(1) Três Plenários do MFA (Junho de 1974)
Em 5 e 8 de Junho de 1974 realizaram-se
nas instalações da Manutenção Militar, em Lisboa, duas reuniões (“Plenários”)
com os propósitos genéricos de reestruturar o Movimento das Forças Armadas
(MFA) e reforçar os poderes da Comissão Coordenadora do Programa do MFA (CCP). No
Plenário de 5 de Junho, o problema ultramarino foi acaloradamente discutido a
propósito do mandato de Manuel Monge, designado por Spínola para integrar a
delegação portuguesa nas conversações de Londres com o PAIGC. Na reunião de 8
de Junho abordou-se o relacionamento do MFA com as instâncias do poder criadas
pelo Programa do MFA e pela Lei
n.º 3/74, de 14 de Maio (que viera definir a estrutura constitucional
provisória e donde o MFA, enquanto tal, não constava). Porém, também nela o
tema mais controverso foi o cessar-fogo no Ultramar, agora apreciado a
propósito do recente “encontro de Lusaca”, de 7 de Junho, sobre o qual foram, por
escassa maioria, rejeitadas as condições para o efeito exigidas pela FRELIMO.
Continuou sem resposta a questão de
saber a quem pertenciam o poder e a competência para efeitos da programada solução
política das guerras no Ultramar – se ao Presidente da República (general
António de Spínola, em funções desde 15 de Maio), à Junta de Salvação Nacional
(JSN), ao Governo Provisório (liderado pelo Primeiro-Ministro Palma Carlos,
empossado a 16 de Maio) ou à CCP (formada pelos sete membros do MFA que haviam
passado a fazer parte do Conselho de Estado como representantes das forças
armadas desde 31 de Maio). Mesmo a terminologia era indefinida: “descolonização”,
“autodeterminação” ou meras “conversações de cessar-fogo”.
Seguiu-se-lhes o terceiro Plenário, em
13 de Junho, onde a questão africana voltou a estar no centro dos debates.
Diferentemente dos anteriores, fora convocado por Spínola, que pretendia um voto
de confiança. Fez-se acompanhar pelos ministros Palma Carlos, Sá Carneiro,
Vieira de Almeida e Firmino Miguel e por alguns membros da JSN. Pelo MFA
compareceram cerca de 200 elementos, representando as unidades do país. O
Plenário decorreu num ambiente tenso e foi inconclusivo. De manhã, Vieira de
Almeida apresentou um balanço catastrófico da situação; Sá Carneiro, após uma
dissertação sobre política nacional e internacional, enunciou as duas únicas
vias de solução: ou enveredar imediatamente por uma via socialista ou reforçar
os poderes do Presidente da República e adoptar medidas de emergência. De
seguida, Spínola pôs à consideração duas hipóteses: ou o Movimento lhe conferia
confiança absoluta ou pediria a demissão imediata. Após o intervalo para almoço,
abriu-se uma discussão confusa de que terá resultado uma aparente posição de
apoio do MFA a Spínola – o qual, ainda no decurso da intervenção em causa, levantou-se, agradeceu e retirou-se, no que
foi secundado pelos restantes membros da JSN. No dia seguinte, perante esta
saída inopinada (e os fundados temores de dissolução do MFA e declaração do
estado de sítio), realizou-se uma reunião restrita entre o Presidente da
República e os membros da CCP e o efeito da saída “triunfal” de Spínola da Manutenção Militar terá
sido anulado.
Portanto, além do confronto aberto entre as duas
correntes do MFA, este Plenário de 13 de Junho também não atenuou a
instabilidade da situação “pré-revolucionária” – que, no princípio de Julho,
desembocaria na chamada “crise Palma Carlos”.
(2) O discurso de Spínola, de 11 de
Junho
Dois dias antes, na posse dos
Governadores-Gerais de Angola e Moçambique, general Silvino Silvério Marques e Dr.
Soares de Melo, Spínola insistira na proposta de um cessar-fogo imediato e num longo
período prévio à organização de um referendo com várias opções possíveis.
Centrou-se na clarificação do conceito de autodeterminação. Entendia que não
seria aplicável apenas aos territórios africanos, visto que o “25 de Abril”
fora, no fundo, a retomada daquele direito pelo povo português. Tão-pouco se
poderia dissociar autodeterminação de independência política «pois que, na sua
essência, um povo independente é aquele que, democrática e
autodeterminadamente, escolheu e votou as leis por que deseja reger-se». O
reconhecimento do direito dos povos à independência política seria pois
«redundante», uma vez que se encontrava implícito no conceito de
autodeterminação com aceitação das consequências «sejam elas quais forem». A
eventual independência imediata seria «uma gritante negação dos ideais
democráticos» e o direito das populações dos territórios africanos a
autodeterminarem-se conduzia, portanto, a um programa de descolonização com
quatro pontos: i) restabelecimento da paz; ii) reconstrução e desenvolvimento
acelerados; iii) implantação de amplos esquemas democráticos de participação e
de uma acelerada regionalização das estruturas políticas, económicas e sociais;
iv) recurso à consulta popular como fórmula final de corporização dos
princípios. Para obter o imperativo cessar-fogo prévio, invocava uma “paz dos
bravos” e a «legitimidade do ideal em que se fundamentam os objectivos que
animaram as partes em luta».
Spínola
entrava num campo estritamente especulativo e, em artigo publicado no Diário de Lisboa, de 23 de Julho de
1974, Eduardo Lourenço veio chamar a atenção para gravidade deste discurso.
Primeiro, porque mostrava que a África continuava a ser o centro da política
portuguesa. Depois, porque estava a garantir solenemente às minorias brancas
portuguesas que a mãe-pátria não as abandonaria. Mas, omitindo a concreta
situação revolucionária, a formulação de Spínola esquecia o risco da
radicalização do processo de luta pela independência «até ao ponto de tornar
impossível essa coexistência que se pretende salvaguardar». Segundo Eduardo
Lourenço, impunha-se assentar numa só política africana – nomeadamente,
estabelecer que «conceitos tão capitais como autodeterminação e independência
têm exactamente o mesmo sentido para os responsáveis da nossa descolonização» – e, ainda, assentar no que era negociável. Consequentemente,
incrédulo e legalista, perguntava se era «possível falar em independência como solução à vista e
induzir assim a opinião pública nacional e internacional em miragens, quando na
Constituição ainda vigente, a Guiné, Angola e Moçambique são
declarados parte integrante do
território nacional?». Havia, pois, que rever.
(3) As alterações (constitucionais)
Palma Carlos
As divisões quanto às vias da solução
política da guerra, os confrontos entre Spínola e a CCP, a dispersão dos
centros de poder, o movimento social interno, as reivindicações relativas à
questão colonial iriam levar à queda do I Governo Provisório. A crise agravou-se
quando Palma Carlos – que apoiava os eixos fundamentais da política spinolista
para África e considerava que uma das causas da inoperância do Governo
resultava de o Primeiro-Ministro estar reduzido ao papel de mero coordenador –
tentou uma revisão do Programa do MFA
e da Lei nº 3/74, de 14 de Maio. Aparentemente, pretendia um “golpe de Estado
constitucional”, no que foi impedido pelo Conselho de Estado.
A iniciativa de Palma Carlos consistiu
na entrega em 5 de Julho de dois documentos ao Presidente da República. O Documento 1 fazia “Apreciações ao
Programa do MFA” e uma análise política da conjuntura. O Documento 2 continha “A proposta de alterações à lei
constitucional”, que se desdobrava em dois articulados: I - “Intervenção
directa do povo no processo político”, onde, nomeadamente, se previa a votação
por referendo a realizar até 31 de Outubro de 1974 de uma Constituição Provisória (sendo, consequentemente, adiadas as
eleições para a Assembleia Constituinte) e, em simultâneo ao referendo
constitucional, a eleição por sufrágio universal do Presidente da República; e
II – uma relação de várias “Normas constitucionais” com alterações imediatas à
Lei n.º 3/74 e o alargamento dos poderes do Primeiro-Ministro.
Naquele Documento I concluía-se que se não «existissem as guerras poderia
ser ensaiado um esquema de autodeterminação semelhante ao praticado pela França
aquando da aprovação da Constituição de 1958 [...]. A Constituição, feita com a
participação de representantes de todos os territórios portugueses – segundo o
duplo princípio do sufrágio universal (one
man, one vote) e da correspondência entre o número de habitantes e o de
deputados – seria submetida a referendo em cada um deles, entendendo-se que
aqueles que a aprovassem continuariam ligados a Portugal e aqueles que a
rejeitassem adquiririam automaticamente a independência. As guerras vindas de
há mais de dez anos e as próprias negociações com os movimentos emancipalistas
tornam, contudo, evidentemente inviável este esquema».
Assim, a proposta de Constituição Provisória apresentada por
Palma Carlos contemplava, quanto aos territórios ultramarinos, dois princípios
fundamentais:
a)- o princípio do
reconhecimento por Portugal, «de acordo com a Carta das Nações Unidas», do
direito à autodeterminação «com todas as suas consequências, incluindo a
independência, aos territórios portugueses da África e da Ásia» (artigo 2.º,
n.º 2);
b)- os deputados da futura
Assembleia Constituinte – a eleger, nos termos da Constituição Provisória, até 30 de Novembro de 1976 – seriam também
eleitos «pelos territórios que, em virtude do exercício do direito à
autodeterminação, tiverem optado por qualquer forma de ligação política com
Portugal» (artigo 2.º, n.º 6).
Afastava-se,
portanto, a solução federativa via referendo constitucional e reconhecia-se
expressamente o direito à independência. Essencialmente, o Programa do MFA era
abolido, ganhava-se tempo, Spínola passaria a ter uma legitimação directa e
própria, tentava-se impor uma descolonização controlada e limitada.
(4) As reuniões do Conselho de
Estado (de 5 a 9 de Julho)
As
propostas de Palma Carlos começaram a ser apreciadas na reunião do Conselho de
Estado de 5 de Julho e foram debatidas durante todo esse fim-de-semana pelo que
o desfecho da crise só foi consumado na sessão de 8-9 de Julho. Entretanto, a 7
de Julho, realizara-se uma reunião alargada de elementos do MFA, onde, além das
divergências entre Spínola e a CCP, foi decidida a posição a assumir no
Conselho de Estado.
Na reunião de 8 de Julho, o Conselho de Estado
rejeitou, por maioria, as propostas de referendo e eleição presidencial
antecipada, mas aprovou, por unanimidade, o alargamento dos poderes do
Primeiro-Ministro (Lei n.º 5/74, de 12 de Julho). Palma Carlos apresentou o
imediato pedido de demissão, que reiteraria firmemente quando soube que naquela
reunião do Conselho de Estado também havia sido aprovado «um diploma que
permitia a descolonização sem consulta prévia às populações indígenas».
No
dia seguinte, o Conselho de Estado voltou a debater o problema ultramarino e
aprovou a primeira versão da Lei da Descolonização, que não chegou a
conhecimento público. Teve, aliás, até à sua publicação em fins de Julho como
Lei n.º 7/74, um percurso deveras atribulado (ver, a propósito, o post, de 24 de Agosto de 2015, aqui
publicado, Spínola e as três versões da Lei da Descolonização).
António Duarte Silva
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