Duarte Belo, a arte fotográfica ou
uma poética da paisagem
Entrevista de José Eduardo Franco
Duarte
Belo é uma das mais destacadas figuras da geração emergente da cultura portuguesa
contemporânea, que tem praticado a fotografia como arte e como forma de
intervenção sociocultural. Os seus trabalhos têm tido visibilidade ampla, quer
através de exposições cuidadas, quer através de livros impressos de grande
qualidade, quer ainda através de um sítio na Internet que se tornou uma janela
em abertura progressiva para o mundo de Duarte Belo, convidando-nos a um novo
olhar sobre Portugal e a portugalidade. Talvez não seja impróprio definir
Duarte Belo como um poeta da fotografia e um pensador da imagem. De facto, as
suas fotos fazem pensar, sendo ao mesmo tempo acompanhadas por textos de autêntica
natureza filosófica em torno dos motivos fotografados. Com um estilo peculiar,
a sua obra marcará a história da fotografia e das artes visuais em Portugal.
fotografia: «7_Tronco de oliveira recolhido em Santa Bárbara de Nexe. Museu de Faro. 2005»
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1.
Como se foi desenvolvendo, ao longo do seu percurso de formação e de reflexão,
a paixão pela fotografia? Como define a Arte Fotográfica? A fotografia será
mais uma arte, uma técnica ou mesmo uma ciência?
Duarte Belo: A
fotografia começou para mim em 1982. Estava em Vila do Conde, onde viviam os
meus avós maternos, quando peguei numa Voigntlander Vito CD, da minha mãe, e
fui para a linha do mar fazer algumas fotografias a preto e branco. Já na
altura sentia um forte fascínio pela imagem fotográfica, pelo seu poder de
fixação das paisagens. A partir daí, não mais parei de fotografar e de
acompanhar esse desejo com a aprendizagem da técnica da fotografia, que na
altura fiz através de leituras, pois a informalidade com que me dedicava a este
fazer não me levou a procurar uma formação académica na área.
Em
1986 fui estudar arquitetura para o Porto, sem nunca ter abandonado a
fotografia, a que me ia dedicando com uma intensidade cada vez maior. Foi pela
formação em arquitetura que apreendi e aprofundei o olhar sobre a paisagem e
sobre a própria arquitetura. A fotografia era a forma de registar o fascínio
pelos lugares, pela sua extraordinária diversidade, pelo modo como os humanos
vão construindo um território específico.
Quatro
anos mais tarde, em 1986, começo a percorrer Portugal. Nesse verão desço a pé, com um grupo de amigos, o rio
Guadiana, entre Serpa e Mértola. Foi a viagem inaugural dos percursos por
Portugal, que não mais abandonaria. Só mais tarde, já em contexto de projetos
concretos, viria a tornar sistemático o registo do espaço português. Voltava
ocasionalmente aos lugares da minha infância, as casas e os lugares que habitei
com os meus pais e com os meus irmãos. Era o regresso a Vila do Conde, era a
praia da Consolação, era a casa de Queluz. Era a fixação de um universo que eu
próprio habitava e que me levaria por um caminho de expressão paralelo ao
levantamento fotográfico do património cultural e natural, em sítio, de
Portugal.
Não
é fácil definir o que é a Arte Fotográfica, nem creio que seja possível definir
Arte. Há uma multiplicidade de fazeres, de olhares, de interpretações que
tornam essa definição fugidia. Arte é um conceito que flui no tempo; a
expressão e ambiguidade dos fazeres humanos é uma constância desde as mais
remotas pinturas inscritas pelo homem paleolítico nas paredes das cavernas.
Sem
dúvida que a fotografia é uma arte, uma técnica, e um poderoso meio de registo
ciêntífico. Talvez não a considere uma ciência, como o são as ciências exatas,
que procuram formular através de expressões matemáticas os princípios que regem
a vida, a matéria ou os movimentos celestes. A fotografia coloca-se numa margem
de pertença a muitos fazeres humanos. Ela veicula realidade, mas também a
interpretação do olhar inquieto e reflexo de uma consciência que se interroga a
si própria. Na ausência de muitas respostas que nos colocamos, num universo de
conhecimento que se torna cada vez mais complexo, à medida que se vão
desvendando alguns dos seus segredos, a fotografia, com a plasticidade da sua
linguagem, responde com a singularidade do olhar dos seus operadores. Há a
transformação dessas interrogações em matéria visível. A fotografia intui o
futuro.
2.
Tem procurado afirmar a fotografia como uma forma privilegiada de criação, mas
também de intervenção e de reflexão intelectual. Entende que a fotografia
sobreviverá nesta nossa era de crescente tecnicização do Cosmos, em que se
desenvolve e se democratiza uma tecnologia que permite obter e disponibilizar
momentaneamente registos de imagens animadas e hiperanimadas? Qual o futuro e o
lugar a fotografia no universo das artes e das ciências humanas?
Duarte Belo: No
meio de tantos discursos catastrofistas, creio que o papel da fotografia não
está posto em causa, não se vislumbra o seu fim. O livro já foi várias vezes
dado como condenado a um desaparecimento breve, suplantado por dispositivos
eletrónicos, mas o que aconteceu foi o contrário: uma procura crescente desse
suporte. A fotografia não só revolucionou a leitura que fazemos do mundo
envolvente, condicionando muitos outros fazeres, como a pintura e a gravura,
como originou algo de absolutamente novo no seu tempo: a criação de uma
realidade autónoma que emanava das imagens. Houve um universo de pessoas,
acontecimentos, lugares, que passaram a ser observados de forma intermediada. A
fotografia cria uma realidade própria que se desvincula daquilo que ela
representa. Tal como a cidade, que se desenvolve definitivamente a partir da
Revolução Industrial, a fotografia, durante esse período, torna o nosso mundo
progressivamente mais complexo. Este processo ainda não terminou e o advento da
imagem digital reafirma inequivocamente o poder da imagem fotográfica na
sociedade contemporânea.
A
fixação do espaço e do tempo é como a imortalização de um momento, a que
podemos regressar indefinidamente. É este um dos maiores poderes da imagem
fotográfica. A qualidade de fixação do tempo que tem a imagem fotográfica não
pode comparar-se ao cinema, à imagem animada. Esta é talvez a sua maior
singularidade. A leitura da imagem em movimento exige demora por parte de quem
a lê, a fotografia pode ser lida num ápice de segundo. Há uma fixação do
espaço-tempo, uma relação de proximidade que estabelece connosco, que não é
acessível ao cinema. O cinema é narrativa, é tempo longo e contínuo, a
fotografia é fragmento, tempo para sempre parado, leitura do nosso próprio
tempo, tempo humano.
3.
De algum modo, tem investido muito na criação/produção fotográfica em torno de
motivos ligados ao património natural e à herança cultural e arquitetónica
portuguesa. O que o motiva? Pretende fazer uma espécie de história da cultura
portuguesa pela fotografia? Será que pratica a fotografia como uma espécie de
redenção da nossa identidade? Como interliga Fotografia, Filosofia, Literatura
e História?
Duarte Belo: O
que me motiva é um forte desejo de representação do espaço português. Quero
apenas registar o fascínio por um caminhar humano que, de uma forma por vezes
tão clara, se encontra no território hoje Portugal desde o paleolítico, desde a
chegada das primeiras comunidades humanas, até ao tempo atual. De alguma forma
gostava que o meu trabalho pudesse constituir uma referência para uma leitura
do espaço português no tempo presente. O que me move é a terra e a tentativa do
entendimento do próprio gesto de fotografar, do processo criativo de uma
maneira geral, da fuga que ele representa à noção de passagem do tempo. Num
país em que o Minho é tão diferente do Algarve, por exemplo – estando estas
duas regiões muito mais próximas, em termos de identidade, da Galiza e da
Andaluzia, respetivamente – tenho uma enorme dificuldade em definir a
identidade nacional, talvez não tanta em definir a identidade regional.
Fotografia,
Filosofia, Literatura, História. Há, no meu entender, uma questão muito
importante para a reflexão sobre os vários campos disciplinares. Como se liga
hoje o saber erudito, expresso sobretudo pela palavra, pelas expressões de
representação espacial, pela imagem, em variados suportes, pelo som, com a
realidade visível, com o objeto da fotografia?
Creio
que um dos maiores desafios do conhecimento contemporâneo é a forma como se
poderão ligar disciplinas aparentemente e historicamente isoladas. Uma outra
questão não menos importante é a da comunicação da informação. Num universo de
saber cada vez mais denso, complexo e quase impenetrável, como se poderá tornar
acessível esse mesmo conhecimento a várias
áreas muito diferenciadas entre si e como poderá ser divulgada, de forma tão
simples quanto possível, essa mensagem para um público vasto? Talvez estejamos
numa fase do desenvolvimento científico e social em que urge comunicar, sair de
campos relativamente fechados, para partilhar os saberes e as metodologias de
investigação díspares com a expressão artística, que frequentemente opera num
mundo que parecerá especulativo, mas que, não raras vezes, representa a
antevisão de um futuro próximo.
As
fotografias podem ser uma viagem pela integração dos fragmentos dispersos de
uma existência, pela negação da eternidade, pela afirmação do sentido da
construção da cidade dos humanos, síntese maior da adaptação de uma espécie
que, ao longo de milhões de anos de evolução, desenvolveu a consciência de si,
criou o seu espaço e poderosas ferramentas para a leitura da invisível e
inacessível realidade do infinitamente pequeno mundo quântico e do incomensuravelmente
distante, representado por imponderáveis pontos luminosos na escuridão gelada.
4.
Podemos defini-lo como um poeta da paisagem utilizando “a escrita da
fotografia”? Revê-se neste perfil? Tem alguma corrente estética de referência
onde se inscreva? Como definiria o seu modo de praticar a fotografia? É uma
arte à parte? Qual o seu lugar na
História da Arte?
Duarte
Belo: Penso
ser importante, num contexto de comunicação, escrita ou visual, procurar
elementos expressivos que enquadrem a forma da mensagem, reflexo de um conceito
que se quer partilhar. Algum carácter entendido como poético que possa estar presente nas minhas fotografias
terá de ser adjetivado por leitores que
assim o interpretem. Talvez tenha começado com esse intuito, mas cada vez mais
me senti seduzido pela fotografia como documento, sem, no entanto, ter qualquer
pretensão jornalística ou ter procurado uma fotografia objetiva. Procurava o
registo de um fascínio pelos lugares, por uma cultura, de alguma forma pelo
entendimento da vida. Hoje gosto de “navegar” entre a arte e o documento –
penso, aliás que essa distinção é cada vez mais difícil de definir. É
importante elaborar objetos de expressão, como uma fotografia ou conjuntos de
fotografias que comuniquem alguma coisa a alguém, que estimulem a reflexão
sobre aquilo que se pretende mostrar. Mais do que uma bela imagem para pôr na
parede, há a fixação de um certo sentido da relação do Homem com as paisagens,
sejam ela naturais, rurais ou urbanas.
Se
pegarmos num bom livro sobre o estado da fotografia contemporânea, observamos uma extraordinária diversidade de
abordagens possíveis. Não será fácil situar o nosso próprio trabalho numa
corrente estética determinada, nunca procurei esse enquadramento. Naquilo que
gostaria que fosse o meu trabalho, a fotografia é cada vez mais um elemento que
dialoga com outros, como seja o texto, cada vez mais presente, ou a organização
de uma narrativa que tento conferir aos meus trabalhos. Entendo a fotografia
como parte integrante de um processo de comunicação, de contaminação benéfica,
de partilha de leituras da realidade, por um lado, e, por outro, a construção de um contido universo de saber que pode albergar
uma determinada coerência.
O
lugar da fotografia na História da Arte tem vindo a adquirir um significado
cada vez maior, particularmente nas últimas décadas. Pelas questões que coloca
na relação que estabelece com o fotografado, pelo seu significado ambíguo e
plástico, pela acessibilidade da sua expressão, a fotografia é parte integrante
da Arte contemporânea. Ainda há resquícios
de um debate sobre o que é ou não é Arte, mas creio que se está a assistir ao
esbatimento das considerações sobre todas as classificações ou categorias de
trabalhos criativos. Os diversos fazeres vão-se assumindo na sua singularidade.
Este é um desafio estimulante da contemporaneidade: como vamos evitar
perdermo-nos neste universo em que a informação circula a velocidades antes
impossíveis de imaginar? A Arte pode perder a sua própria materialidade e
passar a ser um conceito de sobrevivência, de sanidade mental, de lucidez, de
fascínio perante um mundo em permanente construção, refletindo sobre a erosão
constante de todos os saberes.
5.
Como avalia o estado da prática da fotografia em Portugal? Há novos talentos? Como
são formados e valorizados? Há formação de qualidade no campo da fotografia?
Duarte Belo: Há
com certeza novos talentos na fotografia. A fotografia não foge à regra de uma
exigência cada vez maior, dada a também maior competitividade que existe dentro
do mercado e das várias práticas que, grosso modo, se dividem entre o
documental e fotografia plástica. Mas, como atrás referi, vai sendo cada vez
mais difícil estabelecer uma fronteira clara entre estas duas atitudes. Há
gente a trabalhar com grande rigor, determinação e profissionalismo. Creio também
que há formação de qualidade, embora não seja uma área em que eu tenha um
conhecimento aprofundado. Estive recentemente a participar numa iniciativa
enquadrada no Mestrado em Fotografia do Instituto Politécnico de Tomar e fiquei
muito bem impressionado com a qualidade do trabalho que lá está a ser
desenvolvido.
No que diz respeito à forma como os
jovens talentos são valorizados, a questão já é muito subjetiva, numa situação
que não será muito diferente daquilo que acontece noutras áreas criativas.
Creio ser muito importante não esmorecer se o nosso trabalho não for
reconhecido como gostaríamos. Há que acreditar naquilo que fazemos e,
paulatinamente, sabermos construir a nossa própria “casa”, o nosso espaço, com
os pés bem assentes na terra, mas com a capacidade de nos reinventarmos em
permanência, quanto mais não seja para nos adaptarmos a um mundo constantemente
em mudança.
A
fotografia não tem a atenção mediática que têm outras áreas de conhecimento,
por isso passa mais despercebida. Também não goza da força corporativa de
outras áreas da comunicação. Continua a ser entendida, muitas vezes, como a
ilustração de alguma coisa que acompanha um texto. Creio haver um desfasamento
entre a sua real importância no contexto das sociedades contemporâneas e a
forma como a mesma é compreendida. A fotografia será um dia interpretada como
meio construtor de uma identidade humana em que vem participando desde o
primeiro disparo. A afirmação da sua autonomia talvez se integre num tempo
vindouro, mais liberto dos atuais cânones de comunicação. O seu crescimento
depende de uma estrutura mais bem definida, de maior organização, de operadores
de elevado rigor e profissionalismo, de um diálogo aberto com outros ramos
criativos e científicos.
Entrevista
de José Eduardo Franco, publicada no nº 5 da revista Letras com Vida.
Agradece-se
ao entrevistador e ao entrevistado a autorização para a sua publicação no
Malomil.
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