segunda-feira, 11 de abril de 2016

A Lei da Descolonização: quatro antecedentes.

 


 
(1) Três Plenários do MFA (Junho de 1974)
         Em 5 e 8 de Junho de 1974 realizaram-se nas instalações da Manutenção Militar, em Lisboa, duas reuniões (“Plenários”) com os propósitos genéricos de reestruturar o Movimento das Forças Armadas (MFA) e reforçar os poderes da Comissão Coordenadora do Programa do MFA (CCP). No Plenário de 5 de Junho, o problema ultramarino foi acaloradamente discutido a propósito do mandato de Manuel Monge, designado por Spínola para integrar a delegação portuguesa nas conversações de Londres com o PAIGC. Na reunião de 8 de Junho abordou-se o relacionamento do MFA com as instâncias do poder criadas pelo Programa do MFA e pela Lei n.º 3/74, de 14 de Maio (que viera definir a estrutura constitucional provisória e donde o MFA, enquanto tal, não constava). Porém, também nela o tema mais controverso foi o cessar-fogo no Ultramar, agora apreciado a propósito do recente “encontro de Lusaca”, de 7 de Junho, sobre o qual foram, por escassa maioria, rejeitadas as condições para o efeito exigidas pela FRELIMO.
         Continuou sem resposta a questão de saber a quem pertenciam o poder e a competência para efeitos da programada solução política das guerras no Ultramar – se ao Presidente da República (general António de Spínola, em funções desde 15 de Maio), à Junta de Salvação Nacional (JSN), ao Governo Provisório (liderado pelo Primeiro-Ministro Palma Carlos, empossado a 16 de Maio) ou à CCP (formada pelos sete membros do MFA que haviam passado a fazer parte do Conselho de Estado como representantes das forças armadas desde 31 de Maio). Mesmo a terminologia era indefinida: “descolonização”, “autodeterminação” ou meras “conversações de cessar-fogo”.
         Seguiu-se-lhes o terceiro Plenário, em 13 de Junho, onde a questão africana voltou a estar no centro dos debates. Diferentemente dos anteriores, fora convocado por Spínola, que pretendia um voto de confiança. Fez-se acompanhar pelos ministros Palma Carlos, Sá Carneiro, Vieira de Almeida e Firmino Miguel e por alguns membros da JSN. Pelo MFA compareceram cerca de 200 elementos, representando as unidades do país. O Plenário decorreu num ambiente tenso e foi inconclusivo. De manhã, Vieira de Almeida apresentou um balanço catastrófico da situação; Sá Carneiro, após uma dissertação sobre política nacional e internacional, enunciou as duas únicas vias de solução: ou enveredar imediatamente por uma via socialista ou reforçar os poderes do Presidente da República e adoptar medidas de emergência. De seguida, Spínola pôs à consideração duas hipóteses: ou o Movimento lhe conferia confiança absoluta ou pediria a demissão imediata. Após o intervalo para almoço, abriu-se uma discussão confusa de que terá resultado uma aparente posição de apoio do MFA a Spínola – o qual, ainda no decurso da intervenção em causa,  levantou-se, agradeceu e retirou-se, no que foi secundado pelos restantes membros da JSN. No dia seguinte, perante esta saída inopinada (e os fundados temores de dissolução do MFA e declaração do estado de sítio), realizou-se uma reunião restrita entre o Presidente da República e os membros da CCP e o efeito da saída “triunfal” de Spínola da Manutenção Militar terá sido anulado.
Portanto, além do confronto aberto entre as duas correntes do MFA, este Plenário de 13 de Junho também não atenuou a instabilidade da situação “pré-revolucionária” – que, no princípio de Julho, desembocaria na chamada “crise Palma Carlos”. 
 

 
 
(2) O discurso de Spínola, de 11 de Junho   
         Dois dias antes, na posse dos Governadores-Gerais de Angola e Moçambique, general Silvino Silvério Marques e Dr. Soares de Melo, Spínola insistira na proposta de um cessar-fogo imediato e num longo período prévio à organização de um referendo com várias opções possíveis. Centrou-se na clarificação do conceito de autodeterminação. Entendia que não seria aplicável apenas aos territórios africanos, visto que o “25 de Abril” fora, no fundo, a retomada daquele direito pelo povo português. Tão-pouco se poderia dissociar autodeterminação de independência política «pois que, na sua essência, um povo independente é aquele que, democrática e autodeterminadamente, escolheu e votou as leis por que deseja reger-se». O reconhecimento do direito dos povos à independência política seria pois «redundante», uma vez que se encontrava implícito no conceito de autodeterminação com aceitação das consequências «sejam elas quais forem». A eventual independência imediata seria «uma gritante negação dos ideais democráticos» e o direito das populações dos territórios africanos a autodeterminarem-se conduzia, portanto, a um programa de descolonização com quatro pontos: i) restabelecimento da paz; ii) reconstrução e desenvolvimento acelerados; iii) implantação de amplos esquemas democráticos de participação e de uma acelerada regionalização das estruturas políticas, económicas e sociais; iv) recurso à consulta popular como fórmula final de corporização dos princípios. Para obter o imperativo cessar-fogo prévio, invocava uma “paz dos bravos” e a «legitimidade do ideal em que se fundamentam os objectivos que animaram as partes em luta».
         Spínola entrava num campo estritamente especulativo e, em artigo publicado no Diário de Lisboa, de 23 de Julho de 1974, Eduardo Lourenço veio chamar a atenção para gravidade deste discurso. Primeiro, porque mostrava que a África continuava a ser o centro da política portuguesa. Depois, porque estava a garantir solenemente às minorias brancas portuguesas que a mãe-pátria não as abandonaria. Mas, omitindo a concreta situação revolucionária, a formulação de Spínola esquecia o risco da radicalização do processo de luta pela independência «até ao ponto de tornar impossível essa coexistência que se pretende salvaguardar». Segundo Eduardo Lourenço, impunha-se assentar numa só política africana – nomeadamente, estabelecer que «conceitos tão capitais como autodeterminação e independência têm exactamente o mesmo sentido para os responsáveis da nossa descolonização»  – e, ainda, assentar no que era negociável. Consequentemente, incrédulo e legalista, perguntava se era «possível falar em independência como solução à vista e induzir assim a opinião pública nacional e internacional em miragens, quando na Constituição ainda vigente, a Guiné, Angola e Moçambique são declarados parte integrante do território nacional?». Havia, pois, que rever.
 

 
 
(3) As alterações (constitucionais) Palma Carlos
         As divisões quanto às vias da solução política da guerra, os confrontos entre Spínola e a CCP, a dispersão dos centros de poder, o movimento social interno, as reivindicações relativas à questão colonial iriam levar à queda do I Governo Provisório. A crise agravou-se quando Palma Carlos – que apoiava os eixos fundamentais da política spinolista para África e considerava que uma das causas da inoperância do Governo resultava de o Primeiro-Ministro estar reduzido ao papel de mero coordenador – tentou uma revisão do Programa do MFA e da Lei nº 3/74, de 14 de Maio. Aparentemente, pretendia um “golpe de Estado constitucional”, no que foi impedido pelo Conselho de Estado.
         A iniciativa de Palma Carlos consistiu na entrega em 5 de Julho de dois documentos ao Presidente da República. O Documento 1 fazia “Apreciações ao Programa do MFA” e uma análise política da conjuntura. O Documento 2 continha “A proposta de alterações à lei constitucional”, que se desdobrava em dois articulados: I - “Intervenção directa do povo no processo político”, onde, nomeadamente, se previa a votação por referendo a realizar até 31 de Outubro de 1974 de uma Constituição Provisória (sendo, consequentemente, adiadas as eleições para a Assembleia Constituinte) e, em simultâneo ao referendo constitucional, a eleição por sufrágio universal do Presidente da República; e II – uma relação de várias “Normas constitucionais” com alterações imediatas à Lei n.º 3/74 e o alargamento dos poderes do Primeiro-Ministro.
         Naquele Documento I concluía-se que se não «existissem as guerras poderia ser ensaiado um esquema de autodeterminação semelhante ao praticado pela França aquando da aprovação da Constituição de 1958 [...]. A Constituição, feita com a participação de representantes de todos os territórios portugueses – segundo o duplo princípio do sufrágio universal (one man, one vote) e da correspondência entre o número de habitantes e o de deputados – seria submetida a referendo em cada um deles, entendendo-se que aqueles que a aprovassem continuariam ligados a Portugal e aqueles que a rejeitassem adquiririam automaticamente a independência. As guerras vindas de há mais de dez anos e as próprias negociações com os movimentos emancipalistas tornam, contudo, evidentemente inviável este esquema».
         Assim, a proposta de Constituição Provisória apresentada por Palma Carlos contemplava, quanto aos territórios ultramarinos, dois princípios fundamentais:
                   a)- o princípio do reconhecimento por Portugal, «de acordo com a Carta das Nações Unidas», do direito à autodeterminação «com todas as suas consequências, incluindo a independência, aos territórios portugueses da África e da Ásia» (artigo 2.º, n.º 2);
                   b)- os deputados da futura Assembleia Constituinte – a eleger, nos termos da Constituição Provisória, até 30 de Novembro de 1976 – seriam também eleitos «pelos territórios que, em virtude do exercício do direito à autodeterminação, tiverem optado por qualquer forma de ligação política com Portugal» (artigo 2.º, n.º 6).
Afastava-se, portanto, a solução federativa via referendo constitucional e reconhecia-se expressamente o direito à independência. Essencialmente, o Programa do MFA era abolido, ganhava-se tempo, Spínola passaria a ter uma legitimação directa e própria, tentava-se impor uma descolonização controlada e limitada.
 
(4) As reuniões do Conselho de Estado (de 5 a 9 de Julho)
As propostas de Palma Carlos começaram a ser apreciadas na reunião do Conselho de Estado de 5 de Julho e foram debatidas durante todo esse fim-de-semana pelo que o desfecho da crise só foi consumado na sessão de 8-9 de Julho. Entretanto, a 7 de Julho, realizara-se uma reunião alargada de elementos do MFA, onde, além das divergências entre Spínola e a CCP, foi decidida a posição a assumir no Conselho de Estado.
 Na reunião de 8 de Julho, o Conselho de Estado rejeitou, por maioria, as propostas de referendo e eleição presidencial antecipada, mas aprovou, por unanimidade, o alargamento dos poderes do Primeiro-Ministro (Lei n.º 5/74, de 12 de Julho). Palma Carlos apresentou o imediato pedido de demissão, que reiteraria firmemente quando soube que naquela reunião do Conselho de Estado também havia sido aprovado «um diploma que permitia a descolonização sem consulta prévia às populações indígenas».
No dia seguinte, o Conselho de Estado voltou a debater o problema ultramarino e aprovou a primeira versão da Lei da Descolonização, que não chegou a conhecimento público. Teve, aliás, até à sua publicação em fins de Julho como Lei n.º 7/74, um percurso deveras atribulado (ver, a propósito, o post, de 24 de Agosto de 2015, aqui publicado, Spínola e as três versões da Lei da Descolonização).
 
 
António Duarte Silva
 

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