Mais
de meia década antes de Hannah Arendt, Rebecca West capturou também algo de
singular acerca da essência e origem do mal nazi
Logo desde a publicação
de Eichmann em Jerusalém – primeiro
nas páginas da New Yorker e,
posteriormente, em livro – que a “banalidade do mal” do Obersturmbannführer das
SS desenhada nas palavras de Hannah Arendt, tal como a sua visão particular
sobre a cooperação de alguns dos líderes das comunidades judias com os Nazis,
fez cair sobre a autora uma tempestade tal que só a morte do presidente
Kennedy, uns meses depois, lhe veio dar algum espaço para respirar longe dos
holofotes da infâmia que os seus detractores sobre ela fizeram incidir.
Desde então, a recepção
deste ensaio de Arendt tem configurado aquilo a que Amos Elon, com particular acuidade,
chamou uma verdadeira guerra civil entre os intelectuais americanos e europeus.
Longe esmorecer, esta polémica continua viva, como o demonstra, por exemplo, a
ainda recente publicação de Eichmann Before Jerusalem, de Bettina Stangneth, um livro que, com um meticuloso
trabalho de pesquisa documental, consegue desferir golpes bem mais
significativos na construção do argumentário arendtiano do que o algo
parasitário e maioritariamente ineficaz The Eichmann Trial, de Deborah Lipstadt, uma das vozes críticas de Arendt com
mais divulgação.
Não querendo entrar,
tardiamente, na polémica em redor de Eichmann
em Jerusalém, importa realçar que, apesar de tudo, um detalhe da essência
do pensamento de Arendt sobre o Holocausto tem, no meio de toda esta convulsão
cultural e académica, passado largamente incompreendido, e que encerra uma das
principais e mais incisivas críticas que Hannah Arendt parece pretender dirigir
ao julgamento de Eichmann e ao decurso do processo. O processo de Eichmann,
segundo ela, falhou por completo em mostrar esse executante em concreto da
Solução Final como um inimigo da humanidade e não apenas um inimigo dos judeus.
E disso foi responsável, em grande medida, o arquitecto invisível desse
julgamento-espectáculo, David Ben-Gurion, o “Pai Fundador” do Estado de Israel,
ao pretender utilizar esse “momento único”, pela voz do Procurador Hausner (o
acusador público no processo), dentro de uma lógica de legitimação do Estado de
Israel como imposição redentora da Shoah.
Vem esta referência a
propósito da publicação, pela Relógio d’Água, de Estufa com Ciclâmenes, de Rebecca West, que reúne um ensaio
tripartido acerca dos julgamentos de Nuremberga, a parte central de The Train of Powder, originalmente
publicado também na New Yorker, uns
anos antes do arquicélebre ensaio de Arendt, e que, em parte, antecipa algumas das
observações da autora, nomeadamente no que toca a caracterização – e, talvez,
instrumentalização – profundamente política e simbólica dos julgamentos aos
Nazis pelos ignóbeis crimes perpetrados durante o Terceiro Reich.
Contudo, West não se
limita a capturar a singular utilização dos julgamentos e da culpa nacional
pelos crimes para a construção da identidade germânica no pós-guerra, mas explora
também a forma como, apesar de toda essa construção, a capacidade de sacrifício
perante o trabalho e a dedicação quase patológica à eficácia que, em parte,
veicularam a tanatopolítica nazi foram capazes de lhe sobreviver quase
incólumes. No desenvolvimento desta narrativa que a naturalidade germânica de
Arendt dificilmente lhe permitiria explorar, West consegue encapsular de forma
brilhante esta perplexidade na figura do jardineiro perneta de Nuremberga que,
árdua e dedicadamente, vendia cíclames a todo o contingente aliado.
Mais de uma década
antes do New Journalism, a prosa de
Rebecca West representa um dos momentos mais altos do jornalismo com qualidades
literárias, numa sugestão de imagens em que alguns, sem grande exagero,
esboçaram já uma comparação com a pintura de Ingres.
David Teles Pereira
(originalmente
publicado no jornal Sol; aqui
reproduzido com autorização amiga do David Teles Pereira – um abraço, David!)
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