Quando a minha filha
nasceu, lembrei-me logo de ‘A Estrada’, o romance de Cormac McCarthy: no meio
de um Apocalipse cinza, a caminho de um futuro sem futuro, aquele pai não
hesita em cuidar do filho, continua a protegê-lo, como se existisse uma vida
inteira à sua frente. É um pai igual às mães de “Se isto é um Homem”, mães
que alimentam os filhos durante a viagem para Auschwitz. O cínico dirá que elas
não conhecem o destino do comboio. É falso. Sabem, mas mesmo assim continuam a
tratar das crianças como se tivessem três ou quatro eternidades ao virar da
esquina. Naquele dia, também me lembrei de uma ópera metaleira dos ‘Theatre of
Tragedy’, uma música que me atormentava desde 1996. Na tal ópera, ‘And When He
Falleth’, a voz gótica de Vincent Price surge em cena para glorificar a
desesperança. Em diálogo com uma crente, Price diz que “se alguma vez existiu
um Deus de luz e vida, Ele há muito que está morto e alguém ou alguma coisa
reina no seu lugar”. Sem abrir a boca, a minha filha ajudou-me a enfrentar
finalmente a voz de Price. Deus está morto? Não faz mal. O meu dever é
continuar a viver como se Ele continuasse vivo.
Primo Levi, Cormac
McCarthy e uma banda norueguesa, três ângulos sobre a grande questão moral: se
o Apocalipse é às três da tarde, o que me leva a mudar a fralda à minha filha?
Se o mundo vai acabar numa fornalha nazi, se a natureza vai destruir a
humanidade, se Deus vai ser derrotado, qual é o sentido da paternidade? Se
ouvíssemos apenas a voz da razão, a resposta seria negativa, não, a paternidade
não tem sentido. Mas, felizmente, nós temos um ouvido mouco, um ouvido que
despreza a lógica e, desta forma quase patética, continuamos a mudar fraldas.
Ser pai é este aparente absurdo. O cínico dirá que, ora essa, tudo isto é
movido pelo instinto animal. É falso. Se a causa fosse apenas a tesão
darwinista, se o motivo fosse apenas a fuçanguice genética, nós abandonaríamos
a nossa primeira cópia genética num albergue qualquer e trataríamos de fazer
mais cópias, quais coelhinhos frenéticos. Não, nós não somos coelhinhos
darwinistas. Ou melhor, até podemos ser os coelhinhos entesuados das Galápagos,
mas também somos outra coisa. Ao contrário dos bichos, sabemos que existe um
dever moral acima do Excel genético.
Sim, é um dever, não é
um gosto. As pessoas fazem sempre aquela pergunta retórica “então, gosta muito
de ser pai, não é verdade?”. A minha resposta passa sempre por dizer que a
paternidade não está no campeonato do gostar ou não gostar. Até porque ninguém
gosta daquelas tarefas. Ninguém. É impossível gostar da mudança da fralda, das
noites sem sono, do cansaço permanente, dos dias passados na urgência
pediátrica, do trabalho que se atrasa porque há semanas em que ela tem de ficar
em casa doente, dos filmes que não se vêem, dos livros que não se lêem, dos
restaurantes que não se visitam ou das viagens que não se fazem. Mas a vida é
mesmo assim. Há coisas que estão fora do alcance do gostar ou não gostar,
coisas que não encaixam na frequência do like, coisas que têm de ser feitas
seja qual for a nossa vontade. E, no final, prostrados e deprimidos,
descobrimos que a renúncia aos nossos instintos e prazeres oferece uma alegria
inqualificável, sem tradução, segundos de alegria com décadas de recompensa.
Henrique Raposo
in Expresso,
30 Dezembro
O coração tem razões que a razão desconhece.....
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