37.
Não se sabe ao certo que carga
transportam os barcos de A Grande Onda
– se é que transportam alguma carga.
Alguns afirmam que os barcos levam o produto
de uma pescaria de bonitos, rumo ao mercado de peixe de Edo (Tóquio), onde aquela
espécie atingia preços astronómicos (cf. Timothy Clark, Hokusai’s Great Wave, Londres, The British Museum Press, 2011, p.
17, para quem os barcos estariam provavelmente a encaminhar-se ao navio-mãe para
transferir a carga que depois seria transportada rapidamente para Edo).
Por sua vez, Julyan H.E. Cartwright e
Hisami Nakamura, num estudo aprofundado de A
Grande Onda, não excluem tratar-se de um transporte de bonitos (para a
confecção de sashimi) e de atuns (para a feitura de sushi), que eram pescados
na Baía de Sagami durante as suas migrações de Primavera e de Outono e levados
nos barcos oshiokuri até Tóquio
(sobre os oshiokuri, cf. Notas sobre A Grande Onda – 31).
A questão é relevante seja para datar a
altura do ano em que teve lugar a dramática cena retratada por Hokusai (muito
provavelmente, as primeiras horas de uma manhã de Primavera), seja para
determinar a sua localização geográfica.
A este propósito, Cartwright e Nakamura
escrevem:
«In Hokusai's day, oshiokuri were licensed craft permitting them to pass a
checkpoint at Uraga, at the tip of Miura Peninsula between Sagami Bay and Tokyo
Bay, without control, so that their cargo should arrive at market as quickly as
possible. Once they left their home port, oshiokuri might not return for as
long as 10 days but would travel to and fro between a rendezvous point at sea
where they would meet the fishing boats and the fish market, for which purposes
the crew would carry a rice cooker and mushiro or rush
mats to eat and sleep in the oshiokuri. Owing to the perishable nature of the
cargo, speed was essential — the trip would take five hours with a tail wind
carrying 50 tuna, about three tons, from Misaki in Miura, 50 km south of Tokyo,
for example—for this reason, as we can observe, in these oshiokuri there are
eight scullers and two relief crew members per boat. The boats are seen heading
away from Tokyo. Have they been surprised by the waves on their way back from
Tokyo—they generally carried rice and miscellaneous goods on the return journey
— or have they been forced to come about to head into the waves while on their
way there? We can glimpse what might be some bagged cargo in the hold of one
boat; rice would of course have been bagged, but dried fish also might have
been placed inside a bag. Some oshiokuri even transported species such as squid
and mackerel live to the fish market, using a fish tank installed in the hold
that communicated with the sea; we cannot see any signs of such a tank in these
boats, though, and tuna and bonito are probably too large to have been carried
in this way. It is possible that what we view is not the cargo itself but mats
on which to place it, or even the bed mats or indeed the sails that oshiokuri
carried. If what we see is just empty bags or mats in the hold, the oshiokuri
may be heading to meet the fishing boats at a purchase point somewhere offshore
to collect their catch.»
Na verdade, alguns elementos parecem
contrariar a ideia de que os navios transportariam peixe. Ao observarmos o seu
interior, na nesga que Hokusai deixa entrever, nada há de muito concludente.
Deve,
todavia, ter-se presente um ponto a que Cartwright e Nakamura não dão o
merecido realce: a imagem de A Grande
Onda é extremamente estilizada e depurada nos seus elementos acessórios ou
adjacentes (o Fuji, os rostos dos marinheiros, o desenho das embarcações) por
forma a valorizar o essencial, a onda, a grande vaga.
Daí
que não tenha havido especial atenção aos pormenores no desenho do interior dos
oshiokuri, ainda que, como notam
Cartwright e Nakamura, seja seguro que, ao contrário do que por vezes se
praticava nas artes da pesca na região de Edo, os barcos não levavam tanques de
água salgada com animais vivos, geralmente chocos e cavalas.
Quanto
ao mais, tanto pode tratar-se de uma carga de bonitos e de atuns, prestes a ser
levada para junto da frota pesqueira, como podem ser sacos com arroz ou com
peixe seco, sendo até possível que não estejamos a ver carga alguma mas tão-só
os recipientes onde a mesma deveria ser colocada. O que observamos na imagem podem
ser, inclusivamente, as velas, sabendo-se que os oshiokuri tinham um mastro central, amovível, para navegar ao vento
quando este o permitisse.
Na gastronomia japonesa, o bonito ou katsuo (鰹) é
uma espécie particularmente apreciada, sendo pescada nos portos de Numazu,
Shimizu, Yaizu e Omaezaki, na Prefeitura de Shizuoka. É também apelidado katsu (na região de Tohoku), Honkatsuo (na Ilha Kyushu), Magatsuo (nas
ilhas Shikoku e Kyushu) e Suji (na Prefeitura de Yamaguchi).
No
Japão, é uma espécie pescada no início da Primavera (sendo então chamado sho gatsuo, «o primeiro bonito da
Primavera») ou no final do Outono (modori
gatsuo, «bonito de regresso no fim de Outono»).
Na
culinária, é servido cru, como sashimi, com ou sem pele, acompanhado
preferencialmente de molho de soja (shōyu)
misturado com raspas de alho, ou com wasabi
e um toque de limão e soja. Entre outras formas, é também servido ligeiramente
grelhado como sushi (para uma descrição mais pormenorizada, ver aqui,
por exemplo, ou aqui)
Numa
descrição simples, extraída de uma obra de divulgação, diz-se: «confundido por
vezes com o atum-serra, o bonito é parecido com o atum, mas pertence, na
verdade, à família da cavala. Tradicionalmente é pescado à cana, e não à rede,
o que poderia danificar a sua carne, e é um dos mais velozes nadadores do mar.
É consumido no sushi, e marinado ou levemente grelhado no sashimi. Seco e em
aparas, é usado na confecção do dashi, o caldo japonês básico. Regra geral, o
bonito é servido com gengibre ralado, que complementa o seu característico
sabor cheio e rico». Cada lombo de bonito, de carne rosada, dá origem a duas
grandes postas que são posteriormente cortadas em pequenos pedaços; para o
sushi e para o sashimi, a pele do katsuo
não é retirada, sendo os filetes levemente grelhados e depois submersos em água
fria: cf. Kimiko Barber e Hiroki Takemura, com fotografias de Ian O’Leary, Sushi, trad. portuguesa, Dorling
Kindersley-Civilização Editora, 2003, pp. 58-59, obra que informa ainda, sem
preocupações de rigor taxonómico, ser o bonito um «peixe migratório de tamanho
médio, muito comum nas águas quentes do Pacífico. Migra em Fevereiro para o
Norte, ao longo da costa japonesa, e surge na ementa dos bares de sushi de
Tóquio no início de Maio, assinalando o princípio do Verão.»
Num
guia mais completo sobre os peixes utilizados na confecção do sushi, o katsuo surge integrado nos «peixes de
Primavera» com a seguinte descrição: «During April and May, schools of bonito
(katsuo) migrating north from the southern reaches of the Japanese archipelago
acquire a thin layer of subcutaneous fat. These fish are known as hatsugatsuo (first bonito) and have
vivid red flesh, a mildly fatty quality, a subtle tartness, and even a whiff of
blood. Of all fish, good taste is hardest to pick in bonito: among the
specimens at market there will always be many that are plump and fresh, but totally
devoid of fat or flavor, astringent even. The very finest bonito tastes
wonderful seared and made into nigiri, the addition of yellow new ginger and
vivid green chives as condiments making it a visual treat to»: cf. Kazuo
Nagayma (texto) e Hiroshi Yoda (fotografias) Sushi | 鮨, Bilingual Edition, Tóquio, PIE International,
2011, p. 45.
Por sua vez, um artigo extenso artigo saído no The Japan Times da autoria de Makiko Itoh, intitulado «Katsuo, Japan’s ubiquitous tuna», e que aqui se seguirá de perto, explica que se, nos nossos dias, o peixe mais disputado é o maguro (atum, especialmente o bluefin, atum azul ou atum de aleta azul, Thunnus maccoyii, descrito aqui na Tábua das Espécies da FishBase), que atinge preços elevadíssimos Mercado de Peixe de Tsukiji, em Tóquio, a ponto de a espécie se encontrar ameaçada de extinção devido à pesca excessiva, a popularidade do atum azul ou maguro surgiu apenas no século XX; até então, a espécie mais apreciada e valorizada era o bonito ou katsuo.
Seco ou fermentado, o katsuo era transformado em katsuobushi, um dos ingredientes do daishi, o caldo básico da alimentação japonesa
(ver aqui). Era
também conservado num molho agridoce e comido como tsukudani, curado em sal, como shiokara;
envolto em farinha e frito e, mais frequentemente, comido cru ou quase cru. A
forma mais popular de ser cozinhado era como tataki, ligeiramente grelhado no exterior e com o interior cru,
sendo fatiado e comido como sashimi.
Há registos de que o katsuo já era servido na corte imperial
Yamato, no século III, e a sua valorização pelos japoneses ficou patente no
facto de o katsuo seco ou fermentado
ser uma das oferendas levadas aos santuários xintoístas. Não era, todavia, um
peixe reservado às elites, como o comprova o facto de, no Período Kamakura
(1192-1333), o monge Yoshida Kenkō
(1284-1350) ter dito em Tsurezuregusa,
uma colecção de ensaios redigidos entre 1330 e 1332, que até os pobres deitavam
fora as cabeças de bonito.
No
entanto, no Período Edo (1603-1867), a época de A Grande Onda de Katsushika
Hokusai, o bonito ou katsuo passou a
ser especialmente valorizado, em particular aquele que era apanhado no final da
Primavera ou no início do Verão (mais do que o do Outono), existindo até um
dito popular que afirmava: «Sou capaz de empenhar a minha mulher por uma posta hatsuo-gatsuo» («hatsuo-gatsuo», de
acordo com as regras haiku, era a
palavra que indica o início do Verão).
Descrito por Lineu em 1758, o Katsuwonus pelamis (código FAO: SKJ) é uma
espécie da classe dos actinoperígeos (actinopterygii),
da ordem dos perciformes (Percomorphi),
da família Scombridae, da subfamília Scombrinae, do género Katsuwonus. O seu
nome deriva do japonês katuwo ou katsuo (鰹) e tem
como designações comuns bonito, bonito-listrado, gaiado, atum-bonito ou atum-gaiado. Para uma informação
taxonómica mais completa, deve consultar-se o Integrated Taxonomic Information
System, onde o Katsuwonus pelamis figura
com o número de série 172401 (aqui).
Tem como sinónimos Euthynnus pelamis (Lineu,
1758), Katsuwonus vagans (Lesson,
1829), Scomber pelamys (Lineu, 1758), Scomber
pelamis (Lineu, 1758), Thynnus vagans (Lesson, 1829).
Em
diversas línguas, o Katsuwonus
pelamis tem os seguintes nomes: Skipjack tuna (inglês), Echter
bonito (alemão), Listado, bonito de
altura (castelhano), Bonite à ventre rayé (francês), Tonnetto striato (italiano), Tonijn, skipjack (neerlandês), Atum-bonito, gaiado (português), Bugstribet bonit (dinamarquês), Palamída, Iakérda (grego), Randatúnfiskur (islandês), segundo
informa Antal Vida no livro 365 Fish
(com ilustrações de Tamás Kótai, trad. castelhana, Barcelona, Tandem Verlag
GmbH-Vince Books, 2006, s/p.), acrescentando que o bonito se encontra nos mares
mais cálidos do mundo (sobretudo com temperaturas superiores a 20º C) e tem
especial predilecção por explorar as águas à superfície. Diz-se ainda que o bonito
é, provavelmente, a espécie de atum que se encontra com mais frequência, tendo
cada fêmea centenas de milhares de crias. O ritmo de crescimento é rápido e a
maturidade sexual é alcançada por volta dos três anos de idade, quando mede
cerca de 30 a 40 cm. O comprimento máximo é de 60 a 80 cm. Conclui-se dizendo
que são «uns belos peixes de cor azul-marinho, que têm merecidamente o nome de bonitos, como lhes chamam os pescadores
de várias partes do mundo».
Não
é certo, no entanto, que o nome bonito derive do português ou do castelhano,
línguas em que essa palavra significa «belo» ou «formoso», podendo ter a sua
origem na palavra árabe bainīth. Ewm castelhano, a palavra «bonito»,
usada para designar uma espécie de peixe, data de 1505, pelo menos. Já Antonio Pigafetta se
referia ao bonito, no relato que em 1525 publicou da sua viagem ao redor do
mundo (ver aqui);
e, na literatura portuguesa, nas páginas de Os Pescadores, de 1923, Raul
Brandão escreve: «Saltam do fundo da rede as pescadas de lombo preto, os bonitos, as raias, os capatões, e uma
toninha reluzente».
Além das
que atrás se referiram, o bonito tem muitas outras designações. Em castelhano, atún, atún de altura, barrilete,
barrilete listado, bonita, bonito, bonito de altura, bonito del Sur, bonito de
veintre rayado, bonitol, bonito listado, bonito oceánico, cachorreta,
cachureta, cachurreta, descargamento, lampo, listado, llampua, merma, palomida,
picosa, rayada. Em francês, bonite, bonite à ventre rayé, bonite folle, bonite ventre rayé,
bonitou, bounicou, listao, thonine à ventre rayé, ton rayé. Em inglês, skipjack tuna, oceanic bonito, oceanic
skipjack, skipjack, skipjack tuna, stripy.
É
encontrado à superfície e até 260 metros de profundidade e tem um tamanho médio
de 80 cm e um peso entre 8 a 10 quilogramas (o máximo encontrado foi um
exemplar com 110 cm; foram reportados um peso máximo de 34,5 quilogramas e uma
idade máxima de 12 anos, de acordo com a Fishbase,
informando a Wikipedia que o comprimento máximo registado foi 108 cm).
O
Katsuwonus pelamis caracteriza-se por
ter um corpo fusiforme, sem bexiga natatória, de secção arredondada e alongada,
sem escamas excepto ao longo da linha lateral. Tem uma coloração escura na zona
dorsal e prateada nos flancos inferiores e na barriga, apresentando quatro a
seis bandas longitudinais negras ou cinzento-escuras ao longo de cada flanco. As
barbatanas são possantes e longas, de coloração escura, com a primeira
barbatana dorsal nitidamente mais alta do que a segunda e as barbatanas
peitorais mais pequenas.
Representando
cerca de 40% das capturas mundiais de atum e tendo um valor comercial, o maior
mercado do bonito é o asiático e, em especial, o do Japão.
Que aula de ictiologia, culinária e economia pesqueira japonesas! Obrigado António. Deu-me uma imensa vontade de ir almoçar a um restaurante nipónico. E o nome Katsushika não tem nada a ver com "katsuo"? Será comedor de bonito?
ResponderEliminarObrigado, Rubem! Não, creio que não, mas vou averiguar.
ResponderEliminarUm abraço, Boa Páscoa,
António