6. Espinosa,
fundador do iluminismo radical
No seu já citado estudo sobre o
“iluminismo radical”, precisamente intitulado A Revolution of the Mind.
Radical Enlightenment and the intellectual Origins of modern Democracy,
Jonathan Israel coloca a filosofia espinosista no centro desse visão do mundo
em que, sobretudo no séc.XVIII, “a razão e a lei fundada na razão” deviam
governar os humanos.[1] A moralidade devia basear-se
apenas na razão e nos princípios da igualdade, pelo que o progresso se devia
articular com o progresso da equidade e da democracia. Alguns cépticos como
Thomas Hobbes (1588-1679), La Mettrie (1709-1751) ou David Hume (1711-1776) e
até o marquês de Sade (1740-1814) não basearam a moralidade apenas na razão ou
no princípio da igualdade, nem articularam a sua noção de progresso com a
equidade e a democracia. Iluministas radicais tinham sido, cada um à sua
peculiar maneira, pensadores como Rousseau (1712-1778) e, sobretudo, os
enciclopedistas Diderot (1713-1784) e D’Holbach (1723-1789) e os seus
discípulos. Por outro lado, o radicalismo iluminista não equivalia a qualquer
forma de ateísmo, libertinismo ou irreligião, já que muito dos seus mais
ousados corifeus tinham sido deístas, outros ateus, e nesse aspecto, retomavam
um dos centros essenciais do pensamento de Espinosa, ou seja, tomavam a razão
como único guia da humanidade na conduta da vida humana.
Prossegue Jonathan Israel na sua
análise deste iluminismo radical, sublinhando que esta Weltanschauung se
radicava numa adesão à liberdade do pensamento, à sua livre expressão na
imprensa e à identificação da democracia como a melhor forma de governo, tudo
características inerentes ao ideário espinosista, e de modo nenhum derivados do
hobbismo ou do humismo (i.e., de David Hume), nem sequer com quaisquer raízes
na filosofia política de Locke. O espinosismo tinha a vantagem de combinar o
monismo filosófico divindade/matéria/natureza (Deus sive substantia sive
natura) com o ideal democrático, pelo que esse iluminismo radical consistia
numa filosofia moral puramente secular baseada na igualdade.[2]
O que não implica que este iluminismo radical de cepa espinosista defendesse
que todos os cristãos, judeus ou muçulmanos fossem excluídos de participarem
nestas doutrinas setecentistas que iluminaram a Aufklärung tanto
europeia como norte-americana. E é aqui que o anónimo Tractatus
theologico-politicus de Espinosa sustentava que todas as igrejas tinham
traído o verdadeiro cristianismo com os seus dogmas, mistérios e autoridades
eclesiásticas, embora os ensinamentos morais de Cristo fossem a mais alta ética
e mais pura tradição de ensino moral, havendo, assim, que separar a religião
das teorias filosóficas e reduzi-las a uns poucos dogmas muito simples que
Cristo ensinara.[3] Esta atitude espinosista abriu a via
a uma série de atitudes religiosas liberais como o socianismo ou o unitarismo –
com as suas interpretações antitrinitárias e negadoras da santidade de Cristo,
sem falar na negação do pecado original –, divulgado por uns quantos leitores
cristãos do filósofo judeu, o que tornou possível uma nova maneira de
interpretar a bíblia, inclusive no judaísmo reformado.
Por outras palavras, a filosofia
espinosista tornava possível a adopção dum sistema de ética que não só eliminava
toda a dependência das noções teológicas, permitindo que o homem tivesse uma
moralidade neutral como pura função da vida social. Jonathan Israel sublinha
que a Ecncylopédie (1751-1765) de Diderot e D’Alembert, no artigo
“Unitaires”, escrito por Jacques-André Naigeon, tornava o socianismo uma
doutrina capaz de influenciar alguns dos mais ousados porta-vozes do Iluminsimo
Radical na Europa (Holanda e Inglaterra) como na América.[4]
Em conclusão, Jonathan Israel considera o espinosismo como um fermento que alimentou
todo o naturalismo, o ateísmo e o materialismo do século das Luzes – como já
Pierre Bayle (1647-1706) de algum modo o reconhecera, dedicando a Espinosa um
dos artigos mais extensos do seu Dictionnaire historique et critique
(1696-7) –, considerando-o o espírito que melhor integrou todos os contributos
dos argumentos anti-teológicos e libertários desde os Gregos, forjando um
sistema que estava destinado a exercer um impacto sem paralelo no debate
intelectual dos séculos XVIII e XIX.[5] “Na longa perspectiva,
o papel de Espinosa como progenitor crucial do Iluminismo Radical não teve
paralelo (…), como o filósofo que, mais do que nenhum outro, forjou a cultura
da metafísica básica, os exclusivos valores morais e a cultura da liberdade
individual, da política democrática e da liberdade de pensamento que corporizam
hoje o essencial dos valores do moderno igualitarismo secular, ou seja, do
Iluminismo Radical.”[6]
João Medina
[1] Veja-se o estudo de Jonathan Israel, A Revolution
of the Mind. Radical Enlightenment and the intellectual Origins of modern
Democracy, pp.20-24, 239-241 (o papel de Espinosa no iluminismo radical),
p.199 e ss (Voltaire e Espinosa).
[2] J. Israel, op. cit., p.21.
[3] Cf. Espinosa, Tratado teológico político, ed.
cit., pp.144-7.
[4] J.Israel, op. cit., p.24.
[5] Ibidem, p.239.
[6] Ibidem, pp.240-1.
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