programa libertador poderia passar, segundo Moltmann, pelo aumento
do espaço dedicado ao lúdico: «no jogo,
e primeiramente jogando,
libertamo-nos do constrangimento do sistema de vida actual e reconhece-se,
rindo, que as coisas não devem ser como elas são e como se afirma que devem
ser. Aprende-se a andar direito, uma vez que de repente as cadeias foram
suprimidas».
[118] Cf. Carlo
Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., pp. 20-21. Porventura,
mais do que a oposição Estado/estado de excepção, a dicotomia mais relevante
surge entre catástrofe/estado de excepção. É a ideia de catástrofe ou
emergência (Ernstfall) que justifica
o poder executivo supremo assumido pelo príncipe, cuja pessoa é «depositária do
estado de excepção», como, na esteira de Schmitt, refere Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, cit.,
pp. 57-58.
[123] Cf. Hans Urs
von Balthasar, Teodrammatica, cit.,
pp. 128ss; Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione italiana», cit., p. 21.
[125] Schmitt
acentuava que Spiel requeria uma
associação a play (e não a game), já que, a par da dimensão ou
valência representativa, implica também a evocação de um agir, de um agir antagonístico ou agonístico: cf. Carlo Galli, «Presentazione dell’edizione
italiana», cit., p. 19.
[126] Cf. Walter
Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão,
cit., pp. 24ss e pp. 265ss, bem como a nota do tradutor português, João
Barrento, na p. 121.
[127] Sublinhando
que, mais do que se inspirar em Benjamin, Schmitt acaba por contrariar pontos
essenciais da sua obra, apresentando mesmo uma «contra-interpretação» (Gegendeutung), cf. Carlo Galli,
«Presentazione dell’edizione italiana», cit., pp. 27ss. Refira-se que Benjamin
se apoiou expressamente em Schmitt no trecho que dedica à dimensão política do
Barroco: cf. Walter Benjamin, Origem do
Drama Trágico Alemão, cit., pp. 57ss.
[128] Cf. Carl
Schmitt, Terra e Mare, tradução
italiana, Milão, Giuffrè Editore, 1986, pp. 51ss. Já antes, num escrito de
1941, «O mar contra a terra», Schmitt opusera as duas realidades e aludira ao
desenvolvimento de uma «mentalidade marítima» (Meeresbild): cf. Carl Schmitt, Du
Politique. «Légalité et Légitimité» et autres essais, tradução francesa,
Puiseaux, Éditions Pardès, 1990, pp.
137-141, em esp. p. 138. O mesmo ocorrerá noutro escrito de 1941, «Soberania do
Estado e liberdade dos mares», mais centrado no Direito Internacional e na «luta
pelos oceanos» do século XVI: cf. Carl Schmitt, Du Politique…, cit, pp. 143ss.
[129] Cf. Caroline F. E. Spurgeon, Shakespeare’s Imagery and What it Tells Us, Cambridge, Cambridge
University Press, 1935.
[132] Cf. Jennifer
Rust e Julia Reinhard Lupton, «Schmitt and Shakespeare», in Carl Schmitt, Hamlet
or Hecuba…, cit., pp. XXIII-XXXV; Julia Reinhard Lupton, «Invitation to a
Totem Meal…», na linha de Carlo Galli, de Adam Sitze e de Johannes Türk, «The
Intrusion: Carl Schmitt’s Non-Mimetic Logic of Art», Telos, Vol. 142, 2008, pp. 73ss.
[133] Cf. Alexandre
Franco de Sá, O Poder pelo Poder…,
cit., passim; Id., «O ficcionalismo
na emergência do decisionismo schmittiano», in AA.VV., Carl Schmitt Revisitado,
cit., pp. 6ss.
[135] Num sentido
próximo, Victoria Kahn, «Hamlet or Hecuba…», cit., em esp. pp. 81ss, que refere
que Hamlet ou Hécuba se insere no
processo de «vitimização» (self-dramatization)
na busca de reabilitação que Schmitt empreende após ser libertado de
Nuremberga.
[136] Como refere
Nutall, «não temos ideia alguma daquilo que Shakespeare pensava, no fim de
contas, sobre qualquer assunto relevante. O homem é esquivo – podemos quase
dizer, sistematicamente esquivo. Há algo de misterioso numa figura que pode
escrever tanto e revelar-se tão pouco» (cf. A. D. Nutall, Shakespeare…, cit., p. 155).
[139] Cf. Michel
Foucault, As Palavras e as Coisas. Uma
Arqueologia das Ciências Humanas, tradução portuguesa, Lisboa, Edições 70,
1988.
[141] Cf. Peter
Burke, O Mundo como Teatro. Estudos de
antropologia histórica, tradução portuguesa, Lisboa, Difel, 1992.
[143] Cf. Léo Strauss, La
persécution et l’art d’écrire, tradução francesa, Paris, Presses Pocket,
1989, p. 58.
[144] Segundo Simona
Draghici, no interessante posfácio à edição anglo-saxónica de 2006 de Hamlet ou Hécuba, faz notar – muito
justamente – que John Dover Wilson e, em consequência, Carl Schmitt, deram
grande importância ao efeito da necessidade de Shakespeare atender ao
conhecimento da realidade pelo público londrino mas relegam para segundo plano,
praticamente ignorando-a, a acção do Master
of the Revels enquanto censor das peças teatrais, ou seja, o
condicionamento que este certamente terá exercido e que explicará, porventura,
a emergência quer do «tabu da rainha», quer do «desvio da figura do vingador»:
cf. Simona Draghici, «Postface», cit., p. 65.
[146] John Dover
Wilson, What Happens in Hamlet, cit.,
pp. 52ss. De igual modo, cf. Lilian
Winstanley, Hamlet and the Scottish
Succession…, cit., p. 9.
(originalmente publicado in Estudos em Homenagem ao Prodessor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2015).
António Araújo
Sem comentários:
Enviar um comentário