Aconteceu cerca de
um ano depois do famoso e lendário Festival de Rock de Woodstock, realizado
entre os dias 15 e 18 de Agosto de 1969. Foi uma mini-réplica do Woodstock no
estado de Connecticut, organizado ilegalmente no Powder Ridge Ski Area de
Middlefield, de 31 de Julho a 2 de Agosto de 1970.
Chamo a
este Festival de Rock do estado de Connecticut “mini-réplica” do Festival de
Rock de Woodstock do estado de Nova Iorque, porque de facto assim foi, não só
porque o Festival de Rock de Nova Iorque foi o rei e a bitola por que se
pautaram as dezenas de festivais de rock que se propuseram imitá-lo, um pouco
por todos os Estados Unidos da América, mas sobretudo porque o Festival de Rock
de Connecticut, tendo sido proibido de realizar-se à última hora pelas
autoridades municipais, foi um grande fracasso em todos os sentidos. As 30.000
pessoas que, antecipadamente, compraram por vinte dólares os bilhetes que lhes
permitiam a participação em todos os programas durante os três dias do
festival, vieram a deparar, quando aí chegaram, com falta de comida, com falta
de bebida, com falta de acomodações, com falta de condições sanitárias, e,
ainda por cima, com a falta do prato forte do festival: a ausência das dezenas
de cantores e de conjuntos musicais, previamente contratados pela organização:
nada menos de trinta, distribuídos em número igual, durante os três dias do
Festival.
Para minimamente fingir que preenchiam essa lacuna
impreenchível (dos trinta cantores e conjuntos musicais apenas actuaram durante
os três dias do festival a famosa cantora Melanie e o conjunto The Mustard and
Family), os organizadores recorreram à boa vontade de medíocres conjuntos
locais, que faziam muito ruído e pouca música. Isto para não falar na enorme
trovoada que caiu e que levou centenas de míseras tendas pelos ares e fez do
recinto do festival um tremendo lamaçal. Foram estes factos que levaram um
comentarista a declarar que no Festival de Rock de Power Ridge houve “muito
sexo e muitas drogas, mas não houve rock `n’ roll.”
De regresso de Nova Iorque, onde tinha ido passar o fim
de semana para ver, como de costume, uma série de filmes estrangeiros, um musical
à Broadway e rever o Metropolitan Museum of Art, decidi abandonar a
auto-estrada e meter-me por country roads, a fim de ir ver, por
curiosidade, o que estava acontecendo no festival de rock, tão apregoado na
rádio do meu Impala.
Passava um pouco das duas da tarde e faltavam ainda quase
três quilómetros para chegar à dita Power Ridge Ski Area (palco principal do
festival), a qual estava situada no meio de luxuosos bosques, à beira dum lago.
Não tendo tomado conhecimento das últimas notícias, notei, para espanto meu,
que a polícia tinha fechado a estrada ao trânsito. Estacionado o carro, pego
dum pequeno cajado e encaminho-me a pé para o local do festival de rock. Pelo
caminho vou encontrando pequenos grupos de jovens de ambos os sexos, mais
despidos que vestidos. À medida que vou passando por eles, dou-me conta de que praticamente
todos caminham com passo mais lento que o meu e de que vão visivelmente
trôpegos e curvados, e observo também que vão bebendo cerveja e outras bebidas
alcoólicas e fumando maconha. Gente pacífica e boa, cumprimenta-me e diz-me com
a maior naturalidade: − hey, man, would
you like a joint? – No, thanks – respondo eu invariavelmente.
E, vestido com os meus trajes de hippie de ocasião
(camisa de manga curta e calções azuis), continuo a caminhar em direcção ao
cenário do festival. De repente deparo com ele. Era uma enorme clareira,
disposta em suave declive, com um amplo palco de madeira erguido no fundo da
clareira, rodeada de um espesso arvoredo, a abrir no cimo para um lago de
consideráveis dimensões. E essa “enorme clareira” estava transformada num vasto
arraial em que se apinhavam dezenas de milhares de pessoas, com predomínio
absoluto de jovens de ambos os sexos. Uns em camisa, despeitolados, outros em
tronco nu, quase todos de jeans, artificialmente esburacadas e sarapintadas de
cores psicadélicas, ou em calções de ganga a esfiar-se; uns mais drogados e
alcoolizados que outros; muitos deles – e delas – entorpecidos e mal cheirosos;
quase todos sentados ou deitados, sem qualquer manifestação externa de prazer
ou de paixão, num estado de apatia e entorpecimento dos sentidos de causar dó e
repulsa, consumiam a música, as bebidas alcoólicas, o fumo da maconha, o LSD e
outras drogas e a famigerada “água eléctrica”, confeccionada à base de uma
grande variedade de drogas lançadas a esmo para dentro de barris de água, e
consumiam também o sono dos drogados.
Com a maior discrição possível e procurando aparentar
tanto quanto possível que eu era um hypie autêntico, não pude deixar de ouvir
da boca de alguns deles, tal como sucedera durante a caminhada dos três
quilómetros, coisas como estas, que tão bem se coadunavam com a ocasião e com o
ambiente: − hey, man, try a little: this
is heavy stuff. – No, thanks. – Please, call a doctor: my pal is having a bad
trip; − Hey, man, sit down and share
a joint with us. – Thanks: not now. − Hey,
man, have a drink: it makes you relax. – No, thank you very much.
Depois de ter observado, já parado, já a deambular em
passo lento, aquele inédito e patético panorama de fauna humana, reduzida ao
mais deplorável estado de degradação, encaminho-me para o lago, a fim de aí
poder purificar-me da visão tétrica e dos maus odores, a que por longo tempo
estivera exposto, e poder respirar ar mais fresco e mais puro e menos
contaminado pelo álcool, pela maconha e por outras drogas inomináveis (contaram
testemunhas oculares que o festival tinha sido invadido impunemente por mais de
setenta traficantes de drogas). E é aí, à beira do lago e no próprio lago, que
descubro vários jovens – elas e eles - completamente nus, uns a nadar e outros
a tomar banhos de sol e vários desinibidamente abraçados, a celebrar e a
brincar ao amor em público, sem quaisquer pruridos de pudor. Diante dos meus
olhos deslumbrados, surgia-me assim, em todo o seu esplendor, a Age of Aquarius, simbolizada pelas flowers girls e pela magia do kumbaya, entoado em vozes límpidas, com
o acompanhamento de guitarra, por jovens sentados e de mãos dadas, em estado de
alegria e de graça. Era como se estivesse perante um rito de passagem: do reino
das trevas transitara para o reino da luz. Parafraseando o Camões das
redondilhas “Sobre os rios que vão” (que os venerandos manes do Vate me perdoem
o atrevimento do símile neste ccontexto), era como se da “Babilónia
infernal” passasse para a “alta torre de Sião.”
Mas, como todas as visões transcendentes, concedidas aos
pobres mortais, também essa nascera marcada com o sinal da efemeridade. É que,
enquanto contemplava embevecido o espectáculo sancionado e epicamente cantado
pela Age of Aquarius, ouço algumas
moças, completamente nuas, a lamentar a ausência das câmaras de televisão.
Não fossem esses lamentos, a traduzir certa falta de
autenticidade, e à minha memória certamente teria aflorado uma breve visão do
paraíso terreal, parecida, mutatis
mutandis, com aquela que viria a presenciar anos mais tarde, exactamente em
1974, na abertura do filme italiano Pane e cioccolata. O que no fundo
significava que muita dessa gente tinha mais ou menos a mesma convicção
revolucionária, no campo dos costumes da tribo de então, que aquele meu colega
de doutoramento da Universidade de Wisconsin e aqueles meus alunos da
Universidade de Connecticut, no campo do pacifismo, quando faltavam às aulas
para protestar, sem qualquer convicção, em puro acto gratuito, contra a guerra
do Vietnam. Era interessante, para os efebos e les jeunes filles en fleur do festival de rock praticar um acto de
rebeldia, fazer uma pequena irreverência inconsequente, sem quaisquer
finalidades ulteriores? Pois vamos a isso, que a polícia não prende e os pais não vêem.
Depois de
ter passado umas três horas a fazer de hippie – por essa altura usava cabelo um
pouco comprido –, dirigi-me ao carro para continuar a viagem de regresso a
casa, localizada nesse tempo em Mansfield Apartments, em Storrs. Tinha apenas
andado uns metros, quando uma jovem e um jovem me pedem boleia. Obedecendo ao costume
do tempo, (o belo e saudoso tempo em
que todos, sorrindo, faziam mutuamente o sinal da paz com os dois dedos das
mãos e em que ninguém tinha medo de pedir boleia e de dar boleia), abro-lhes a
porta e pergunto-lhes para onde desejam ir. Que iam para Mansfield Center, a
uns quatro quilómetros de minha casa. Entram no carro e perguntam-me se tinha
visto o festival de rock. Que sim, mas apenas durante umas três horas –
respondo-lhes eu. − E tinha gostado? – Certamente, pois eu era uma pessoa
curiosa e gostava de conhecer coisas novas, diferentes, exóticas. E depois de
umas vagas digressões sobre alguns aspectos do malogrado festival de rock,
passou-se à discussão do nudismo. E dessa longa conversa recordo a conclusão a
que o moço chegou e com que a moça concordou plenamente: que o melhor de tudo,
nessa questão do nudismo, era vestir-se de modo a deixar algo para adivinhar,
em vez de mostrar logo tudo de uma vez. E a comprovar essa teoria, bastava
reparar na maneira como os meus jovens passageiros de ocasião trajavam naquela
tarde quente de Verão de 1970, de regresso da “Mini-Réplica do Woodstock em
Connecticut.”
António Cirurgião
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