quinta-feira, 17 de março de 2016





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 41, # 42, # 43 - JOHN COLTRANE


 
 
 

 
 
Ainda hoje aos domingos de manhã se escutam na Filmore Street de S. Francisco os hossanas recitados em graça do patrono da Saint John Coltrane Church. Se provem de uma fé sincera ou de uma curiosidade turística o fervor que move os fiéis é fenómeno que seria desapiedado questionar. Deixe-se, portanto intacta e em recato a perplexidade desta devoção que presta culta a um músico de jazz, pressentindo, até, na curta existência de John Coltrane alguns dos indícios habitualmente passíveis de santidade, seja a regeneração do vício da droga, tão súbita e decisiva como o raio que milénios antes fulminou aquele cavaleiro na estrada de Damasco, ou então, desde esse instante miraculoso, o crescente compromisso místico da obra musical do saxofonista, com apogeu nos raptos salmódicos de “A Love Supreme”.
No princípio era a disciplina. É costume a vida dos profetas começar de maneira discreta, sem darem sinais daquilo para que estão guardados, mas não foi esse o caso de John Coltrane. Antes do cometimento de “Giant Steps” (1960), debutando o seu contrato com a editora Atlantic e obra que o firmou no proscénio do jazz, cujas composições, todas originais, muito em breve irradiariam como standards; antes deste Rubicão, John Coltrane anunciara a sua presença, se bem que ainda não a sua extrema originalidade, na sombra de alguns dos maiores da sua geração que mais depressa do que ele haviam atinado com uma voz e um sinete distintivos.
Em 1956 John Coltrane passa por “Tenor Madness” de Sonny Rollins – aparece só no tema que lhe dá o nome – disco que é a pedra angular do hard bop. Nesse mesmo ano incorpora o maiúsculo Primeiro Grande Quinteto de Miles Davis, tendo participado na maratona de gravações nos estúdios da Prestige donde manou o quarteto de discos (“Cookin’”, “Relaxin’”, “Workin’” e “Steamin’”) que perpetuaram esta formação. Com Miles haveria também de participar na gesta do supremo “Kind of Blue”, em 1959. Em 1957 não se falou doutra coisa em Nova Iorque senão na temporada de recitais no Five Spot Café em que Coltrane secundou Thelonious Monk. Todas estas efemérides laureariam qualquer músico como um respeitável veterano, mas a John Coltrane serviram apenas de intróito e tarimba.
 


 
My Favorite Things
1961 (2009)
Atlantic – 13420
John Coltrane (saxofone soprano), McCoy Tyner (piano), Steve Davis (contrabaxio), Elvin Jones (bateria).
 
 
 
O que “Giant Steps” certificou, “My Favorite Things” reiterou, apesar da contradição entre ambas as obras. O repertório deste restringe-se exclusivamente a canções assaz assobiáveis e correntes do cancioneiro popular americano, opção insólita para quem desejava acreditar-se como compositor. Sobre tal estranheza Coltrane apresenta-se de saxofone soprano em punho, instrumento invulgar e de timbre incerto com propensão para a estridência.
Um olhar retrospectivo, inteirado da trajectória do saxofonista desde estes 3 dias de Outubro de 1960 até ao final, reparará que o pianista McCoy Tyner e o baterista Elvin Jones debutam aqui o seu noviciado como acólitos do mestre. Esplendido entendimento há-de ter acontecido entre eles, não só porque se mantiveram ligados através dos ventos e tormentas que os iriam fustigar, mas sobretudo porquanto se lhe fraquejasse uma sólida e instintiva rectaguarda rítmica, as expedições harmónicas de Coltrane quedar-se-iam desbussoladas e inconclusas.
Assim foi que a 4 anos de se ver Julie Andrews cantarolando açucaradamente “My Favorite Things”, aos pulinhos pelas escarpas dos Alpes austríacos, John Coltrane perseguiu o tema, esquartejou-lhe o arcaboiço harmónico, dissolveu-lhe as moléculas melódicas, e qual predador que fareja e assedia a caça por todos os recônditos onde ela pudesse pulsar, expandiu-o durante 13 digressivos minutos – era um universo paralelo.
Que nestes tempos o público do jazz ansiava por singularidades e encontrava nelas mais recompensa do que na revisão dos modelos canónicos, fica comprovado pelo enorme êxito comercial de “My Favorite Things”. A peça converteu-se no ex libris – ou no estigma… – de Coltrane que, calcula-se, entre 1960 e 1967 o terá revolvido em cerca de 45 versões.
         Muito impressionaram os coevos as tempestades sonoras multitonais desencadeadas por John Coltrane. Delas se queixou Miles Davis, a quem agradava mais que as notas respirassem: “porque demoras tanto tempo nos solos?” “Porque demoro todo este tempo a dizer tudo.”
 
 

Live! At the Village Vanguard
1962 (2012)
Impulse! / Jazz Wax - JWR4540
John Coltrane (saxofone soprano e tenorEric Dolphy (clarinet baixo), McCoy Tyner (piano), Reggie Workman (contrabaixo), Jimmy Garrison (contrabaixo), Elvin Jones (bateria).
 
 
A transferência de John Coltrane para a editora Impulse! foi de estrondo e teve o nome de “Live! At the Village Vanguard”. O âmago desta obra é “Chasin’ the Trane” cujos 16 minutos de duração na era dos LPs ocupavam uma face inteira. Definitivamente as águas se dividiram com os sopros deste Moisés; os eleitos veneraram-no, os afogados execraram-no; Em ambos os partidos havia tímpanos bem-educados e boas razões.
“Anti-jazz” foi o epíteto cunhado pelos detractores. Parafraseando a comparação com que Philip Larkin ilustra a sua antipatia por Coltrane, “Chasin’ the Trane” seria como se um realizador de cinema tentasse captar uma cena de todos os ângulos possíveis e depois fizesse o filme com a integral dessas imagens; ora a arte – logo o jazz – é escolher uma perspectiva, uma orientação, um compromisso. Carente da concisão, a música de Coltrane era monótona, repetitiva, aborrecida – tudo o que o jazz não era.
Aos apaniguados não faltavam também argumentos. Concordavam que a tradição compelia o jazz à forma de sonetos harmónicos (por veze meros haikus) com métrica e rima seguras. Mas não mais do que 5 anos antes, no concerto de 1956 em Newport da orquestra de Duke Ellington, Paul Gonsalves arrojara o ovacionado e já ungido solo de 27 compassos – porque vaiavam agora John Coltrane? Gonsalves tivera o cuidado intuitivo de não passar a barreira do som, ao passo que Coltrane em “Chasin’ the Trane” superava todos os preceitos exprimindo longas e livres elegias, onde o tom e o tempo se enovelavam em espirais ribonucleicas, criadoras de acordes inesperados e arpejos angulosos. O timbre é inseguro? Os acordes multiplicam-se em demasia e transbordam da necessidade para o aleatório? Há roncos e passagens ululantes? Há de tudo, visto que John Coltrane procede como se intentasse uma impossibilidade quântica: dominar ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de todas as partículas cintilantes da sua música.
 
 

A Love Supreme
1965 (2015)
Impulse! / Verve – 002372602
John Coltrane (saxofone tenor), McCoy Tyner (piano), Jimmy garrison (contrabaixo), Elvin Jones (bateria).
 
“Live! At the Village Vanguard” revelaria a existência de dois Coltranes; o que Mr. Hyde perpetrava ao vivo, não era igual ao que, comedidamente, Dr. Jeckill praticava em estúdio. O saxofonista ansioso e vulcânico em palco discrepava da figura um quanto taciturna mas sempre delicada no trato corrente.
O arroubo espiritual a que John Coltrane se entregara e o havia resgatado da iniquidade, condensar-se-ia musicalmente em “A Love Supreme”, suite em quatro movimentos que consuma uma síntese formal entre a rapidez do bebop, a estrutura harmónica do jazz modal e a insubmissão melódica do free jazz. Por esta altura estavam quase extintas as vozes que ousavam contestar o estilo de John Coltrane e a austera capa a branco e preto do disco, que contradiz a marca gráfica da Impulse!, é pormenor probatório do seu estatuto.
Entenda-se “A Love Supreme” como um salmo. Na primeira parte, “Aknowledgment” Jimmy Garisson introduz no contrabaixo as quatro notas sobre as quais a música progredirá até se converterem num mantra declamado pela voz de Coltrane. Tudo o mais tem uma retórica estruturada e ritualizado como uma liturgia – a que os blues não poderiam estar ausentes –  e os vôos do saxofone sendo livres e amplos, não se demitem de apontar para uma dimensão transcendental.
Abancado no privilégio de poder ouvir “A Love Supreme” a uma distância de mais de meio século ainda não se consegue perceber que deus desconhecido adora John Coltrane, mas, em contrapartida, alcançam-se os motivos que fizeram da obra um suprassumo. “A Love Supreme” foi a ogiva que culminou o movimento histórico do jazz. Depois dele foi uma espécie de Idade Média, sem rasgos categóricos até ao renascimento dos anos 80.
José Navarro de Andrade
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1 comentário:

  1. Bom, sei de "santos" que fizeram muito menos para merecer o título,alguns limitaram-se a morrer á mão de inimigos outro nem isso.Se calhar podíamos abrir uma subscrição(ou lá o que se faz)para Parker,Gilespie etc etc

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