sexta-feira, 4 de março de 2016

Pensem na não ficção.

 
 
 

 
 
Todos os anos se elabora excessivamente a propósito do Nobel da Literatura, tanto antes, como depois. Este ano a atribuição do Nobel a Svetlana Alexievich, não fugindo à regra, teve a particularidade de, tanto nos louvores como nas críticas, tender para o monotemático: a Academia finalmente reconheceu as qualidades da não ficção.
Primeiro o óbvio, a questão não tem tanto a ver com o reconhecimento da não ficção –  basta recordar que nem sequer é a primeira vez que o Nobel é atribuído a autores de não ficção, como aconteceu com Theodor Mommsen, logo em 1902, e mais tarde com Bertrand Russell ou Winston Churchill. E quando o fez, nem sequer se pode dizer com propriedade que foi para destacar autores com notáveis qualidades literárias. Mesmo Mommsen, autor daquela que é ainda hoje uma das mais influentes Histórias de Roma, certamente não foi laureado pela beleza da sua prosa. A questão é outra, ou melhor, o problema. A Academia, até este ano, pareceu padecer quase sempre de um lamentável estreitamento de vistas no que à ideia de literatura diz respeito.
Parte do problema está na origem, e nas cláusulas testamentárias de Alfred Nobel, cujo legado procurava premiar autores de sentido idealista, um pressuposto que, mesmo tendo sido interpretado como alguma amplitude, coloca sérios entraves ao reconhecimento de um género literário que, assim, dificilmente se enquadra. Mas, por outro lado, a verdade é que se isso impediu alguns dos grandes autores do século XX de terem sido premiados, nos últimos cinquenta anos os critérios originalistas têm valido muito pouco, a julgar pela larga maioria dos escolhidos. E, talvez por isso, a Academia finalmente parece ter-se dado conta das qualidades literárias de autores que escrevem quase exclusivamente em géneros menos ancestrais.
Não é novidade que há não ficção jornalística com assinaláveis qualidades literárias, até mesmo porque não são raros os casos de grandes ficcionistas com obra jornalística de relevo, como foram o caso de Ernest Hemingway ou Truman Capote, ou, mais recentemente, de David Foster Wallace. Algumas das reportagens de Foster Wallace conseguem rivalizar com os seus melhores momentos de ficção. A mero título de exemplo, leiam-se as hilariantes reportagens sobre a indústria pornográfica e os seus festivais de prémios, em O Grande Filme Vermelho:
         “There is something deeply surreal about standing behind a female performer in hotpink peau de soie, a woman whose clitoris and perineum you have priorly seen, and watching her try to get a microwaved egg roll onto her plate with a cocktail fork.”
Ou a reportagem para a Gourmet sobre o Festival da Lagosta do Maine, em Pensem na Lagosta, que fez mais pela dignidade do marisco que qualquer filmagem de Cousteau:
I’m not trying to give you a PETA-like screed here—at least I don’t think so. I’m trying, rather, to work out and articulate some of the troubling questions that arise amid all the laughter and saltation and community pride of the Maine Lobster Festival. The truth is that if you, the Festival attendee, permit yourself to think that lobsters can suffer and would rather not, the MLF can begin to take on aspects of something like a Roman circus or medieval torture-fest.
E A Sangue Frio, de Capote, uma não ficção sobre o homicídio da família Clutter, é ainda hoje um dos melhores exemplos do quanto o jornalismo pode abusar dos privilégios da ficção sem que as fronteiras sejam, ainda assim, demasiado instáveis. Esta obra é, aliás, um repositório notável das linhas do New Journalism, expressão que pretende designar um novo estilo jornalístico que começou a surgir na década de 60, característico de autores muito dispares na sua forma de escrever mas que tinham como ponto de união uma abordagem às histórias em que a perspectiva do escritor se tornou o nervo da narrativa e a reportagem passou a importar mais pela veracidade do percurso do autor do que pela rigorosa compilação de factos. O que estes autores procuravam era, no fundo, colocar os leitores perante as sensações físicas motivadas pelos factos, algo que a sua mera descrição dificilmente alcançaria e algo que só seria possível através dos mecanismos da ficção. A Sangue Frio é, disso, um excelente exemplo. Como Tom Wolfe reparou, num ensaio intitulado Pornoviolência – onde, curiosamente, o romance de Capote é referido como símbolo de uma tendência para explorar o apelo sádico-sensacionalista das histórias –, A Sangue Frio consegue sustentar páginas e páginas de uma história em que todo o mistério se desvaneceu e desde o início se sabe quem são os assassinos e que já foram capturados, apenas porque mantém sempre viva a promessa de algo inexplicavelmente violento e terrivelmente visual, mas guardando tudo isso até ao final.
 
 
Svetlana Alexievich
 
 
 
 
A atribuição do Nobel a Svetlana Alexievich é um facto relevante, não por corresponder ao reconhecimento das qualidades literárias da não ficção, mas porque premeia uma autora que se dedica maioritariamente a este género, um universo a que Gay Talese chamou a Ellis Island da literatura, um lugar de escritores de “segunda-classe”. Ainda que tardio, e mesmo com a saudável indiferença que os grandes prémios tantas vezes fazem por merecer, talvez não seja exagerado ler aqui a confirmação de que alguma da melhor literatura dos últimos cem anos pode ser lida em peças de jornalismo. Mesmo antes do New Journalism já Joseph Mitchell recolhia nas páginas da New Yorker uma imensidão de retratos dos habitantes de Nova Iorque, principalmente dos seus proscritos e inadaptados, capazes de preservar tão bem uma memória da cidade num jogo semelhante ao que Doblin fez com Berlim. McSorley’s Wonderful Saloon, que já merecia uma tradução portuguesa, é um mosaico de personagens formidáveis, a começar pelos donos do famoso bar de Nova Iorque que dá o nome à colecção de textos, celebrizado pelo moto “Good Ale, Raw Onions and No Ladies”:
McSorley’s occupies the ground floor of a red brick tenement at 15 Seventh Street, just off Cooper Square, where the Bowery ends. It was opened in 1854 and is the oldest saloon in the city. In eighty-six years it has had four owners—an Irish immigrant, his son, a retired policeman, and his daughter —and all of them have been opposed to change. It is equipped with electricity, but the bar is stubbornly illuminated with a pair of gas lamps, which flicker fitfully and throw shadows on the low, cobwebby ceiling each time someone opens the street door. There is no cash register. Coins are dropped in soup bowls—one for nickels, one for dimes, one for quarters, and one for halves—and bills are kept in a rosewood cashbox. It is a drowsy place; the bartenders never make a needless move, the customers nurse their mugs of ale, and the three clocks on the walls have not been in agreement for many years.
Os retratos de Mitchell e a sua prosa capaz de reproduzir de forma brilhante os interiores e exteriores em que os seus textos se moviam,  são já exemplo de que os mecanismos da ficção são perfeitamente legítimos num texto jornalístico sem que a sua função primordial seja sequer posta em causa. A lição ainda demorou, mas a pouco e pouco foi fazendo escola e produzindo excelente jornalismo que era, ao mesmo tempo, boa literatura.
Leia-se, por exemplo, o primeiro parágrafo da peça que Gay Talese escreveu sobre a revista Vogue, provavelmente um dos melhores começos de um texto:
Each weekday morning a group of suave and wrinkle-proof women, who call each other ‘dear’ and ‘dahling,’ and can speak in italics and curse in French, move into Manhattan’s Graybar Building, elevate to the nineteenth floor, and then slip behind their desks at Vogue
Ou, também de Talese, aquele que é, sem grande polémica, o texto canónico do New Journalism, Frank Sinatra Has a Cold, um perfil para a revista Esquire:
Sinatra with a cold is Picasso without paint, Ferrari without fuel -- only worse. For the common cold robs Sinatra of that uninsurable jewel, his voice, cutting into the core of his confidence, and it affects not only his own psyche but also seems to cause a kind of psychosomatic nasal drip within dozens of people who work for him, drink with him, love him, depend on him for their own welfare and stability. A Sinatra with a cold can, in a small way, send vibrations through the entertainment industry and beyond as surely as a President of the United States, suddenly sick, can shake the national economy.
É impossível não referir também Norman Mailer ou Hunter S. Thompson, este último principalmente pelo seu trabalho na Rolling Stone e pelo seu temerário livro sobre os Hell’s Angels. É que apesar do arquifamoso Fear and Loathing in Las Vegas, a cidade do pecado soa bem melhor com Tom Wolfe em Las Vegas (What?) Las Vegas (Can't hear you! Too noisy) Las Vegas!!!!, ou com Joan Didion em Marrying Absurd:
“This geographical implausibility reinforces the sense that what happens there has no connection with “real” life; Nevada cities like Reno and Carson are ranch towns, Western towns, places behind which there is some historical imperative. But Las Vegas seems to exist only in the eye of beholder all of which makes it an extraordinary and interesting place, but an odd one in which to want to wear a candlelight satin Priscilla of Boston wedding dress with Chantilly lace insets, tapered sleeves and a detachable modified train.”
Mais recentemente, entre os jornalistas-escritores que seguem os caminhos abertos por Mitchell, podemos destacar John Jeremiah Sullivan, um autor que tem a infelicidade de partilhar gostos e algumas características com David Foster Wallace e que, por isso, muitas vezes lhe fica na sombra, mas que também escreveu um excelente ensaio/perfil sobre ténis e que é o autor de uma das mais estranhas e divertidas peças publicadas sobre ataques de animais a seres humanos, Violence of the Lambs.
Se algo se pode dizer acerca destes autores que desde os anos 60 trouxeram os artifícios da ficção para o jornalismo, é que, hoje em dia, o seu espectro de influência é tão largo, que até na própria ficção podemos encontrar o seu reflexo. Para lá dos prémios, é esta a verdadeira homenagem que lhes devemos, perceber que da mesma forma que o jornalismo soube aprender com a melhor ficção, talvez esteja na altura de a literatura aprender algo na forma como estes autores fizeram e fazem o jornalismo.
 
 
David Teles Pereira

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