Paulo Varela Gomes (1952-2016)
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Agora, que enfim partiste, trazem notícias
do que já sabíamos: a morte pressentida a cada instante, o texto terminal numa
revista, o fervor da militância antiga, o romance despertado ao entardecer. Também
falam de Goa, pois claro. Tudo como previsto, Paulo, sem tirar nem pôr. Cumpriu-se
ao milímetro o guião da vida que para ti escolheste, sem transigências, recusando
convenções ou desatinos (e médicos oncologistas). Nem sequer a morte foi
surpreendente ou súbita; espantoso terá sido apenas, porventura, o tempo que ela levou
a chegar – até hoje.
Antecipando este dia, magicava há muito
na minha cabeça a ideia de escrever uma coisa. Queria falar de uma tarde de
Agosto em que estive aí perto, no Buçaco. No parque do Buçaco, logo à entrada, existe
uma loja onde comprei laranjadas frescas e um livrinho sobriamente ilustrado.
Depois, subindo a mata, densa e frondosa, entra-se no convento dos Carmelitas. Maravilhado
de espanto, observei longamente os ornatos feitos de cortiça, matéria-prima que achei algo imprópria para cobrir as
paredes de um edifício conventual. De seguida, deixei a vista perder-se na
contemplação dos embrechados, meticulosos e estranhos, sem perceber nada de
quanta beleza os meus olhos viam. Mirei de relance um mapa velhíssimo de Jerusalém
pendurado numa das paredes da igreja, estive nas celas dos frades e até vi pinturas devotas,
nada entendendo ao certo do muito que me cercava. Fruição puramente visual,
turística, ignorando o verdadeiro sentido das coisas, como é meu timbre.
Ao final da tarde, regressado a casa,
li o livrinho ilustrado que de lá trouxera. Oitenta páginas de Buçaco. O Deserto dos Carmelitas Descalços,
do prestigiado académico, crítico de arte, cronista e romancista Paulo Varela Gomes, nascido
em 1952 e hoje falecido, como há muito se esperava. À luz tremelicante de um
quarto de província, página a página eu ia subindo de novo ao Buçaco, e tudo
quanto antes vira adquiria uma nova significação. Compreendia a beleza misteriosa que ali tivera
diante dos meus olhos, agora devolvida pela graça dos teus.
Naquele
quarto de província, num casarão dos que tanto gostavas, era como se voltasse a olhar o convento inteiro, reerguido de raiz a partir do chão das terras, reconstruído
apenas para mim, iluminado pelo teu livro e por uma luz eléctrica
intermitente. O meu fraco entendimento conseguiu então alcançar, ainda que palidamente,
a complexidade de toda aquela organização arquitectónica, que é antiga e elusiva. Os
ornatos de cortiça, os embrechados bizarros, as alusões veladas ao Templo de
Salomão, a imagem do profeta Elias num altar, a presença de cedros na mata
cerrada, tudo ganhava, de súbito, um sentido novo, deslumbrante. O convento
que tinha visto era e já não era o mesmo. Tinha-se transformado pelo poder da escrita
elegante e clássica de Paulo Varela Gomes, pelo fulgor da sua erudição contida, pela
sua capacidade ímpar de escrever, ao mesmo tempo, sobre clérigos seiscentistas,
metamorfoses de Aquiles e um filme de Buñuel. A beleza imensa que, um dia, os
seus olhos viram, era agora também minha, ou eu assim o julgava.
O
edifício lá está, dizem que há muitos séculos. Não deixou de ser belo quanto o
vi pela primeira vez, durante a tarde. Gostei do conjunto, apreciei a mata
envolvente, valera a pena o passeio. Mas quanta e tão nova beleza o Buçaco agora
tinha, nas letras com que o descreveste.
Fecharam-se
hoje esses olhos, já gastos e embaciados, por quanta beleza tantos outros olhos viram.
Beleza do carácter livre, indomável, da sublime inteligência, de um coração
pleno de amor ao mundo: às pessoas e aos lugares que nele existem, aos animais e às
plantas, às paisagens e aos mares revoltos, ao cheiro intenso, quase ridente, a hortelã-pimenta.
Trazia há muito a ideia de te agradecer tudo isto, de te agradecer por quanta beleza em teus olhos viram, mas
hoje, hoje não sou capaz.
Em
memória de uma tarde passada com um tigre ao fundo,
um
abraço, para sempre, do
António Araújo
:-(
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