Camadas
sobre camadas. Do rei David ao nosso tempo, Jerusalém,
ovo das três grandes religiões monoteístas — de Deus, de Deus e de Deus —,
acumula camadas de história. Para se ver lajes que Jesus terá pisado no mercado
junto ao Templo é preciso descer debaixo da terra. As paredes mostram camadas
de construções sobre construções, religiosas, militares, civis. Ruínas. Placas
lembram “foi aqui que…” Um gigantesco cemitério sobe o Monte das Oliveiras em
fileiras de pedras tumulares de há milénios ou de hoje, um sítio geológico
humano. Os mortos espreitam os vivos.
A
cidade velha divide-se em zonas que distribuem camadas históricas
pela superfície: o bairro cristão, o bairro islâmico, o bairro judeu, o bairro
arménio. Há portas milenares e muros do século XXI. Torres de igrejas, cúpulas
de sinagogas e minaretes de mesquitas disputam no céu a última camada do espaço.
Uma
camada comprime a outra e cá em cima Jerusalém vive esmagada
pelo passado. Os vivos são prisioneiros dos mortos. Diferentes culturas, religiões
de guerra e paz, nações valentes que se querem mais imortais que as outras.
Vive-se o presente no receio de que o futuro seja a colocação duma nova camada
de sangue seco nas pedras velhas e muros novos.
O Monte do Templo sobre ruínas
|
Os mortos espreitam os vivos: cemitério no Monte das Oliveiras
|
Debaixo de terra: a Igreja do Túmulo de Maria
|
Oração nas pedras do Monte das Oliveiras
|
Lutar
pela paz é combater o passado. Quando se promove o encontro
de culturas sente-se perigo. Juntar pessoas vítimas de passados diferentes é um
acto de coragem, como o narrado pelo documentário de Erez Miller e Henrique
Cymerman, “East Jerusalem, West Jerusalem”, estreado em Portugal na Judaica,
Mostra de Cinema e Cultura. O músico israelita David Broza quis fazer um álbum
em Jerusalém Oriental com músicos judeus e palestinos. O filme acompanha esta
pequena guerra pela paz, os encontros no estúdio, quase clandestinos, as
conversas dos dois lados do muro de cimento e passado que separam pessoas
iguais em mundos diferentes.
Oração na pedra do Santo Sepulcro de Cristo
|
A Cúpula Dourada no Monte do Templo
|
Oração no Muro I
|
Oração no Muro II
|
Estudando no Átrio do Muro
|
Orações no Muro subterrâneo
|
Debaixo de terra: Muro debaixo do Muro
|
Soldados no Santuário do Livro, Museu de Israel
|
Olhando o passado de Jerusalém
|
A
iniciativa de Broza, que noutros lugares seria vulgar, é
ali arrancada ao preconceito, como se alguém roubasse uma pedra antiga duma
camada de passado do Outro na cidade velha. Os músicos judeus e palestinos
dizem coisas para nós banais, mas para eles actos da guerra pela paz: somos
iguais, podemos encontrar-nos, gravar juntos, viver em harmonia. O projecto de
Broza e deste documentário aconteceu nove anos depois, nove anos depois!, do
difícil concerto, também documentado em filme, da West-Eastern Divan Orchestra,
com músicos judeus, muçulmanos e cristãos, em Rammalah, Palestina. Quanto anos
para o próximo? Estes lutadores, na música e nos documentários, sonham com uma última
camada da história de Jerusalém, a da paz.
[Publicado
no Correio da Manhã, Páscoa, 27 de Março de 2016]
Texto e fotografias de Eduardo Cintra Torres
Sem comentários:
Enviar um comentário