Simenon, Maigret e o Judiciário: Uma Relação Persistente [1]
Tenho que começar com uma confissão, que poderá,
pelo menos, servir de atenuante: escrever sobre este tema, é um sonho
concretizado porquanto há muitos anos sou leitor compulsivo dos livros de
Simenon. Assim, tive hipótese de passar ao papel alguma modesta reflexão
produzida em seu redor e de exorcizar a sua presença e influência, neste tema,
agora mais agiornatto, pela
comemoração do centenário do nascimento de Georges Simenon(1903-1989) [2].
Esgotar no espaço de uma conferência uma temática
como esta é uma tentativa impossível. Daí que a par de alguma informação geral
pretendamos transmitir, a quem não o tem já, o gosto por uma das obras mais
vastas e singulares da literatura do século XX, tanto mais que se trata de uma
obra, como vamos ver, com um interesse muito particular para a polícia e para o
universo judiciário.
A-) O Estilo e o Ambiente Simenon: sua
concretização em Maigret
Nascido em Liège, na Bélgica, a 12 de Fevereiro
de 1903, Georges Simenon representa e integra, para a grande maioria dos seus
leitores, a literatura francesa. Fenómeno de apropriação duvidoso, uma vez que
Simenon recusou formalmente a nacionalidade francesa pois não se considerava de
nenhuma nacionalidade. Dizia ele: “Vivo na Suíça com um passaporte belga. A
minha mãe é meia holandesa, meia alemã, meu pai meio francês, meio valão. Que
serei eu?”[3].
Aliás, Simenon só viveu vinte cinco anos em França dos seus oitenta e seis de
vida. Os outros foram passados dezanove na Bélgica, dez nos Estados Unidos e
trinta e três na Suiça onde veio a falecer.
Escritor de raro sucesso, com 550 milhões de
exemplares, traduzidos em 55 línguas, Simenon produziu, a um ritmo verdadeiramente
vertiginoso, todo o género de romances, do policial ao sentimental passando
pelas aventuras. Os seus escritos de juventude estimam-se em cerca de 200
romances, um milhar de contos e novelas, escritos sob 27 pseudónimos
diferentes, entre 1924 e 1934. A eles se somam 212 volumes (romances ou
novelas) editados entre 1931 e 1972, contendo 84 com Maigret[4].
Dizer que existe um estilo Simenon é uma pura
evidência. Defini-lo não é, porém, fácil. De feitura rápida e pouco corrigida
(o primeiro capítulo é escrito em três horas, os seguintes em duas, à razão de
um capítulo por dia) os seus romances aproximam-se do formato reportagem que
praticou durante os largos anos de jornalismo. Rejeitando os artifícios da grande literatura, Simenon procurava a
fluidez e o despojamento, de forma a poder entrar mais facilmente nos seus
personagens principais. Achava que para escrever um romance precisava de entrar
na pele do seu personagem central. Depois, escreve-o quase com o subconsciente,
como um verdadeiro médium, não sabendo
onde o personagem o vai conduzir, até à consumação da história, no último
capítulo, num estado de tensão crescente que lhe provocava enorme fatiga física
e perder até cinco quilos por romance[5].
A quem lhe perguntava quem eram as personagens
dos seus romances respondia, com Balzac[6],
que era “qualquer pessoa da rua, mas que vai até às profundezas do seu ser”. A
perturbação que salta dos seus heróis, ou melhor dos seus anti-heróis, é a
terrível sensação que podíamos ser nós
e que, no fundo, todos somos relativamente parecidos. As paixões e os
sentimentos são-nos comuns, em maior ou menor grau, sendo pouca coisa, ou o
acaso, que nos precipita num sentido ou no sentido contrário.
A sua profunda curiosidade pelo homem leva-o a
procurar mostrá-lo tal como ele é verdadeiramente, sem artifícios, com as suas
vulnerabilidades patentes, perante a vida.
O crime, descrito por Simenon, podia ter sido
cometido pelo leitor ou por alguém por este facilmente identificável na vida de
todos os dias. A sua concretização dá-se através da passagem de uma linha
invisível que todos temos e que o autor se vai encarregar de mostrar[7].
O que fascina nos livros de Simenon “é a sua implacável descrição do «plano
inclinado» das existências, a passagem insensível da normalidade satisfeita à
ruína, à impotência, à derrota”[8].
Uma palavra está estreitamente ligada ao estilo
Simenon e essa palavra é atmosfera. Na verdade, muito rapidamente, somos
transportados para um universo tão particular quanto real porque ligado às
pessoas que vemos todos os dias na rua. O lado oculto, o lado cinzento de cada
indivíduo é o espaço onde a sua escrita entra. Por isso, nos seus romances,
chove. Chove muito, uma chuva triste “como uma viuvez”[9],
que cai sabendo que não volta e que molha, traduzindo, nas palavras de Jean d’
Ormesson[10],
“não somente um clima mas uma desagregação” numa verdadeira “descida, num
mergulho nas fissuras de um mundo que se desfaz”.
A solidão,
a marginalidade, a culpa, a evasão, a rejeição são tudo temas simoneanos,
fazendo com que a sua obra “longe de ser um tratado de virtudes, seja antes uma
espécie de tratado de vícios”.
O polícia, para Simenon, é um verdadeiro perscrutador da alma das pessoas
com quem lida. Para isso tem que proceder á sua própria transfiguração, deixar
para trás o seu mundo para entrar no mundo particular onde o crime ocorreu,
penetrando na pele e na cabeça dos intervenientes.
Pode dizer-se que Maigret representa uma
concretização perfeita do estilo e do ambiente Simenon. Com Maigret, nascido em
1931, inaugura-se um novo género policial[11].
Vai interessar menos a identidade do culpado do que saber como é o culpado e quem é
verdadeiramente o culpado. Aliás,
Maigret não acredita propriamente em culpados.
Na sua perspectiva, o ser humano está tão mal armado para enfrentar a vida que
supô-lo culpado é fazer dele um super-homem. Assim, a verdadeira parada dos
seus livros não é o enigma policial propriamente dito mas as pessoas que o
envolvem. O criminoso interessa-lhe mais que o crime.
De fundo republicano, a nação é todo o mundo, Maigret vai afastar-se do mecanismo de
observação/dedução que caracteriza um Sherlock Holmes[12]
ou da rudeza de Sam Spade não se fazendo notar pela sua superioridade de classe
ou acção. Não é um privado mas sim um
funcionário do Estado, com uma relação algo ambivalente com o seu patrão, na
qual o leitor se reconhece com facilidade. Maigret é um verdadeiro anti-Poirot,
se quisermos fazer um contraponto com o célebre detective belga, celebrizado
por Agatha Christie ao longo de mais de trinta de livros. Na verdade, Poirot
acha que para descobrir um culpado é suficiente sentar-se num sofá e reflectir
utilizando as célebres células cinzentas
do seu cérebro. O seu método é orientado pelo amor da ordem, da simetria e das
linhas direitas que o fazem detectar qualquer irregularidade no todo coerente.
Usa a técnica do puzzle agrupando os
detalhes e os pequenos factos. A «ordem» e o «método» eram os deuses de Poirot[13],
ordenar os factos com clareza e precisão, “o seu génio residia na capacidade de
ver aquilo que todos tinham visto e formular novos padrões e ligações”[14].
Maigret tem outra maneira de trabalhar. Tem um método mas, curiosamente,
proclama a sua ausência de método[15].
Desconfia das deduções brilhantes e da psicologia livresca. Confia
basicamente no seu instinto e na sua capacidade de entrar nos ambientes, na sua
capacidade de os cheirar. E quando esse método vivencial é acompanhado de
fricassé de vitela ou linguiça em puré, convenientemente regados com cerveja ou
beaujolais, é impossível não ficarmos seduzidos e maravilhados.
A actividade policial é para Maigret a actividade
de conhecer, de sentir as pessoas, de lhes entrar na cabeça[16].
O seu modus
faciendi pode ser dividido em dois momentos.
Na primeira parte dos inquéritos, Maigret
mergulha nos ambientes, regista a informação e interioriza-a[17].
Precisa, para isso, de entrar no seu novo meio com os sentidos completamente
abertos, com as inerentes resistências em ir a casa e levar a sua vida normal.
Nesse processo, o seu cérebro é uma esponja destinada a absorver tudo o que
envolveu o crime, nomeadamente, compreender a linguagem e a mentalidade dos
seus protagonistas.
Na segunda parte, os personagens passam a viver
consigo deixando de ser entidades para passarem a ser homens e a, dessa forma,
fazerem sentido. E é nessa fase, quando começa a ver por dentro, que, com
um pequeno esforço, tudo adquire contornos definidos e a verdade surge quase
por si própria. Para Maigret, no fundo, a verdade é sempre óbvia. Nós é que não
vemos, ou raramente vemos, o óbvio porque andamos sempre envoltos em mantos de
obscuridade. Portanto, para descobrir, há apenas que ganhar a perspectiva correcta...
Talvez já se tenham apercebido que Maigret não é um investigador
completamente normal. Na verdade, não lhe chega identificar um culpado, a sua
meta é a sua compreensão integral.
Esta ambição percebe-se melhor se pensarmos na
sua ambição profissional, quando jovem: ser um “consertador de destinos”,
«racomodeur de destinées». E curiosamente, como ele diz, “na sua carreira de
polícia, tinha-lhe acontecido várias vezes recolocar no seu verdadeiro lugar
pessoas que os azares da vida tinham encarreirado na direcção errada”. Na sua
figura de polícia intersectam-se o médico, o padre e o advogado, ou seja, o que
trata, o que ouve e o que aconselha.
Podemos perceber que, com este entendimento, as
relações do comissário Maigret com o Poder Judicial, que especialmente nos
interessam, nem sempre tenham sido fáceis.
É o que
vamos analisar de seguida.
B-) Simenon, Maigret e o Poder Judicial
Diz-se que Balzac, mais uma vez, descreveu, na totalidade da sua obra,
cinquenta e oito magistrados. Da mesma forma, Simenon pinta ao longo dos seus
livros uma galeria vasta e diversificada de figuras integrantes do Poder
Judicial. Algumas surgem através duma breve pincelada, outras são personagens
centrais de um romance particular e outras ainda surgem duma forma constante, a
merecer referências particulares e detidas.
Das primeiras podemos dar como exemplo
Clairfontaine de Lagny “um juiz que passava por um dos magistrados mais
desagradáveis d’Epernay” e que “seguro das suas partículas, limpava as suas
lunetas,...”[18].
Das segundas podemos analisar o caso de Xavier
Lhomond no fascinante livro que é Les
Témoins, de 1954. Trata-se de um presidente de colectivo (cour d’assises) que vai julgar um homem
de trinta e dois anos acusado de matar a mulher. É um juiz engripado e fatigado
(cá está o clima) que vai presidir ao julgamento onde, a pouco e pouco, a sua
própria vida vai intersectar-se com o crime em discussão. Com uma vida pessoal
marcada pela incomunicabilidade total com a sua mulher, depois de uma
arrebatadora paixão desta por um estudante de direito muito mais novo, Lhomond
apercebe-se, a pouco e pouco, que poderia estar no lugar do acusado. Assistimos
então a um processo de extraordinária humanização e fragilização humana do
julgador que em vez de julgar passa a compreender e a abordar o processo pelo
prisma da sua própria vida[19].
Inevitavelmente o juiz que, como todos os seus colegas, gostava de casos nítidos,
passa a colocar-se no lugar do réu levando, com a sua condução da audiência, à
sua absolvição.
Nesta segunda vertente, temos igualmente o
presidente das assises Bernerie,
noutro notável romance sobre o poder judicial, intitulado Maigret aux assises, de 1960. Simenon descreve Bernerie como um
juiz magro “com ar de santo de vitral”, possuindo um caracter minucioso e
detalhado que o fazia estudar os
dossiers em casa até às duas da manhã, sendo
“talvez o mais apaixonado na procura da verdade”. Maigret e Bernerie
conheciam-se bem, de algumas conversas de corredor, mas também “de trinta
interrogatórios a que um tinha sujeitado o outro. Desse conhecimento não
resultava, porém, nenhuma amizade ou traço pois “cada um desempenhava o seu
papel como se fossem desconhecidos, oficiantes de uma cerimónia tão antiga e
ritual como a missa”. Pertencente “à minoria de magistrados que aplicava o
código de processo penal à letra” Bernerie “não era daqueles juizes que tomavam
notas ou que, no decorrer da audiência, faziam o correio. Também não dormitava
e o seu olhar ia sem cessar da testemunha ao acusado, com, por vezes, uma breve
vista de olhos pelos jurados”. Nesta impressionante descrição, Simenon dá-nos,
pelo retrato da minoria, uma cruel imagem da maioria... Mas, não nos iludamos,
mesmo Bernerie vivia numa ilha à parte, na teoria, “num universo
despersonalizado, onde as palavras de todos os dias não parecem contar, onde os
factos mais quotidianos se traduzem por fórmulas herméticas” por isso “sabia
que não dava, da realidade senão um reflexo sem vida, esquemático. Tudo o que
acabava de dizer era verdade, mas ele não tinha feito sentir o peso das coisas,
a sua densidade, o seu estremecimento, o seu cheiro.”[20]
Neste livro pressente-se com nitidez a visão que
Simenon transmite do judiciário: um universo angustiante onde os seres humanos
se vêem reduzidos a caricaturas de si próprios, seres esquematizados,
submergidos pelas formalidades e pelos regulamentos.
Neste quadro, a relação entre o intuitivo Maigret
e o judicial não podia ser obviamente pacifica. Maigret prefere compreender a
julgar e Simenon considerava o homem como um ser desarmado para resistir aos
condicionalismos do seu meio, da sua família ou das suas predisposições
genéticas. Pensava, em consonância, que os juizes deviam abdicar a favor de
psiquiatras, os únicos em posição de julgar.
Com um lugar central na galeria de juizes
simonianos está o juiz de instrução Ernest Coméliau. Com presença forte ou
episódica em dezenas de romances, Coméliau é a antítese de Maigret servindo
para mostrar a diferença entre aquilo que Simenon acha ser a polícia e o
judicial.
De feitio nervoso e agressivo mas conformista e avesso a complicações,
Coméliau pertence a uma burguesia instalada (filho e neto de magistrado) com
relações com o poder (o irmão da mulher foi duas ou três vezes ministro e o seu
tio embaixador na Finlândia) com o qual mantêm uma relação de preservação de
imagem e subserviência.
Maigret não o considera “um mau homem” apesar de
o terem chamado o seu “inimigo intimo”. Aplicador “à letra da lei”, curiosa
expressão, Maigret critica-lhe sobretudo o facto de não ter dúvidas: “Penso que
ele nunca conheceu a dúvida. Serenamente, ele separa os bons dos maus, incapaz
de imaginar que as pessoas se possam encontrar entre os dois campos”. Maigret,
pelo contrário, dúvida de tudo e não vira as costas a nenhuma hipótese. A sua
dúvida é de tal forma existencial que, quando lhe perguntam, passados vinte
anos, se um executado criminoso era culpado, Maigret tem esta resposta
peremptoriamente céptica: “Há vinte anos, quando ainda era novo na profissão,
talvez tivesse respondido sim sem hesitar. Depois aprendi que tudo era
possível, mesmo o inverosímil”[21].
Coméliau, em contrapartida, é um homem de
princípios rígidos e tabus sagrados, achando-o Maigret incapaz de aplicar a sua
inteligência a certas realidades porquanto “não se conseguia impedir de tudo
julgar em virtude dos seus princípios e dos seus tabus”. Com esta maneira de
ser, Coméliau não pode ser um apreciador dos métodos de Maigret “tendo-o sempre
debaixo de olho, preparado para lhe assacar a responsabilidade pelo menor erro
ou a menor imprudência”.
A relação entre os dois é de permanente tensão
física e intelectual. Exemplo desse desafio físico é o facto do comissário
Maigret ser a única pessoa que se permite fumar no gabinete de Coméliau
obrigando este a ir abrir ostensivamente a janela. Exemplo de tensão na relação
de trabalho temos a constante necessidade de Maigret se subalternizar, de forma
astuciosa, quando quer obter algum efeito na investigação: “Carrego sozinho a
necessidade do que possa acontecer. Sou apenas um polícia. Vós sois um
magistrado”. Tendo-se a si próprio em alta consideração, as palavras do
comissário “deram prazer a Coméliau que, de repente, foi mais cuidadoso com a
sua atitude”.
Simenon apresenta Coméliau como um escravo dos
seus preconceitos de classe “era um homem
do seu mundo, escravo dos seus costumes, das suas regras de vida e da sua
linguagem. Poderia acreditar-se que a sua experiencia quotidiana, no Palácio da
Justiça, lhe daria uma concepção diferente da humanidade, mas isso não
acontecia, era invariavelmente o ponto de vista do seu meio que acabava por o
transportar”.
Como se vê tudo, ou quase tudo, opõe estes dois
homens e estes dois universos que têm de trabalhar juntos: “Os homens da P.J.
vivem por assim dizer na intimidade permanente e quase física com o crime,
avaliando por instinto”, os magistrados “o seu género de vida, depois de
estudos puramente teóricos, não os põe em contacto, senão no seu gabinete, com
aqueles que devem perseguir em nome da sociedade”[22].
Ao distanciamento técnico e social de Coméliau, Maigret contrapõe a aproximação
e a visão por dentro dos intervenientes de forma a poder absorver-lhes os
humores, o modo de vida e a mentalidade.
Curiosamente esta perspectiva geral de Coméliau é
matizada noutro livro de Simenon, intitulado Lettre à mon juge, de 1946. Neste romance um respeitável médico
mata a sua amante, num ambiente de confinamento da vida social na província,
conjugado com os simonianos temas do medo e do ciúme. O livro é uma longa carta
dirigida ao juiz Coméliau, pouco depois da condenação, e que começa desta forma
surpreendente:
“Meu juiz
Queria que um homem, um só, me compreendesse. E
gostava que esse homem fosseis vós.
Passámos longas horas juntos durante as semanas
de instrução. Mas então era muito cedo. Vós éreis um juiz, vós fostes o meu
juiz, e eu teria o ar de me estar a tentar justificar. Sabeis que agora não é
disso que se trata, não sabeis?”[23].
Através da identificação social, a que Coméliau é particularmente
receptivo, vamos assistir nessa longa carta-despedida a diversos sinais do
inusitado interesse que o juiz/homem Coméliau votou a este réu. Estabelece-se,
nesse processo, uma verdadeira comunicação entre o instrutor e o réu, de tal
forma, que este refere, a dado passo da sua carta, “ter ainda a ilusão de ter
um amigo e esse amigo, por estranho que possa parecer, sois vós”.
Através do reflexo do réu, Simenon dá aqui o outro lado do arrogante e
seguro juiz de instrução, lançando-nos numa dúvida pertinente: não terá ele
facetas escondidas da sua vida que lhe facilitam essa estranha identificação?
Mas o olhar de Simenon sobre o poder judicial não se ficou por aqui.
Observador atentíssimo da realidade, o nosso escritor deu-se conta de algumas
mudanças nos perfis judiciais produzidas pela criação da Escola Nacional da
Magistratura, em França, no ano de 1959.
Aparecem, assim, jovens juízes, de “uma
juventude insultuosa” e “muito novos
para a função” na apreciação de Maigret.
Assim, em 1965, sai o livro La
Patience de Maigret com a criação do juiz de instrução Ancelin. Este é um
jovem juiz, de modesta condição económica (conduz um velho carro em ruínas,
vive nos subúrbios de Paris e veste roupa pouco cuidada)[24].
Representa a antítese de Coméliau. Na verdade, o contacto deste petit juge com Maigret vai ser
surpreendente. Manifestando desde o princípio a sua alegria por trabalhar com
Maigret, pedindo-lhe inclusivamente para o tratar pelo nome, Ancelin vai
surpreender pela positiva um Maigret habituado ao formalismo e à contenção
social de Coméliau. Aparece-nos, assim, “um juiz de instrução alegre,
optimista, apreciando fatia de vitela com lentilhas numa taberna como se a
frequentasse desde sempre”.
Descrito como um magistrado consciencioso, capaz de sacrificar a noite
para estudar os seus processos, Ancelin inveja Maigret por este ser um homem da
agitação e do terreno “enquanto ele mesmo, num gabinete poeirento, se
concentrava em dossiers abstractos, de fórmulas monótonas”.
Neste retrato favorável da geração judicial prenunciadora do sindicato da
magistratura e das convulsões de Maio de 68, Simenon expulsa um pouco a má
imagem geral que transmite do poder judicial. Quando o seu inspector lhe
pergunta se o juiz de instrução não lhe partiu as pernas na investigação,
Maigret responde: “Pelo contrário. Até já começo a gostar, deste homem”.
Esta tirada é um bom mote para concluirmos.
Espero que vos tenha aberto o apetite para a obra de Georges Simenon,
certo de só ter aflorado a superfície do objecto a que me propunha,
deixando-lhes a desconfiança de que o melhor ficou por dizer e, certamente, por
ler.
Luís Eloy Azevedo
[1] O presente texto
corresponde à versão escrita da conferência efectuada, a 5 de Junho de 2003, no
Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais, ao 37.º Curso de
Formação de Inspectores Estagiários e foi publicado na revista Polícia e Justiça Revista do Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências
Criminais, n.º 2 (2003).
A análise é excelente mas precisa de mais dois capítulos: a gastronomia e a moralidade.
ResponderEliminarHelena Matos