Em Julho e Agosto de 1976, depois de quase sete meses
passados no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, durante um ano sabático,
resolvi visitar a Bolívia, o Peru, o Equador e a Colômbia, antes de regressar aos
Estados Unidos. Horas depois de ter saído da cidade do Rio de Janeiro, situada
ao nível do mar, dou comigo em La Paz, a mais de três mil e quinhentos metros
de altitude.
Totalmente ignorante sobre o que fosse o “soroche” ou mal
das alturas (também conhecido por mal das montanhas, doença das alturas e
hipobaropatia), não encontrava explicação para o meu terrível e contínuo
mal-estar: dificuldade de respiração, dor de cabeça, enjoos, falta de apetite,
enorme cansaço, quase impossibilidade de dormir. Algo a ver com o coração? Mas
eu era relativamente jovem e nunca tinha sofrido do coração.
Com a
escassez do tempo e com mil e uma coisas para ver, a minha primeira reacção
perante esse deplorável estado foi dizer-me a mim mesmo que não tinha vagar para
estar doente. E literalmente fraco, quase sem comer, lá me ia arrastando como
podia pelas ruas da amargura de La Paz (oficialmente chamada Nuestra Señora de
la Paz), a ver o que era digno de ser visto, segundo os guias turísticos e o
meu instinto de animal curioso.
E foi
nessas tristes condições – de me fazerem ter pena de mim mesmo – que eu,
durante uma semana, aproximadamente, entrei mais de uma vez na imponente
Catedral de San Francisco, deambulei como sonâmbulo pelo Paseo del Prado, a apreciar
os belos jardins e os imponentes monumentos a Cristóbal Colón e a Simón
Bolívar, e pela zona de Miraflores, a apreciar as casas senhoriais e as
vivendas onde vivia a alta burguesia e a classe rica de La Paz; que passei
horas infindas a fazer compras de vista e de facto pela secção dos mercados ao
ar livre, que se estendiam por ruas sem conta, nas zonas mais altas e mais
pobres da cidade, onde se vendia um pouco de tudo, desde toda a espécie de
legumes e de frutas, de peixe e de carne, de pão e de massas, de pratos prontos
a comer, alguns servidos em folhas sujas de jornais, e de bebidas prontas a
beber, algumas servidas em copos lavados durante horas seguidas no mesmo balde
de água, até toda a espécie de roupa pronta a vestir, de que sobressaíam as camisolas
(chamadas chompas) e os ponchos de alpaca e de lama, de variadas cores, e peles
desses dois emblemáticos ruminantes andinos, até tendas em que se vendia toda a
espécie de ingredientes para fazer feitiços, onde se viam, com certo arrepio e
algum asco, entranhas e órgãos ressequidos de toda a casta de animais, de
répteis e de aves, e tendas enormes em que se vendiam folhas de coca.
E foi
também nessas tristes condições – de sofrente do soroche – que passei um dia
inteiro a saborear os encantos da celebração religiosa e cívica mais célebre de
La Paz – a Festa de Nossa Senhora da Assunção, no dia 15 de Agosto – em que vão
de mãos dadas, num sincretismo religioso impressionante, sobretudo na colorida,
ruidosa e interminável procissão, os rituais da Igreja Católica e os rituais de
religiões de tradição incaica, com destaque para uma cerimónia de verdadeira
acção de graças pelas colheitas de toda a ordem, manifestada pela exibição dos
frutos do solo e do subsolo, em artísticos carros alegóricos, em que são reis o
milho e o cobre.
Aí pelo
terceiro dia, ao sentar-me, triste como a noite, à mesa de um restaurante para
cear, vejo-me mais uma vez impossibilitado de comer os pratos que me iam pondo
à frente, limitando-me, sem o mínimo apetite, a debicar aqui e ali, com um
esforço sobre-humano.
Quase sem
querer, reparo que um casal, sentado numa mesa ao lado da minha, me ia
observando, com ar de quem sabe do meu problema e de quem aparenta ter genuína
pena de mim. A determinado momento, o cavalheiro, muito bem vestido e numa
atitude muito cortês, perguntou-me há quantos dias eu tinha chegado a La Paz e
donde viera. Depois de lhe responder que tinha chegado do Rio de Janeiro há
três dias, ele disse-me que não me afligisse: que geralmente acontecia assim a
todos os que chegavam a La Paz nas minhas circunstâncias, e que, infelizmente,
só havia um remédio: o tempo. Mas, mesmo assim, aconselhava-me a beber muitos
líquidos e a passar por uma farmácia nesse mesmo dia e a dizer ao farmacêutico
o que lhe dissera a ele - de onde viera e há quanto tempo chegara a La Paz, e o
estado em que me encontrava, no capítulo da saúde -, que ele saberia muito bem
o que me devia receitar. Mas, repetia ele, essa doença só a curava o tempo.
E antes
de regressar ao hotel passei por uma farmácia e comprei o remédio que o
farmacêutico me receitou. Mas, para tristeza minha, o efeito foi praticamente
nulo. Mais uma noite mal passada e mais uma noite quase impossibilitado de
fechar os olhos. E mais um dia de turismo, vivido no meio de um horrível
mal-estar. Com uma dificuldade enorme de andar, ia-me valendo dos táxis
colectivos, que neste meio tempo descobrira, para cobrir distâncias que, em
circunstâncias normais, percorreria a pé em breves minutos.
Como
nessa noite, tal como acontecera nas noites anteriores, não conseguia pregar
olho, resolvi sair do quarto e dirigir-me à sala de estar do hotel, para tentar
fugir da minha dor. Eu a sentar-me triste e dolentemente num sofá e uma senhora
bastante idosa, de pura raça índia, a aproximar-se de mim e a dizer-me em tom
maternal: “pobrecito, más una noche sin
dormir! Pero no puede ser así. Espere un ratito que voy a darle algo que va a
hacerle dormir.”
Proferidas essas carinhosas palavras, a boa senhora saiu e, passados
momentos, voltou com uma chávena na mão a fumegar. “Tome este té de coca y después vuelva a su cuarto y va a ver como va a
dormir. Y mañana y todas las noches que esté aquí en este hotel con nosotros
venga a verme antes de acostarse, que yo no quiero que Vd. sufra más”
E eu
assim fiz. E pela primeira vez, desde que chegara a La Paz, consegui dormir
quase como um santo. E o mesmo aconteceu nas três noites seguintes, antes de
partir de autocarro a caminho de Cuzco, no Peru. Quer isto dizer que o soroche
ou mal das alturas tinha desaparecido completamente com o “té de coca”? Não: foi diminuindo pouco a pouco, mas, completamente,
só veio a desaparecer no meu terceiro dia passado em Cuzco, depois de haver
bebido a água sagrada dos Incas, numa fonte lendária, localizada nos subúrbios
de Cuzco, realizando-se assim a profecia da senhora que fez de guia e de motorista
numa excursão a umas ruínas incaicas, cerca dessa fabulosa cidade que tantas
saudades me deixou.
Foi esse
abençoado “té de coca”, de que me
despedi para sempre, após o milagre operado pela água sagrada dos Incas, que me
fez compreender, mais tarde, a posteriori,
os salutares benefícios do hábito cultivado pelos camponeses e pelos mineiros
da Bolívia e de outros países andinos: logo de madrugada, depois de um saudável
e farto pequeno almoço, antes de saírem para o trabalho, metiam uma folha de
coca na boca e aí a mantinham, até regressarem a casa, ao fim de um longo dia
de trabalho nas minas ou nos campos de lavoura. Com essa folha de coca na boca,
não sentiam fome nem sede nem cansaço. Chegados a casa, cuspiam a folha de
coca, lavavam a boca, comiam uma bela ceia e dormiam em santa paz.
Dentro
desta ordem de ideias, quando achava que a ocasião era propícia, para fins
éticos, moralizadores e didácticos, falava aos meus amigos, colegas e alunos da
minha experiência pessoal, por ocasião da minha longa viagem pelos países
andinos, em Julho e Agosto de 1976, com o intuito de os fazer compreender que o
que poderia ser noutros países pernicioso para a saúde – a folha de coca – era
nesses países andinos um produto de primeira necessidade, com provados e
irrefutáveis benefícios.
António Cirurgião
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