sábado, 26 de março de 2016

Espinosa, o judeu não-judeu português da Holanda (3).



 

 



6. Espinosa, fundador do iluminismo radical
 
No seu já citado estudo sobre o “iluminismo radical”, precisamente intitulado A Revolution of the Mind. Radical Enlightenment and the intellectual Origins of modern Democracy, Jonathan Israel coloca a filosofia espinosista no centro desse visão do mundo em que, sobretudo no séc.XVIII, “a razão e a lei fundada na razão” deviam governar os humanos.[1] A moralidade devia basear-se apenas na razão e nos princípios da igualdade, pelo que o progresso se devia articular com o progresso da equidade e da democracia. Alguns cépticos como Thomas Hobbes (1588-1679), La Mettrie (1709-1751) ou David Hume (1711-1776) e até o marquês de Sade (1740-1814) não basearam a moralidade apenas na razão ou no princípio da igualdade, nem articularam a sua noção de progresso com a equidade e a democracia. Iluministas radicais tinham sido, cada um à sua peculiar maneira, pensadores como Rousseau (1712-1778) e, sobretudo, os enciclopedistas Diderot (1713-1784) e D’Holbach (1723-1789) e os seus discípulos. Por outro lado, o radicalismo iluminista não equivalia a qualquer forma de ateísmo, libertinismo ou irreligião, já que muito dos seus mais ousados corifeus tinham sido deístas, outros ateus, e nesse aspecto, retomavam um dos centros essenciais do pensamento de Espinosa, ou seja, tomavam a razão como único guia da humanidade na conduta da vida humana.
Prossegue Jonathan Israel na sua análise deste iluminismo radical, sublinhando que esta Weltanschauung se radicava numa adesão à liberdade do pensamento, à sua livre expressão na imprensa e à identificação da democracia como a melhor forma de governo, tudo características inerentes ao ideário espinosista, e de modo nenhum derivados do hobbismo ou do humismo (i.e., de David Hume), nem sequer com quaisquer raízes na filosofia política de Locke. O espinosismo tinha a vantagem de combinar o monismo filosófico divindade/matéria/natureza (Deus sive substantia sive natura) com o ideal democrático, pelo que esse iluminismo radical consistia numa filosofia moral puramente secular baseada na igualdade.[2] O que não implica que este iluminismo radical de cepa espinosista defendesse que todos os cristãos, judeus ou muçulmanos fossem excluídos de participarem nestas doutrinas setecentistas que iluminaram a Aufklärung tanto europeia como norte-americana. E é aqui que o anónimo Tractatus theologico-politicus de Espinosa sustentava que todas as igrejas tinham traído o verdadeiro cristianismo com os seus dogmas, mistérios e autoridades eclesiásticas, embora os ensinamentos morais de Cristo fossem a mais alta ética e mais pura tradição de ensino moral, havendo, assim, que separar a religião das teorias filosóficas e reduzi-las a uns poucos dogmas muito simples que Cristo ensinara.[3] Esta atitude espinosista abriu a via a uma série de atitudes religiosas liberais como o socianismo ou o unitarismo – com as suas interpretações antitrinitárias e negadoras da santidade de Cristo, sem falar na negação do pecado original –, divulgado por uns quantos leitores cristãos do filósofo judeu, o que tornou possível uma nova maneira de interpretar a bíblia, inclusive no judaísmo reformado.
Por outras palavras, a filosofia espinosista tornava possível a adopção dum sistema de ética que não só eliminava toda a dependência das noções teológicas, permitindo que o homem tivesse uma moralidade neutral como pura função da vida social. Jonathan Israel sublinha que a Ecncylopédie (1751-1765) de Diderot e D’Alembert, no artigo “Unitaires”, escrito por Jacques-André Naigeon, tornava o socianismo uma doutrina capaz de influenciar alguns dos mais ousados porta-vozes do Iluminsimo Radical na Europa (Holanda e Inglaterra) como na América.[4] Em conclusão, Jonathan Israel considera o espinosismo como um fermento que alimentou todo o naturalismo, o ateísmo e o materialismo do século das Luzes – como já Pierre Bayle (1647-1706) de algum modo o reconhecera, dedicando a Espinosa um dos artigos mais extensos do seu Dictionnaire historique et critique (1696-7) –, considerando-o o espírito que melhor integrou todos os contributos dos argumentos anti-teológicos e libertários desde os Gregos, forjando um sistema que estava destinado a exercer um impacto sem paralelo no debate intelectual dos séculos XVIII e XIX.[5] “Na longa perspectiva, o papel de Espinosa como progenitor crucial do Iluminismo Radical não teve paralelo (…), como o filósofo que, mais do que nenhum outro, forjou a cultura da metafísica básica, os exclusivos valores morais e a cultura da liberdade individual, da política democrática e da liberdade de pensamento que corporizam hoje o essencial dos valores do moderno igualitarismo secular, ou seja, do Iluminismo Radical.”[6] 
 
 
João Medina
 
                                                                                                          


[1] Veja-se o estudo de Jonathan Israel, A Revolution of the Mind. Radical Enlightenment and the intellectual Origins of modern Democracy, pp.20-24, 239-241 (o papel de Espinosa no iluminismo radical), p.199 e ss (Voltaire e Espinosa).
[2] J. Israel, op. cit., p.21.
[3] Cf. Espinosa, Tratado teológico político, ed. cit., pp.144-7.
[4] J.Israel, op. cit., p.24.
[5] Ibidem, p.239.
[6] Ibidem, pp.240-1.
 

 

 

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