A Procissão do Senhor dos Desamparados em
Soutelinho da Raia:
o Homem resgata o Anjo
As duas festas principais
de Soutelinho da Raia eram (e são) a do Senhor dos Desamparados, celebrada
todos os anos no primeiro domingo de Junho, e a de Santo António, padroeiro da
freguesia, celebrada todos os anos no dia 13 de Junho.
Dada a proximidade da celebração dessas duas
festas, praticamente da procissão constavam os mesmos andores e os mesmos
figurantes. Entre os andores, ocupavam lugar de relevo, como é natural, o do
Senhor dos Desamparados e o de Santo António, levados, cada um deles, aos
ombros possantes de quatro briosos valentões da terra, vestidos de opas roxas,
levando na mão livre uma longa e grossa vara de madeira fina, muito bem
trabalhada, com uma espécie de gancho dourado na parte superior, em que de
longe em longe sustentavam o andor, para breve alívio dos ombros cansados e
doridos.
Só tendo assistido uma vez, desde o tempo de eu
menino, à festa do Senhor dos Desamparados, há cerca de uns vinte e cinco anos,
confesso que não recordo em pormenor – o que deveras lamento – todos os aspectos
da procissão que passo a evocar. Sei que ela tinha início junto da capelinha do
Senhor dos Desamparados, localizada no cimo da aldeia, e terminava junto da
mesma capelinha, depois de percorrer a rua principal até à Lama e de voltar
pelo mesmo caminho; sei que havia os andores mencionados acima e que havia
figurantes do Velho e do Novo Testamento, a começar por Adão e Eva e a acabar
por Maria Madalena, passando por São João Baptista, vestido com uma bela pele
de ovelha, e levando, preso por um cordel, um cordeirinho branco e manso, como
todos os cordeirinhos; passando por Abraão e Isaac (os garotos chamávamos a Isaac
o menino com o molho dos guiços, o que em nada fazia diminuir o terror e a
piedade que nos inspirava, cada vez que o austero e sisudo Pai Abraão, de
barbas grisalhas a cair-lhe até ao peito, simulava cortar-lhe uma orelha com um
facalhão descomunal que levava na mão direita); passando por Verónica, pelas
três Marias e por muitos anjinhos. Lembro-me que o papel de Adão e de Eva era
feito por um rapaz e por uma rapariga dos seus vinte e tal anos, os quais iam
supostamente nus, cobertos apenas por folhas de hera, espetadas com alfinetes
invisíveis num pano muito branco que lhes cobria a nudez do corpo. Lembro-me
também que Adão levava uma enxada ao ombro e que Eva levava uma roca e uma
cestinha muito linda. Enquanto Eva fazia cantar o fuso, com os requintes de uma
exímia e briosa fiandeira, Adão, de seis em seis passos, ou coisa assim, dava
uma enxadada, muito ruidosa, nos seixos da rua empedrada. Recordo-me que as
Três Marias, entre as quais se contava minha mãe, em cumprimento de promessa,
naturalmente, caminhavam descalças, cabisbaixas, tristes, lacrimosas, trajando
um vestido roxo, da cor da túnica do Senhor dos Desamparados, a arrastar pelas
pedras da calçada e com os cabelos a cair-lhes pelas espaldas, até à cintura.
Recordo-me que um pouco mais atrás (as Três Marias iam imediatamente a seguir ao
andor) caminhava Maria Madalena, também com um ar muito compungido e de rosto
banhado em lágrimas, com uma vasta e longa cabeleira loura e com um rico
vestido, que faziam a inveja das moças casadoiras da aldeia.
Uma das recordações mais vivas que tenho na memória
de uma das procissões do Senhor dos Desamparados, dos tempos da minha meninice,
é a de ter visto o meu irmão mais novo, o Alfredo, de uns três ou quatro anos
de idade, vestido de anjinho, certamente em cumprimento de alguma promessa
feita por minha mãe ou minha avó. De cabeleira loura, toda cacheada, de vestido
alvinitente e roçagante, a varrer o pó da calçada, e de asas brancas, como as
de todos os anjos, ia imediatamente à frente do andor do Senhor dos
Desamparados.
Dá-se o início da procissão, com um valente e
tonitruante morteiro, a subir enviesado e a rabiar pelos ares de um céu azul,
com o rufar lento e majestoso dos tambores, e com os primeiros compassos de uma
marcha fúnebre, tocada pela Banda Flaviense ou pela Banda da Torre (não me
lembro bem), e o meu irmãozinho, o Alfredo (ou o Fredo, como lhe chamávamos os
irmãos e os rapazes da terra), começa a assustar-se, de meter dó. Voltava-se
para trás e dava com os olhos infantis e inocentes na figura trágica,
sangrenta, de túnica roxa, de cabelos desgrenhados e empastados de sangue, do
Senhor dos Desamparados ou Senhor dos Passos; olhava para o ar e dava com os
foguetes a ribombar e a estralejar. Que fazer então? Chorar desesperado,
desconsoladamente, à espera de dois braços amigos que fossem libertá-lo desse
pavor insólito e confrangedor. Mas, em vez desses braços amigos e libertadores,
aparecia-lhe pela frente a cara feia e autoritária do Marranicas,
auto-encarregado de pôr ordem nos anjinhos, e o medo e as lágrimas e o choro
convulso do Fredo iam num crescendo de cortar o coração. Perante tamanha
aflição por parte da pobre criancinha, o meu irmão mais velho, o Artur, dá um
enorme safanão no Marranicas, que, indiferente ao sofrimento e ao choro
convulso da pobre criança, queria obrigá-la a todo o custo a desempenhar até ao
fim o seu papel de anjo, pega do Fredo ao colo, retira-o da procissão e
consola-o com as palavras, o carinho e os afagos que só um irmão mais velho
pode e sabe administrar.
À distância dos anos, firmemente creio que Deus, o
doce Redentor da humanidade, na sua eterna sabedoria e infinita bondade, lá
saberia dar por aceita e cumprida a promessa que a criança inocente tinha sido
chamada a cumprir, mercê da incúria involuntária e bem-intencionada de adultos
que, num momento de misteriosa e indizível aflição, não tiveram a suficiente
lucidez mental para prever que os olhos e os ouvidos de uma criança de entre
três e quatro anos poderiam não estar preparados para enfrentar impávidos a
figura trágica de um Cristo sangrento e os estrondos fumegantes e furibundos de
morteiros descomunais e trovejantes.
António
Cirurgião
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