Peter Fink
Portugal, 1955
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O Natal é
lixado porque rompe a corrente do cinismo. Sim, estou a falar daquele cinismo
engraçadista que todos nós possuímos, aquela estúpida maneira de resumir as
coisas a uma piadola no mural do Facebook. Sim, somos a máfia do cinismo. Nada
nos surpreende, nada nos comove, não acreditamos em nada, queremos gozar com
tudo, com todas as crenças, com aqueles que acreditam em alguma coisa, aqueles
que ousam defender um castelo. Porque é que somos assim? Bom, somos a geração
pós-Deus, pós-utopia, pós-ideologias e até pós-amor. Já repararam como os
cientistas querem explicar o amor através de fluxos químicos que percorrem o
cérebro? Já não acreditamos em nada, já não sentimos nada, porque filtramos o
mundo através deste cinismo engraçadista e pseudo-científico. Além disso, somos
a geração mais erudita da história. Lemos demasiados livros, vimos demasiados
filmes, criámos uma camada de erudição que é simultaneamente uma camada de
cinismo. Estamos demasiado presos às referências literatas e cinematográficas.
Parecemos aquele míope com lentes de garrafão: o tal cinismo erudito é a lente
pós-moderna que nos impede de ver as coisas com olhos frescos, puros, limpos.
Este ambiente
só podia gozar com a fé e só podia transformar o Natal neste pseudo-Natal
levezinho que nos apascenta. Porque a crença é a némesis da nossa máfia do
cinismo. Ora, é por isso que tento levar à prática o lero-lero do “Natal é
quando o homem quiser”. De que forma? Fazendo um esforço por ver o mundo sem a
lente de garrafão, procurando não ter medo do coice imprevisto da realidade, do
surpreendente, do murro no estômago. Exemplo? No Verão, na Barra (Aveiro),
corro sempre para o paredão quando oiço as sirenes dos navios. Gosto de ficar
ali a vê-los passar, têm gente de outras eras e eu tenho uns pozinhos de
Ishmael. Mas, naquela tarde, tinha uma surpresa à minha espera: no paredão,
estavam dezenas e dezenas de mulheres a acenar para o barco, aos pulinhos,
mandando beijos num tumulto de alegria. Percebi de imediato porquê: aquele
barco era um bacalhoeiro que regressava de três ou seis meses no mar. Mães,
filhas, sogras, namoradas e mulheres estavam ali a comemorar o regresso dos
seus homens com uma chinfrineira pura, sem filtros, sem a lente de garrafão. O
alívio misturado com o frémito da carne. Levei um soco, fiquei sem tapete debaixo
dos pés e, sentindo a emoção a entrar, ainda tentei intelectualizar, tentei
ironizar, tentei a pirueta linguística destinada a secar a humanidade da cena,
olha, olha, um casamento de Lilianas Marises. Sim, estavam aperaltadas com um
mau gosto tenebroso, mas também era um mau gosto comovente. Os vestidos
florescentes tornam-se irrelevantes ao pé da empatia que construí em segundos
com aquelas mulheres da Gafanha. Chora aí, cão sarnento. Chora aí, rafeiro
cínico.
A cena
danificou-me emocionalmente, ou melhor, partiu mais um pedaço da minha lente de
garrafão, que já está cheia de riscos, buracos e lascas soltas. E ainda bem.
Uma coisa é tratar a emoção com pinças. Outra coisa, bem diferente, é fechar a
porta à emoção com o medo de parecermos ridículos. Há uma diferença entre
sofisticação e cinismo. E, sem cinismo, desejo um bom Natal aos homens do
bacalhoeiro “Coimbra” e a todas as pessoas que têm a coragem de deixar a lente
de garrafão no bengaleiro.
Henrique Raposo
Crónica do
Expresso de 21 de Dezembro de 2013.
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