impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 41, # 42, # 43 - JOHN
COLTRANE
Ainda hoje aos domingos de manhã se escutam
na Filmore Street de S. Francisco os hossanas recitados em graça do patrono da
Saint John Coltrane Church. Se provem de uma fé sincera ou de uma curiosidade
turística o fervor que move os fiéis é fenómeno que seria desapiedado
questionar. Deixe-se, portanto intacta e em recato a perplexidade desta devoção
que presta culta a um músico de jazz, pressentindo, até, na curta existência de
John Coltrane alguns dos indícios habitualmente passíveis de santidade, seja a
regeneração do vício da droga, tão súbita e decisiva como o raio que milénios
antes fulminou aquele cavaleiro na estrada de Damasco, ou então, desde esse
instante miraculoso, o crescente compromisso místico da obra musical do
saxofonista, com apogeu nos raptos salmódicos de “A Love Supreme”.
No princípio era a disciplina. É costume
a vida dos profetas começar de maneira discreta, sem darem sinais daquilo para
que estão guardados, mas não foi esse o caso de John Coltrane. Antes do
cometimento de “Giant Steps” (1960), debutando o seu contrato com a editora
Atlantic e obra que o firmou no proscénio do jazz, cujas composições, todas
originais, muito em breve irradiariam como standards; antes deste Rubicão, John
Coltrane anunciara a sua presença, se bem que ainda não a sua extrema
originalidade, na sombra de alguns dos maiores da sua geração que mais depressa
do que ele haviam atinado com uma voz e um sinete distintivos.
Em 1956 John Coltrane passa por “Tenor
Madness” de Sonny Rollins – aparece só no tema que lhe dá o nome – disco que é
a pedra angular do hard bop. Nesse mesmo ano incorpora o maiúsculo Primeiro
Grande Quinteto de Miles Davis, tendo participado na maratona de gravações nos
estúdios da Prestige donde manou o quarteto de discos (“Cookin’”, “Relaxin’”, “Workin’”
e “Steamin’”) que perpetuaram esta formação. Com Miles haveria também de participar
na gesta do supremo “Kind of Blue”, em 1959. Em 1957 não se falou doutra coisa
em Nova Iorque senão na temporada de recitais no Five Spot Café em que Coltrane
secundou Thelonious Monk. Todas estas efemérides laureariam qualquer músico
como um respeitável veterano, mas a John Coltrane serviram apenas de intróito e
tarimba.
My Favorite Things
1961
(2009)
Atlantic – 13420
John
Coltrane (saxofone soprano), McCoy Tyner (piano), Steve Davis (contrabaxio),
Elvin Jones (bateria).
O que “Giant Steps” certificou, “My
Favorite Things” reiterou, apesar da contradição entre ambas as obras. O repertório
deste restringe-se exclusivamente a canções assaz assobiáveis e correntes do cancioneiro
popular americano, opção insólita para quem desejava acreditar-se como
compositor. Sobre tal estranheza Coltrane apresenta-se de saxofone soprano em
punho, instrumento invulgar e de timbre incerto com propensão para a
estridência.
Um olhar retrospectivo, inteirado da
trajectória do saxofonista desde estes 3 dias de Outubro de 1960 até ao final,
reparará que o pianista McCoy Tyner e o baterista Elvin Jones debutam aqui o
seu noviciado como acólitos do mestre. Esplendido entendimento há-de ter acontecido
entre eles, não só porque se mantiveram ligados através dos ventos e tormentas
que os iriam fustigar, mas sobretudo porquanto se lhe fraquejasse uma sólida e
instintiva rectaguarda rítmica, as expedições harmónicas de Coltrane
quedar-se-iam desbussoladas e inconclusas.
Assim foi que a 4 anos de se ver Julie
Andrews cantarolando açucaradamente “My Favorite Things”, aos pulinhos pelas
escarpas dos Alpes austríacos, John Coltrane perseguiu o tema, esquartejou-lhe
o arcaboiço harmónico, dissolveu-lhe as moléculas melódicas, e qual predador que
fareja e assedia a caça por todos os recônditos onde ela pudesse pulsar,
expandiu-o durante 13 digressivos minutos – era um universo paralelo.
Que nestes tempos o público do jazz
ansiava por singularidades e encontrava nelas mais recompensa do que na revisão
dos modelos canónicos, fica comprovado pelo enorme êxito comercial de “My
Favorite Things”. A peça converteu-se no ex
libris – ou no estigma… – de Coltrane que, calcula-se, entre 1960 e 1967 o
terá revolvido em cerca de 45 versões.
Muito
impressionaram os coevos as tempestades sonoras multitonais desencadeadas por
John Coltrane. Delas se queixou Miles Davis, a quem agradava mais que as notas
respirassem: “porque demoras tanto tempo nos solos?” “Porque demoro todo este
tempo a dizer tudo.”
Live!
At the Village Vanguard
1962 (2012)
Impulse! / Jazz Wax - JWR4540
John Coltrane (saxofone soprano e tenorEric Dolphy
(clarinet baixo), McCoy Tyner (piano), Reggie Workman (contrabaixo), Jimmy
Garrison (contrabaixo), Elvin Jones (bateria).
A transferência de John Coltrane para a
editora Impulse! foi de estrondo e teve o nome de “Live! At the Village
Vanguard”. O âmago desta obra é “Chasin’ the Trane” cujos 16 minutos de duração
na era dos LPs ocupavam uma face inteira. Definitivamente as águas se dividiram
com os sopros deste Moisés; os eleitos veneraram-no, os afogados execraram-no;
Em ambos os partidos havia tímpanos bem-educados e boas razões.
“Anti-jazz” foi o epíteto cunhado pelos
detractores. Parafraseando a comparação com que Philip Larkin ilustra a sua
antipatia por Coltrane, “Chasin’ the Trane” seria como se um realizador de
cinema tentasse captar uma cena de todos os ângulos possíveis e depois fizesse
o filme com a integral dessas imagens; ora a arte – logo o jazz – é escolher
uma perspectiva, uma orientação, um compromisso. Carente da concisão, a música
de Coltrane era monótona, repetitiva, aborrecida – tudo o que o jazz não era.
Aos apaniguados não faltavam também argumentos.
Concordavam que a tradição compelia o jazz à forma de sonetos harmónicos (por
veze meros haikus) com métrica e rima seguras. Mas não mais do que 5 anos
antes, no concerto de 1956 em Newport da orquestra de Duke Ellington, Paul
Gonsalves arrojara o ovacionado e já ungido solo de 27 compassos – porque
vaiavam agora John Coltrane? Gonsalves tivera o cuidado intuitivo de não passar
a barreira do som, ao passo que Coltrane em “Chasin’ the Trane” superava todos
os preceitos exprimindo longas e livres elegias, onde o tom e o tempo se
enovelavam em espirais ribonucleicas, criadoras de acordes inesperados e arpejos
angulosos. O timbre é inseguro? Os acordes multiplicam-se em demasia e
transbordam da necessidade para o aleatório? Há roncos e passagens ululantes?
Há de tudo, visto que John Coltrane procede como se intentasse uma
impossibilidade quântica: dominar ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de
todas as partículas cintilantes da sua música.
A Love Supreme
1965
(2015)
Impulse!
/ Verve – 002372602
John
Coltrane (saxofone tenor), McCoy Tyner (piano), Jimmy garrison (contrabaixo), Elvin
Jones (bateria).
“Live! At the Village Vanguard”
revelaria a existência de dois Coltranes; o que Mr. Hyde perpetrava ao vivo,
não era igual ao que, comedidamente, Dr. Jeckill praticava em estúdio. O
saxofonista ansioso e vulcânico em palco discrepava da figura um quanto taciturna
mas sempre delicada no trato corrente.
O arroubo espiritual a que John Coltrane
se entregara e o havia resgatado da iniquidade, condensar-se-ia musicalmente em
“A Love Supreme”, suite em quatro movimentos que consuma uma síntese formal
entre a rapidez do bebop, a estrutura harmónica do jazz modal e a insubmissão
melódica do free jazz. Por esta altura estavam quase extintas as vozes que
ousavam contestar o estilo de John Coltrane e a austera capa a branco e preto do
disco, que contradiz a marca gráfica da Impulse!, é pormenor probatório do seu
estatuto.
Entenda-se “A Love Supreme” como um salmo.
Na primeira parte, “Aknowledgment” Jimmy Garisson introduz no contrabaixo as
quatro notas sobre as quais a música progredirá até se converterem num mantra
declamado pela voz de Coltrane. Tudo o mais tem uma retórica estruturada e
ritualizado como uma liturgia – a que os blues não poderiam estar ausentes
– e os vôos do saxofone sendo livres e
amplos, não se demitem de apontar para uma dimensão transcendental.
Abancado no privilégio de poder ouvir “A
Love Supreme” a uma distância de mais de meio século ainda não se consegue
perceber que deus desconhecido adora John Coltrane, mas, em contrapartida, alcançam-se
os motivos que fizeram da obra um suprassumo. “A Love Supreme” foi a ogiva que
culminou o movimento histórico do jazz. Depois dele foi uma espécie de Idade
Média, sem rasgos categóricos até ao renascimento dos anos 80.
José
Navarro de Andrade
´
Bom, sei de "santos" que fizeram muito menos para merecer o título,alguns limitaram-se a morrer á mão de inimigos outro nem isso.Se calhar podíamos abrir uma subscrição(ou lá o que se faz)para Parker,Gilespie etc etc
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