Todos os anos se elabora excessivamente
a propósito do Nobel da Literatura, tanto antes, como depois. Este ano a
atribuição do Nobel a Svetlana Alexievich, não fugindo à regra, teve a
particularidade de, tanto nos louvores como nas críticas, tender para o
monotemático: a Academia finalmente reconheceu as qualidades da não ficção.
Primeiro o óbvio, a questão não tem
tanto a ver com o reconhecimento da não ficção – basta recordar que nem sequer é a primeira vez
que o Nobel é atribuído a autores de não ficção, como aconteceu com Theodor
Mommsen, logo em 1902, e mais tarde com Bertrand Russell ou Winston Churchill.
E quando o fez, nem sequer se pode dizer com propriedade que foi para destacar
autores com notáveis qualidades literárias. Mesmo Mommsen, autor daquela que é
ainda hoje uma das mais influentes Histórias de Roma, certamente não foi
laureado pela beleza da sua prosa. A questão é outra, ou melhor, o problema. A
Academia, até este ano, pareceu padecer quase sempre de um lamentável
estreitamento de vistas no que à ideia de literatura diz respeito.
Parte do problema está na origem, e nas
cláusulas testamentárias de Alfred Nobel, cujo legado procurava premiar autores
de sentido idealista, um pressuposto que, mesmo tendo sido interpretado como
alguma amplitude, coloca sérios entraves ao reconhecimento de um género
literário que, assim, dificilmente se enquadra. Mas, por outro lado, a verdade
é que se isso impediu alguns dos grandes autores do século XX de terem sido
premiados, nos últimos cinquenta anos os critérios originalistas têm valido
muito pouco, a julgar pela larga maioria dos escolhidos. E, talvez por isso, a
Academia finalmente parece ter-se dado conta das qualidades literárias de autores
que escrevem quase exclusivamente em géneros menos ancestrais.
Não é novidade que há não ficção
jornalística com assinaláveis qualidades literárias, até mesmo porque não são
raros os casos de grandes ficcionistas com obra jornalística de relevo, como
foram o caso de Ernest Hemingway ou Truman Capote, ou, mais recentemente, de David
Foster Wallace. Algumas das reportagens de Foster Wallace conseguem rivalizar
com os seus melhores momentos de ficção. A mero título de exemplo, leiam-se as
hilariantes reportagens sobre a indústria pornográfica e os seus festivais de
prémios, em O Grande Filme Vermelho:
“There
is something deeply surreal about standing behind a female performer in hotpink
peau de soie, a woman whose clitoris and perineum you have priorly seen, and
watching her try to get a microwaved egg roll onto her plate with a cocktail
fork.”
Ou a reportagem para a Gourmet sobre o Festival da Lagosta do
Maine, em Pensem na Lagosta, que fez
mais pela dignidade do marisco que qualquer filmagem de Cousteau:
“I’m
not trying to give you a PETA-like screed here—at least I don’t think so. I’m
trying, rather, to work out and articulate some of the troubling questions that
arise amid all the laughter and saltation and community pride of the Maine
Lobster Festival. The truth is that if you, the Festival attendee, permit
yourself to think that lobsters can suffer and would rather not, the MLF can
begin to take on aspects of something like a Roman circus or medieval
torture-fest.”
E A
Sangue Frio, de Capote, uma não ficção sobre o homicídio da família
Clutter, é ainda hoje um dos melhores exemplos do quanto o jornalismo pode
abusar dos privilégios da ficção sem que as fronteiras sejam, ainda assim,
demasiado instáveis. Esta obra é, aliás, um repositório notável das linhas do New Journalism, expressão que pretende
designar um novo estilo jornalístico que começou a surgir na década de 60,
característico de autores muito dispares na sua forma de escrever mas que
tinham como ponto de união uma abordagem às histórias em que a perspectiva do
escritor se tornou o nervo da narrativa e a reportagem passou a importar mais
pela veracidade do percurso do autor do que pela rigorosa compilação de factos.
O que estes autores procuravam era, no fundo, colocar os leitores perante as
sensações físicas motivadas pelos factos, algo que a sua mera descrição
dificilmente alcançaria e algo que só seria possível através dos mecanismos da
ficção. A Sangue Frio é, disso, um
excelente exemplo. Como Tom Wolfe reparou, num ensaio intitulado Pornoviolência
– onde, curiosamente, o romance de Capote é referido como símbolo de uma
tendência para explorar o apelo sádico-sensacionalista das histórias –, A Sangue Frio consegue sustentar páginas
e páginas de uma história em que todo o mistério se desvaneceu e desde o início
se sabe quem são os assassinos e que já foram capturados, apenas porque mantém
sempre viva a promessa de algo inexplicavelmente violento e terrivelmente
visual, mas guardando tudo isso até ao final.
Svetlana Alexievich
|
A atribuição do Nobel a Svetlana
Alexievich é um facto relevante, não por corresponder ao reconhecimento das qualidades
literárias da não ficção, mas porque premeia uma autora que se dedica
maioritariamente a este género, um universo a que Gay Talese chamou a Ellis
Island da literatura, um lugar de escritores de “segunda-classe”. Ainda que
tardio, e mesmo com a saudável indiferença que os grandes prémios tantas vezes
fazem por merecer, talvez não seja exagerado ler aqui a confirmação de que
alguma da melhor literatura dos últimos cem anos pode ser lida em peças de
jornalismo. Mesmo antes do New Journalism
já Joseph Mitchell recolhia nas páginas da New Yorker uma imensidão de retratos
dos habitantes de Nova Iorque, principalmente dos seus proscritos e inadaptados,
capazes de preservar tão bem uma memória da cidade num jogo semelhante ao que
Doblin fez com Berlim. McSorley’s
Wonderful Saloon, que já merecia uma tradução portuguesa, é um mosaico de
personagens formidáveis, a começar pelos donos do famoso bar de Nova Iorque que
dá o nome à colecção de textos, celebrizado pelo moto “Good Ale, Raw Onions and
No Ladies”:
“McSorley’s
occupies the ground floor of a red brick tenement at 15 Seventh Street, just
off Cooper Square, where the Bowery ends. It was opened in 1854 and is the
oldest saloon in the city. In eighty-six years it has had four owners—an Irish
immigrant, his son, a retired policeman, and his daughter —and all of them have
been opposed to change. It is equipped with electricity, but the bar is stubbornly
illuminated with a pair of gas lamps, which flicker fitfully and throw shadows
on the low, cobwebby ceiling each time someone opens the street door. There is
no cash register. Coins are dropped in soup bowls—one for nickels, one for
dimes, one for quarters, and one for halves—and bills are kept in a rosewood
cashbox. It is a drowsy place; the bartenders never make a needless move, the
customers nurse their mugs of ale, and the three clocks on the walls have not
been in agreement for many years.”
Os retratos de Mitchell e a sua prosa
capaz de reproduzir de forma brilhante os interiores e exteriores em que os
seus textos se moviam, são já exemplo de
que os mecanismos da ficção são perfeitamente legítimos num texto jornalístico
sem que a sua função primordial seja sequer posta em causa. A lição ainda
demorou, mas a pouco e pouco foi fazendo escola e produzindo excelente
jornalismo que era, ao mesmo tempo, boa literatura.
Leia-se, por exemplo, o primeiro
parágrafo da peça que Gay Talese escreveu sobre a revista Vogue, provavelmente
um dos melhores começos de um texto:
“Each
weekday morning a group of suave and wrinkle-proof women, who call each other
‘dear’ and ‘dahling,’ and can speak in italics and curse in French, move into
Manhattan’s Graybar Building, elevate to the nineteenth floor, and then slip
behind their desks at Vogue”
Ou, também de Talese, aquele que é, sem
grande polémica, o texto canónico do New
Journalism, Frank Sinatra Has a Cold,
um perfil para a revista Esquire:
“Sinatra
with a cold is Picasso without paint, Ferrari without fuel -- only worse. For
the common cold robs Sinatra of that uninsurable jewel, his voice, cutting into
the core of his confidence, and it affects not only his own psyche but also
seems to cause a kind of psychosomatic nasal drip within dozens of people who
work for him, drink with him, love him, depend on him for their own welfare and
stability. A Sinatra with a cold can, in a small way, send vibrations through
the entertainment industry and beyond as surely as a President of the United
States, suddenly sick, can shake the national economy.”
É impossível não referir também Norman
Mailer ou Hunter S. Thompson, este último principalmente pelo seu trabalho na
Rolling Stone e pelo seu temerário livro sobre os Hell’s Angels. É que apesar do
arquifamoso Fear and Loathing in Las
Vegas, a cidade do pecado soa bem melhor com Tom Wolfe em Las Vegas (What?) Las Vegas (Can't hear you!
Too noisy) Las Vegas!!!!, ou com Joan Didion em Marrying Absurd:
“This
geographical implausibility reinforces the sense that what happens there has no
connection with “real” life; Nevada cities like Reno and Carson are ranch
towns, Western towns, places behind which there is some historical imperative.
But Las Vegas seems to exist only in the eye of beholder all of which makes it
an extraordinary and interesting place, but an odd one in which to want to wear
a candlelight satin Priscilla of Boston wedding dress with Chantilly lace
insets, tapered sleeves and a detachable modified train.”
Mais recentemente, entre os
jornalistas-escritores que seguem os caminhos abertos por Mitchell, podemos
destacar John Jeremiah Sullivan, um autor que tem a infelicidade de partilhar
gostos e algumas características com David Foster Wallace e que, por isso,
muitas vezes lhe fica na sombra, mas que também escreveu um excelente
ensaio/perfil sobre ténis e que é o autor de uma das mais estranhas e
divertidas peças publicadas sobre ataques de animais a seres humanos, Violence of the Lambs.
Se algo se pode dizer acerca destes autores
que desde os anos 60 trouxeram os artifícios da ficção para o jornalismo, é
que, hoje em dia, o seu espectro de influência é tão largo, que até na própria
ficção podemos encontrar o seu reflexo. Para lá dos prémios, é esta a
verdadeira homenagem que lhes devemos, perceber que da mesma forma que o
jornalismo soube aprender com a melhor ficção, talvez esteja na altura de a
literatura aprender algo na forma como estes autores fizeram e fazem o
jornalismo.
David Teles Pereira
Sem comentários:
Enviar um comentário