terça-feira, 17 de março de 2020

Nos idos de março. O canto da cotovia.

 
 

 
 
Antes de J. Breton o caçar para título de uma pintura sua, O Canto da Cotovia já dava o nome a uma peça para piano solo alusiva ao mês de março, composta por Tchaikovsky (tocada aqui ao fundo por M. Pletnev, a recriar cristalino o “trrlit” do passarito).
Março, Canto da Cotovia, é parte das Estações, a coleção de 12 partituras mensais a que Piotr Ilich T. chamou, com algum desdém, “alimentares” por – horror! – lhe darem a ganhar aquilo com que comprava as batatas e outros géneros. Os românticos bem que aspiravam ao puro espírito, mas quanto a mim acho-as também bastante alimentícias a título espiritual.
E a cotovia bem que inspirou a pluma literária de muitos românticos. Já para não falar do Shakespeare de Romeu e Julieta, aqueles amantes que entraram ao engano pela noite escura crendo, ou querendo, ouvir lá fora o canto melodioso do rouxinol, em vez do canto não menos melodioso da cotovia. O som noturno de um, em lugar do som diurno e solar de outro.
A cotovia anuncia o dia, dizia o mesmo bardo noutro sítio – é só googlar o soneto: "The lark at break of day arising / From sullen earth, sings hymns at heaven's gate". 
É por ser mensageira da manhã e da claridade que esta ave quase invisível, de tamanho tão pequeno e voo tão elevado, é considerada de bom augúrio. Os idos de março da cotovia não são aziagos como os outros, os de César. Tivesse ele ligado aos avisos que recebeu para se precaver nesta altura e talvez não acabasse como acabou.
Pois a cotovia, alouette-gentille-alouette, voa imenso e imensa, a cantar. Voa ondulante, voa em espiral, voa ascendente e inverte em voo picado. Na época de acasalamento, o macho anda ali num cómico sobe-e-desce aéreo até se deixar estatelar no chão para ver se impressiona alguém.
A cotovia, em suma, é a frágil alegria de viver – a “asa a vencer o abismo azul” (puro Shelley, por sinal um romântico, lá está), “uma vertical do canto” que só a parte vibrante do nosso ser pode conhecer. Isto tão-pouco sou eu que o declaro, mas assino por baixo. Como assino por baixo outras sábias meditações que encontram ao virar da net-esquina:
"Existem apenas duas ou três histórias humanas e continuam a repetir-se tão ferozmente como se nunca tivessem acontecido antes, como se fossem cotovias que há milhares de anos não cessam de cantar as mesmas cinco notas."
Vamos ser insensatos e surdos ao canto da cotovia?
 
 
P. I. Tchaikovsky, “Les Saisons” op.37b: Mars, Chant de l'Alouette. Piano: Mikhail Pletnev. Quem quiser ouvir uma cotovia em ascensão, encontra também na net-esquina a de Vaughan Williams, The Lark Ascending, pelo violinista de ténis e crista levantada chamado Nigel Kennedy.
 

 
 
Manuela Ivone Cunha
 
 
 
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Muito obrigado pelo texto e pela musica. E, ja agora, parabéns por demonstrar que, apesar de tudo, continua a ser possivel usar o termo "idos" no seu verdadeiro e unico sentido, e não apenas para encher a boca com uma palavra rara.

    Boas

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