4 de Agosto: Comunicação à ONU
Após
o 25 de Abril, os primeiros contactos com a ONU foram exploratórios. De 3 a 7
Junho, depois de uma longa entrevista com o Presidente da República, António de
Spínola, e na qualidade de enviados de Mário Soares, Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Jorge Sampaio e João Cravinho tiveram, em Nova Iorque, múltiplas
conversações sobre os rumos da política externa portuguesa. Concluíram ser generalizada
a expectativa sobre uma definição clara da política de descolonização, em
especial sobre o princípio da autodeterminação e independência – de cuja
adopção se aguardavam passos que, embora difíceis e não necessariamente
rápidos, teriam de ser inequívocos[1].
As declarações públicas do Secretário-Geral da ONU e, sobretudo, as pressões da
Comissão de Descolonização eram semelhantes. Em meados de Junho na XII Cimeira
da OUA, em Mogadíscio, Kurt Waldheim, recordou que os seus ofícios poderiam ser
utilizados nas negociações de Lisboa com os movimentos de libertação,
destacando ser necessário que Portugal, conforme as pertinentes resoluções da
ONU, reconhecesse sem equívocos a independência da Guiné-Bissau e concedesse o
direito à autodeterminação e independência aos povos de Angola e Moçambique.
Em
22 de Junho, Mário Soares reuniu em Nova Iorque com Kurt Waldheim, incitando-o
a uma próxima visita a Lisboa, onde poderia “estimular” a resolução do problema
da independência da Guiné-Bissau. Também Spínola, que, em 28 de Junho,
conseguira impor a nomeação de Veiga Simão como Embaixador de Portugal na ONU,
começara a constatar que o tempo para negociar «era curto», que a ONU desejava
um «acto iniludível» e que só a resolução do caso da Guiné previamente à
abertura da Assembleia Geral da ONU, em Setembro, evitaria que Portugal fosse
submetido a moções drásticas[2].
Em
27 de Julho foi finalmente publicada a “Lei da Descolonização” (Lei n.º 7/74),
através da qual Portugal reconhecia o direito dos povos à autodeterminação
(artigo 1.º), que incluía a aceitação da independência dos territórios
ultramarinos (artigo 2.º), competindo ao Presidente da República, ouvidos a Junta
de Salvação Nacional, o Conselho de Estado e o Governo Provisório, praticar os
actos relativos ao exercício desse direito (artigo 3.º). Tratava-se de uma
forma superior de reconhecimento, pois procedia-se à recepção do direito
internacional, para ele vigorar também na ordem interna, com valor
constitucional. A premência da resolução do problema da Guiné-Bissau fora
determinante e a Lei n.º 7/74 teve uma feitura atribulada, mas a sua versão
definitiva foi votada no Conselho de Estado por unanimidade[3].
Mas,
além daquela recepção, a Lei n.º 7/74 veio merecer também expressa
vinculatividade internacional do Estado português. Esta última faceta resultou
do novo tipo de relacionamento entre Portugal e a ONU, sobretudo quanto à
questão da descolonização, e dos compromissos que, na matéria, Portugal aceitava
assumir.
Estavam,
assim, preenchidas as condições impostas por Kurt Waldheim para debater o
futuro dos territórios portugueses em África[4].
A visita decorreu de 2 a 4 de Agosto e a reunião com Spínola foi exclusivamente
dedicada aos problemas de África[5].
No seu termo foi emitido pelo Departamento de Informação Pública das Nações
Unidas um Comunicado conjunto das Nações
Unidas e do Governo Português [6].
Depois de fazer referência às entidades portuguesas com que contactou, o texto
salienta que o Secretário-Geral explicou a posição das Nações Unidas e os
pontos de vista que lhe foram transmitidos pelos Chefes de Estado africanos,
pela OUA e pelos dirigentes dos Movimentos de Libertação. Também foram
apreciadas as modalidades da possível assistência da ONU no processo de
descolonização. O Governo português expôs a posição quanto a estas questões, em
decorrência da nova Lei Constitucional n.º 7/74 e do discurso público do
presidente Spínola, também de 27 de Julho.
A
matéria originou uma Comunicação do
Governo português, inserida no Comunicado
Conjunto, contendo oito pontos: cooperação com as Nações Unidas (n.º 1);
referência ao princípio da unidade e integridade territorial de cada um dos
territórios africanos sob administração portuguesa (n.º 2); definição da
posição portuguesa relativamente a cada um deles (n.ºs 3 a 7); participação
portuguesa nos programas das Nações Unidas e das Agências Especializadas (n.º
8).
Assumindo, desde o ponto n.º 1, a formulação própria do
direito internacional da descolonização, o Governo português reafirmava as suas obrigações e decidia cooperar plenamente com
a ONU na aplicação de todas as disposições da Carta, resolução 1514 (XV) e
demais resoluções referentes, especificamente, aos territórios sob
administração portuguesa. Em consequência, no ponto n.º 2, reafirmava o
reconhecimento do direito à autodeterminação e independência de todos os
territórios ultramarinos sob sua administração, comprometendo-se a garantir a
unidade e integridade de cada território e a opor-se a toda e qualquer
tentativa separatista ou de desmembramento.
Mas
a Comunicação ia muito além das
previsões genéricas e abstractas do articulado da Lei n.º 7/74. O regime de
cada colónia era definido separadamente. O estatuto da Guiné (ponto n.º 3) era,
nesta ordem, o primeiro, subdividindo-se, formalmente, em duas alíneas:
a) O
governo português declarava-se pronto a reconhecer a República da Guiné-Bissau
como Estado independente e a celebrar imediatamente acordos para a
transferência da administração;
b) Nestes
termos, daria completo apoio ao pedido de admissão da Guiné-Bissau como membro
das Nações Unidas.
O regime de Cabo Verde (ponto n.º 4) era
contemplado em dois parágrafos: o governo português reconhecia o direito do
povo do arquipélago de Cabo Verde à autodeterminação e independência, estava
disposto a aplicar as decisões internacionais e a acelerar o processo de
descolonização.
Por sua vez, o
regime de Moçambique (ponto n.º 5) era, no primeiro parágrafo, semelhante ao de
Cabo Verde, mas, no segundo, a FRELIMO era expressamente reconhecida e
afirmava-se que o governo português tomaria medidas imediatas para acelerar o
processo de independência daquele território.
Quanto a Angola
(ponto n.º 6), dizia a Comunicação num único e cauteloso parágrafo que o
governo português, além de reconhecer o direito à autodeterminação e
independência, tinha a intenção de estabelecer, em breve, contactos com os
movimentos de libertação de modo a poderem iniciar-se, logo que possível,
negociações formais.
Sobre São Tomé e
Príncipe (ponto n.º 7), a Comunicação era absolutamente sintética: além
de reconhecer o direito à autodeterminação e independência, o governo português
dizia-se disposto a aplicar as decisões das Nações Unidas a este respeito.
Por fim, o
governo português esperava que a Assembleia Geral reconsiderasse as decisões
que o impediam de participar plenamente nos programas das Nações Unidas e das
Agências Especializadas.
Apreciando-a
esquematicamente, pode concluir-se o seguinte sobre o sentido e alcance desta Comunicação, de 4 de Agosto, enquanto acto unilateral
através do qual o Estado português, agindo sozinho, exprimia a sua vontade e a
ela se vinculava:
a) a Comunicação inseria-se
no contexto da aprovação da Lei n.° 7/74, fazendo como que a respectiva
transposição para o plano internacional, pelo que o seu conteúdo e filosofia
eram semelhantes: reconhecimento do direito à autodeterminação e independência
pelo Estado português, tal como formulado e desenvolvido pela ONU, e previsão
dos modos da sua efectivação segundo fórmulas amplas e flexíveis;
b) o regime de cada caso era enunciado
em termos ponderados e significativamente diferentes, desde o (irremediável)
reconhecimento da independência da Guiné-Bissau à aceleração das negociações
(exclusivamente) com a FRELIMO, até ao estabelecimento de contactos com (não identificados) movimentos
de libertação de Angola ou mero reconhecimento (sem qualquer tipo de referência
a movimentos de libertação) do direito à autodeterminação e independência de
Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe;
c) Ausência de definição do estatuto de Timor;
d) Referências genéricas e difusas à
cooperação da ONU, quer quanto à descolonização, quer quanto ao papel das
agências especializadas.
Almeida Santos
fala em «desbravar de caminho» e «texto acelerador» em que «a diversidade da linguagem
utilizada para cada território confirma que cada um deles era um caso»[7].
Em resumo:
bastou uma semana – da publicação da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho, à Comunicação do Governo português à ONU,
de 4 de Agosto – para Portugal ficar vinculado, quer na ordem jurídica interna
quer na ordem jurídica internacional, à dissolução do seu império colonial[8].
Como se verá nos
dois posts subsequentes, esta Comunicação do Governo português à ONU
correspondeu também ao primeiro momento do “programa de Agosto” para a
descolonização, delineado por Spínola, Veiga Simão e Almeida Santos. Contudo, os
casos da Guiné-Bissau e de Moçambique ficarão decididos no fim do mês, na 12.ª
sessão do Conselho de Estado, e dar-lhe-ão outro rumo.
(Baseado em A
Constituição Colonial Portuguesa – Das colónias, do império, do ultramar e da
descolonização, a publicar).
António Duarte Silva
[1]
Ver José Pedro Castanheira, Jorge Sampaio
– Uma Biografia, Lisboa/Porto, Edições Nelson de Matos/Porto Editora, 2012,
pp. 455 e segs.
[2]
António de Spínola, País sem Rumo –
Contributo para a História de uma Revolução, Lisboa, SCIRE, 1978, pp. 281/282.
[3]
Ver os posts intitulados A Lei da Descolonização: quatro antecedentes,
de 11/04/2016, e Spínola e as três
versões da Lei da Descolonização, de 24/08/2015.
[4]
Sobre a programação da viagem de Kurt Waldheim a Lisboa, Luís Nuno Rodrigues,
“António de Spínola e o contexto internacional da descolonização”, in Pedro
Aires de Oliveira e Maria Inácia Rezola (coord.), Estudos em homenagem a José Medeiros Ferreira, Lisboa,
Tinta-da-China, 2010, pp. 598 e segs., e David Castaño, Mário Soares e a Revolução, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2012,
pp. 148 e segs.
[7]
António de Almeida Santos, Quase Memórias
– Do Colonialismo e da Descolonização,1.º Volume, Cruz Quebrada, Casa das
Letras/Editorial Notícias, 2006, pp. 318/319.
[8]
Norrie MacQueen, A Descolonização da
África Portuguesa, Mem Martins, Editorial Inquérito, 1998, p. 121.
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