Aparentemente, esta fotografia de um
casal sofrido, com duas bandeirinhas americanas nas mãos, é igual a tantas
outras. E talvez seja. Percebemos que se está perante uma cerimónia de homenagem,
a uma pessoa morta ou a uma nação inteira. As flores e o ar compungido dos
presentes indiciam a comoção própria das ocasiões fúnebres, das evocações da
memória de vidas perdidas. Ando há algum tempo para falar desta imagem. Banal,
igual a tantas outras, mas única e irrepetível, no rosto da senhora que emana
uma dor suave e contida, a pior de todas.
Pensei que se tratasse, como tantas
vezes sucede, de uma fotografia dos pais de um soldado morto em combate. No
Vietname, talvez. Depois, quando surgiu o nome de Eddie Slovik, vi que a morte
fora mais antiga. Ao princípio, julguei tratar-se da viúva de Slovik, que
também entra nesta história. Mas não. É Anna Kadlubski, a irmã mais velha do
soldado Slovik, acompanhada do marido, John.
Parecendo mais antiga, talvez devido aos
tons sépia, a fotografia é de 1987. Nesse ano, ao fim de quarenta e dois anos,
Eddie Slovik foi enterrado no Michigan, onde nascera. Não foi fácil, nada
fácil, quatro décadas de espera.
Eddie Slovik
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Para a História, a biografia de Edward Donald Slovik resume-se em poucas palavras: foi o primeiro soldado americano a
ser fuzilado por deserção desde a Guerra Civil, e o último a quem tal pena foi
aplicada. Em 31 de Janeiro de 1945, em França, nas imediações da aldeia de
Ste-Marie aux Mines, por ordem pessoal do general Eisenhower, Eddie Slovik foi
fuzilado. Pouco mais haveria a dizer, excepto uma estatística desconcertante:
durante a 2ª Guerra, mais de 21 mil militares americanos foram condenados por
deserção. Desses, 49 foram condenados à pena capital. Mas apenas a um essa pena
seria efectivamente aplicada. Em dezenas e dezenas de anos, entre milhares de
condenados por deserção, apenas um homem foi morto no teatro da guerra: Edward
Donald Slovik.
Um, entre milhares. Nada de especial,
sobretudo no meio de uma guerra que matou vários milhões, muitos.
Aparentemente, pouco haveria a dizer: mais um fuzilamento na frente de combate.
Quase tudo na sua vida apontava para um desfecho assim: filho de imigrantes
polacos, nascido em Detroit, em 1920, Eddie passou a adolescência em reformatórios,
por furtar doces, pastilhas elásticas e cigarros. Após sair do reformatório,
conheceu Antoinette Wisniewski. Casaram em Novembro de 1942, numa festa que
durou três dias. Foram viver para a casa dos pais da noiva. Eddie arranjou
trabalho, o casal arranjou casa. Moraram ali durante um ano, na convicção
tranquila de que o passado delinquente de Eddie o iria salvar de ser incorporado,
pois determinavam os preceitos militares. A falta de tropas levaria a uma
reclassificação e, dias depois de completar um ano de casado, Eddie Slovik
recebeu uma notificação para se apresentar ao serviço. Em 24 Janeiro de 1944 –
ou seja, há setenta anos, e quase no final da Guerra –, Eddie Slovik foi
enviado para um campo de treino do Texas. O seu temperamento não se adaptava à
vida militar, bastando dizer que, nos 372 dias que serviu o Exército, enviou 376
cartas para casa – para os pais, para a mulher. Mais de uma carta por dia. Na
última que escreveu, dizia não ter tido sorte na vida. E, de facto, não teve.
Julgava que seria dispensado de ir à guerra, foi incorporado por uma súbita
falta de homens nas fileiras. Tinha casado e assentado na vida, já não era o pequeno
marginal de outrora. Fugiu do quartel, foi condenado. Quando o capturaram,
trazia consigo uma nota em que confessava os factos; os que o prenderam disseram-lhe
para destruir essa prova fatal, em que se auto-incriminava. Recusou, na
suposição de que apenas seria preso, o que era preferível a combater os alemães.
Desconhecia, por certo, que as deserções estavam a alastrar em massa e que
Eisenhower precisava de alguém que servisse de exemplo dissuasor. Como ele, 21
mil homens haviam desertado. Mas, de todos esses, só Eddie Slovik foi fuzilado
por deserção. O primeiro desde a Guerra Civil, o único na 2ª Guerra. Má sina. «O
rapaz mais azarado que alguma vez existiu», assim o descreveria a viúva, a
mulher com quem esteve casado apenas um ano.
Antoinette e Eddie Slovik
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Desertara uma vez, já em França, foi
capturado e reintegrado nas fileiras. À segunda tentativa foi condenado à
morte. O processo foi expedito, porventura em demasia, já que nem oportunidade
teve para comunicar a condenação à sua mulher. No dia da execução, um dos que o
iriam fuzilar disse-lhe: «Try to take it easy, Eddie. Try to make it easy on
yorself – and on us». Como muitos condenados, respondeu falando das desventuras
de juventude: «Don’t worry about me. I'm okay. They're not shooting me for deserting the
United Stated Army – thousands of guys have done that. They're shooting me for
bread I stole when I was 12 years old.»
O processo
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Foi
enterrado em França, num cemitério secreto onde repousavam os restos mortais de
94 soldados americanos executados por violação ou homicídio. Não teve sequer
direito a caixão, mas a uma mortalha de algodão. E, na sepultura, não constava
o seu nome, só um número, por vergonha. Eddie Slovik foi o único condenado por
um crime estritamente militar. Morreu com onze tiros, em 31 de Janeiro de 1945.
Melhor dizendo, não morreu de imediato, nem sequer onze tiros o mataram logo:
morreu enquanto o pelotão de execução recarregava as armas. O Exército dos
Estados Unidos nunca informou oficialmente a viúva da morte de Eddie Slovik.
Sepultado
em França, na companhia de cadáveres de violadores e homicidas, a história do cobarde
ou valente soldado Slovik terminava aqui. Mas aqui começa uma outra história, a
da batalha da sua mulher para resgatar o corpo – e o direito a uma pensão de
viuvez. Antoinette Slovik morreria em 1979 sem conseguir o seu objectivo.
Escreveu a sete presidentes dos Estados Unidos – nenhum deles concedeu o seu
perdão a Eddie Slovik. Recusaram-lhe a pensão, argumentando que o marido
morrera em circunstâncias desonrosas – pouco depois, o Congresso aprovou
legislação nos termos da qual Antoinette Slovik, e outros como ela, teriam
direito a uma pensão pela morte dos maridos. Vivendo sob um pseudónimo, Annette
morreu aos cuidados da Segurança Social, sofrendo de problemas cardíacos e de
um cancro no peito.
Antoinette Slovik
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Em
1981, Bernard V. Calka, um veterano da 2ª Guerra, de origem polaca, chamou a si
o caso. A viúva já tinha morrido, era indiferente que o corpo de Eddie, ao fim
de tantas décadas, regressasse aos Estados Unidos. Não era essa a opinião de
Bernard V. Calka. Não sabemos o que o motivou: talvez as mesmas origens
polacas, talvez o facto de a história de Eddie se ter tornado famosa, em livros
e filmes.
Bernard
V. Calka conseguiria, em 1987, que o Presidente Ronald Reagan autorizasse a
trasladação dos restos mortais de Eddie Slovik para os Estados Unidos. Através
de várias campanhas de angariação de fundos, Bernard Calka conseguira obter os
8.000 dólares necessários para trazer o corpo de França até ao cemitério de
Detroit, onde hoje Eddie e Antoinette estão sepultados lado a lado. No dia do
enterro, a irmã mais velha de Eddie Slovik, Anna, e o seu marido, John,
acompanharam o cortejo fúnebre. A fotografia é aquela ali em cima.
Compreende-se agora a bandeira americana: a irmã e o cunhado quiseram mostrar que
um desertor pode ser um patriota. Ou, pelo menos, não deixa de ser o cidadão de
um país. Além de resgatar o private
Slovik, Bernard Calka escreveu a vários presidentes – Reagan, Bush, Clinton –,
tentando obter um perdão federal pelos actos de um homem que nunca conheceu.
A trasladação, 1987
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Alguns
companheiros de armas referiram que Eddie não era um cobarde (aqui
ou aqui),
que desertara por razões que só a ele, e à sua consciência, diziam respeito. Um
dos juízes que o condenou disse que a pena aplicada não fez o menor sentido,
que todo o processo fora mal conduzido, era um exemplo de «injustiça histórica» (aqui). Má sorte naquela morte. Pouco interessa
que Eddie Slovik seja um herói, ou não. Talvez, no limite dos limites, se justificasse condená-lo,
tendo em conta as circunstâncias excepcionais dos tempos de guerra.
E, possivelmente, o processo não foi justo.
Tudo
isso pouco interessa, passados estes anos todos. Como pouco interessa, para o
que aqui me interessa, que a figura de Eddie Slovik se tenha tornado famosa,
com vários livros a ele dedicados,
livros depois adaptados a séries de televisão (uma delas, com um jovem Martin Sheen).
Filmes, muitos, e até uma canção; ou mesmo duas.
Só
importa contar que, em 1960, Frank Sinatra pensou em produzir um filme chamado The Execution of Private Slovik, tendo
como argumentista um perseguido de MacCarthy. O caso suscitou controvérsia, a
ponto de Sinatra ser acusado de simpatias comunistas… Como Sinatra era apoiante
de John F. Kennedy na sua corrida à Casa Branca, e como a suspeita de simpatias
comunistas era pior do que a lepra nos tempos da Guerra Gria, o candidato
presidencial conseguiria dissuadir o cantor de prosseguir o seu projecto
cinematográfico. John Kennedy ganharia as eleições, sucedendo a Dwight
Eisenhower, o general que ordenara a execução de Eddie Slovik. Quanto a este, morto
aos 24 anos de idade, o pobre azarado que acabou fuzilado, será talvez quem
mais merece o título – e a letra – da famosa canção de
Sinatra. Sim, obviamente: My Way.
António Araújo
obrigada (por mais um).
ResponderEliminar"cancro no peito"? :P
ResponderEliminarSim, foram os alemães que descobriram que o cigarro produzia o cancro pulmonar. Vamos chamar de efizema pulmonar, fica mais fácil. Não tem cura. Deixar o vício não resolve o problema.
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