impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 17 - ARTIE
SHAW
Fotografia de William Gottlieb (1947)
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Intrigante o trajecto de Artie Shaw,
para quem a vontade de mais e mais se equiparou a menos e menos. Alcançou tocar
a luz do sol mas não se encadeou, mesmo que dela tenha sentido a queimadura;
aborrecia a celebridade e desdenhava quem com ela se comprazia. Foi a singular
estrela do jazz que não quis amadurecer como uma supernova, de modo que
pendurou as botas em 1954 – ou melhor: fez do clarinete um candeeiro de
mesa-de-cabeceira, como ironizaria mais tarde, em resposta à curiosidade
jornalística. E nessa distância viveu 50 anos, até à sua morte em 2004.
O êxito que tantos porfiavam como a uma
miragem provou-o Artie Shaw como uma inerência fastidiosa desde que em 1938 o
seu arranjo de “Beguin the Beguine” incendiou radiofonicamente todos os
corações sensíveis da América. É concebível que esta facilidade em colher o que
outros se desunham por conseguir seja a marca do génio – Mozart versus Salieri?
– e que o génio se agaste por nada lhe ser desafiante. Disse-lhe um agente: “you’re the kind of guy who can
fall into a pile of shit and come up with a diamond.” Artie
Shaw deu o elogio por desentendido e amargurou-se com ele.
Os incómodos da fama perseguiram Artie
Shaw até na vida íntima, pródiga em factóides. Casou oito vezes, duas das quais
com vedetas de Hollywood. Mas de que vale experimentar os sonhos húmidos do
homem comum, se este se dirige a ele dizendo: "Can I shake the hand that
held Lana Turner's tit?" Integrou durante dois anos (45-46) a incomparável
caderneta de Ava Gardner, da qual se diz não lhe faltar nenhum cromo, mas o
matrimónio claudicou quando, confidenciou Shaw, quis iniciá-la na leitura de
Dostoievsky. Na versão fleumática de Gardner ele mandou-a bugiar e ela foi…
The Essential Artie Shaw
2005
Bluebird RCA / RVG - 69239
Artie
Shaw (clarinete, compositor, arranjador, maestro), Roy Eldridge, Henry
"Red" Allen Johnny Best (trompete), Jerry Jerome, Georgie Auld, Dick
Clark (saxofone tenor), George Arus, Vernon Brown, Ray Conniff (trombone), Dodo
Marmarosa, Johnny Guarnieri, Les Burness, Bob Kitsis (piano), Barney Kessel
(guitarra), Buddy Rich (bateria), Jud de Naut (contrabaixo), Harry Bluestone
(violino), Billie Holiday, Lena Horne, Helen Forrest, Leo Watson (voz), Hot
Lips Page (trompete, voz), Tony Pastor (saxofone tenor, voz).
[com a parte decisiva
da sua obra gravada antes da era do LP, Artie Shaw é hoje acessível através de
antologias. Esta, além de remasterizada com cuidado, recolhe as peças mais
importantes do clarinetista, atravessando todas as latitudes da sua carreira.]
Extrai-se desta inconstância amorosa um
padrão. Artie Shaw desfazia as formações ao atingirem o primor, com uma frieza
ou um descaso incomplacente, mesmo que em 1949 – um dos anos mais negros para organizar
uma big band – sob a sua batuta roçassem ombros músicos como Tadd Dameron,
George Russell, Gene Roland, Al Cohn, Zoot Zims, entre outros de igual quilate.
Teria feito história e voado bem alto esta banda se Shaw não lhe houvesse
cortado as asas aos primeiros adejos.
Mas sob a película de uma disposição blasé, Artie Shaw teve alguns
cometimentos invulgares. Participou no esforço da II Guerra Mundial fazendo uma
longa digressão com a sua orquestra pelo Pacífico, o que seria meramente
voluntarioso se não tivessem contactado com os horrores de Guadalcanal,
sobrevivido a raides aéreos e dormido em trincheiras lamacentas. Já em 1938
gravara “Any Old Time” com Billie Holiday, indo para “a estrada” com ela, numa
época em que os negros não podiam entrar nos hotéis pela porta da frente.
Entre 1937 e 1940 a revista “Metronome”
contou mais de 300 orquestras de swing, período em que Artie Shaw disputou com
Benny Goodman palmo a palmo a primazia no clarinete. Mas se a Goodman cabe a
glória de introduzir o jazz à selecta plateia do Carnegie Hall, se Duke
Ellington granjeava um respeito sem paralelo na comunidade musical e se Count
Basie fazia tremer o chão com o calibre do seu ritmo, a Artie Shaw há que
atribuir o mérito não despiciendo de ter popularizado o swing e de o ter
infundido nos lares e na cultura americana, como coisa simpática aos costumes.
Proeza notável, esta de esbater a vigiadíssima fronteira entre o jazz e o gosto
dominante, para quem, ao contrário, por exemplo, do sacarino e superficial
Glenn Miller, não alienou uma colcheia ou um compasso que fossem à vulgaridade.
Seja por misantropia ou por convicção,
sobreleva de Artie Shaw, e por consequência da sua música, uma sensação de integridade.
José Navarro de Andrade
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