Dimitry Baltermants
Dor
Crimeia, 1942
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No
passado dia 23 de Agosto, Vladimir Putin deslocou-se a Volgogrado para
participar nas cerimónias do 71º aniversário do início da batalha que ficará para
a História com o antigo nome daquela cidade, Estalinegrado.
Putin foi a Volgogrado inaugurar uma
estátua, a Fonte de Barmaley. Melhor dizendo, a réplica de uma estátua famosa, que deve a sua fama
sobretudo por ter sido objecto de uma imagem mais famosa ainda, da autoria do
fotógrafo Emmanuil Evzerikhin (1911-1984). Ícone da bravura russa, a fotografia
foi tirada em 1942, durante a Batalha de Estalinegrado, mostrando a estátua –
ou, se preferirmos, a fonte – no meio dos escombros e do fumo dos canhões de
guerra.
Emmanuil Evzerikhin
Estalinegrado
1942
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Nesse mesmo dia 23 de Agosto de 2013,
às 4 horas e 18 minutos da manhã, a hora exacta em que o exército alemão
começou a bombardear a cidade, foi inaugurada uma outra réplica da estátua, a uma
escala mais reduzida, junto ao museu «A Batalha de Estalinegrado».
Este vídeo da chegada de Putin mostra que este
tinha a esperá-lo, junto à viatura oficial, uma personagem com uma aparência
estranha, sobretudo naquele enquadramento formal e solene. O rígido Vladimir
Putin junto a um sujeito de andar gingão, numa armadura de cabedal e com trejeitos
de marginal. O homem aguarda o Presidente da Rússia, acompanha-o até à tribuna
das altas entidades, fica sentado ao seu lado, em posição de destaque. Não se
trata de um antigo combatente de Estalinegrado ou de um seu familiar, daqueles
octogenários russos que aparecem nas cerimónias militares com o peito cravejado
de medalhas. Quem acompanha Putin tem o corpo cravejado, mas de tatuagens. Um
ar algo marcial, por certo, mas não o de um antigo combatente. Não era,
certamente, o presidente da câmara de Volgogrado. A perplexidade sobre a sua
aparência e a sua presença naquela cerimónia tão circunspecta e histórica
levaram-me a procurar saber quem era o anfitrião do Presidente da Rússia, num acto público de grande simbolismo, que pode ser visto aqui. O inflamado discurso patriótico de Putin encontra-se disponível, em tradução inglesa, na página oficial do Presidente da Rússia (http://eng.kremlin.ru/news/5872). E o vídeo:
Alexander Zaldostanov, com a alcunha «O Cirurgião», terá hoje 50 ou 51 anos e é
o líder supremo e incontestado dos ferozes Lobos
da Noite (Nochniye Volki), o mais
importante clube de motoqueiros da nova Rússia. «O Cirurgião» é o mais famoso motard da Rússia, que deve o seu nome de
guerra ao facto de, num passado de que não gosta de falar, ter sido médico.
Trabalhava numa clínica dentária e, nessa qualidade, coleccionava colares
feitos de dentes humanos, que depois, já famoso, ofereceu a Yegor Zaitsev, dono de uma agência de modelos e costureiro dos oligarcas, que ainda há pouco apresentou a sua colecção na Mercedes Benz Fashion Week Russia. Yegor é filho do famoso Slava Zaitsev, grande nome da costura russa, um pouco maltratado nos tempos soviéticos. Nas festas rijas dos Lobos da Noite, que metem leitão assado, rock da pesada e pirotecnia (não perder esta galeria), até aparece a bailarina clássica e semideusa Anastasia Volochkova, que foi despedida e reintegrada no Bolshoi após um controverso processo, judicial e extrajudicial.
Com a bailarina e actriz Anastasia Volochkova
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Yegor Zaitsev
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A
dada altura, «O Cirurgião» trocou a medicina dentária pelos grupos motards, e foi isso que lhe deu acesso à
intimidade do Kremlin. O clube Lobos da
Noite tem várias organizações-satélite, como os Lobos-Engenheiros, que recriam e reparam motos, e produz uma linha
de roupa, Wolf Wear. A história do
clube, rica e abundante, pode ser consultada na sua página oficial.
Há regras estritas para pertencer ao grupo, sendo terminantemente proibido
beber quando se conduz. Tem ainda de se obedecer a um «Código dos Cavaleiros», cujas
regras parecem ser inacessíveis aos não-iniciados.
«O Cirurgião» foi o grande promotor da iniciativa de reconstruir a fonte (em réplica do escultor moscovita Alexander Burganov), como explica aqui a página oficial do Kremlin. Mas a razão da sua presença ali é outra, mais funda. Vladimir Putin é – literalmente – um compagnon
de route dos Lobos da Noite, e já
acompanhou o grupo em vários dos seus ruidosos périplos. Em 2010, por exemplo,
conduziu uma potente Harley Davidson num show
nocturno realizado em Sebastopol, na Ucrânia. Putin tem aparecido junto dos
membros dos Lobos da Noite, até de
dia, à luz do sol e à vista de todos. Aliás, a ligação aos Lobos da Noite data dos tempos em que foi Primeiro-Ministro. Nessa
qualidade, visitou a sede do clube, em 2009. Alguns, como o correspondente do Telegraph em Moscovo, prognosticaram que a
ligação entre Putin e os motards iria
sofrer um forte abalo, ou talvez mesmo romper-se para sempre, quando, em finais
de 2012, os Lobos da Noite se
envolveram numa sangrenta luta com um grupo rival, o Tri Dorogi (à letra, Três
Estradas). O líder dos Lobos da Noite
é um indefectível apoiante de Vladimir Putin, que saúda efusivamente o seu
trabalho patriótico de «regresso à grandeza da Rússia». Ao que parece, os
membros do Três Estradas, grupo que
resultou de uma dissidência dos Lobos da
Noite, não alinham com a política de apoio incondicional a Putin. Na versão
dos Lobos da Noite, estes ter-se-iam
deslocado à sede do Três Estradas, em
Zelenogrado, nos arredores de Moscovo, para os convidarem para uma
confraternização. Zelenogrado é uma terra curiosa: há lá um condutor de pesados
– Alexei Volkov, «O Justiceiro» – que pune as infracções rodoviárias com as
suas próprias mãos, fazendo com que os prevaricadores embatam no seu autocarro;
depois, filma tudo, juntando uma colecção com mais de cem acidentes de trânsito
(aqui).
Apesar
da alegada bondade das intenções dos Lobos
da Noite, estes foram recebidos em Zelenogrado com insultos – e aos tiros.
Ripostaram. Da refrega resultou um morto, membro dos Lobos, e vários feridos. Tudo isto ocorreu em finais de 2012. As
câmaras de videovigilância do Três
Estradas captaram os confrontos (aqui).
Temeu-se que daqui resultasse uma guerra aberta entre os gangs de motoqueiros
de Moscovo, de consequências imprevisíveis, dado o poder de fogo de cada um dos
grupos rivais (ver o comentário do The Moscow News, aqui).
Ora,
quando muitos julgavam que Putin se iria afastar dos Lobos da Noite e das lutas motoqueiras, verificou-se o inverso. Em
Março de 2013, Putin e Zaldostanov encontraram-se na Sociedade de História
Militar de Moscovo e, num gesto muito significativo, o Presidente da Rússia condecorou
o líder dos Lobos da Noite (aqui). «O Cirurgião»
(ou, se preferimos, o Khirurg) é uma
figura imponente e proeminente, que se avista com Cirilo I, o Patriarca de
Moscovo e de Toda a Rússia, Primaz da Igreja Ortodoxa Russa. Todos se lembram quando
Cirilo apareceu numa fotografia tendo a pulso um exuberante relógio de luxo,
rapidamente apagado das imagens oficiais. Os Lobos da Noite, além de trabalho caritativo, são grandes apoiantes do
Patriarca Cirilo I: quando algumas atitudes deste começaram a ser contestadas,
os Lobos organizaram um impressionante
cortejo em sua homenagem.
A condecoração do «Cirurgião»
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«O Cirurgião» com o Patriarca Cirilo I
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O Patriarca Cirilo, com e sem relógio Breguet, aqui
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Meses
depois de ser condecorado, «O Cirurgião» receberia Putin em Volgogrado,
assumindo lugar de destaque nas comemorações do 71º aniversário da Batalha de
Estalinegrado.
O combate do 70º Aniversário da Batalha de Estalinegrado, 2012
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Vladimir Hrunov
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No
ano anterior, por ocasião do 70º aniversário da Batalha, «O Cirurgião»,
juntamente com o empresário de boxe Vladimir Hrunov, organizou um torneio de
pugilismo em Volgogrado (imagens aqui). Combate entre Dmitry Chudinov e o negro Jorge Navarro.
Chudinov esmagou Navarro ao 2º round, por K.O. O nome artístico de Chudinov? Lobo da Noite, pois claro… Mais
importante do que isso, a luta a soco teve uma assistência de 200.000 pessoas. Em
toda a história do boxe, foi o combate que teve maior número de espectadores ao
vivo. O recorde pertencia a uma refrega na Cidade do México, em 1993, quando mais
de 136.000 pessoas se juntaram no famoso Azteca Stadium para assistir à luta
entre a lenda mexicana do pugilismo, Julio Cesar Chavez, e Greg Haugen. O
combate de Volgogrado teve 200 mil espectadores. Se quisermos ir pelas
estatísticas fora, 200 mil pessoas é metade do número estimado de baixas civis
nos bombardeamentos da Batalha de Estalinegrado. Na verdade, calcula-se que 400
mil civis terão morrido devido aos combates entre as tropas nazis e os
exércitos vermelhos. Sete décadas depois, 200 mil pessoas assistiriam a um
combate entre dois homens, organizado por outros dois homens, um bem-sucedido empresário
de boxe e um incontestado líder de um grupo motard.
Foi justamente nesta ocasião, a do 70º aniversário da Batalha de Estalinegrado,
que surgiu outra polémica, que não é lateral ou alheia a tudo o que aqui vimos
contando: em várias cidades russas, muitos autocarros públicos foram pintados
com a imagem de Estaline, ficando conhecidos por Stalinobus (aqui).
Um Stalinobus
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Com tanta violência, e as crianças,
senhores? Estão lá, formando um círculo, indiferentes ao crocodilo de fauces
abertas que se estende a seus pés. Foram um círculo, cantando. Não de giz, mas
bastante caucasiano, o círculo, Khorovod,
é uma forma de arte popular, misto de dança e de canto coral. Algo parecido com
as rodas do Portugal antigo, mas em formato eslavo. A estátua foi erigida em
1939 e permaneceu intacta durante toda a guerra. Enquanto à sua volta tudo ruía
em ondas de choque e pavor, as crianças pétreas permaneceram firmes e felizes na
roda do Khorovod. Chamam-lhe mesmo
«Khorovod das Crianças», e a fonte foi restaurada em 1945. Ainda por lá se
fizeram uns festivais de celebração da vitória sobre os nazis, mas, na década
de cinquenta, tiraram-na dali, sem que se saiba porquê. Mistérios insondáveis. Foi
imortalizada por uma fotografia de Evzerikhin, que se celebrizou ao serviço da
propaganda de guerra soviética, com presença nos combates de Estalinegrado e na
libertação de Minsk, Varsóvia e de Königsberg, rebaptizada Kaliningrado.
Khorovod
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A réplica, junto ao Museu da Batalha de Estalinegrado
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As crianças e o crocodilo evocam um poema de 1925 de um dos principais autores russos de literatura infantil, Korney Chukovsky (1882-1969):
Criancinhas!
Por
nada deste mundo
Não vão à África
Não vão à África sequer
em passeio!
Em África, há tubarões
Em África, há gorilas
Em África, existem
grandes e malvados crocodilos
Que irão morder-vos,
Que irão agarrar-vos e
magoar-vos.
Crianças, não vão
passear à África.
Em África há um ladrão,
Em África há um vilão,
Em África está o
terrível
Bar-ma-ley!
Anda por África,
e come crianças,
O repugnante, o
impiedoso, o cobiçoso Barmaley!
Barmaley
é o mau da fita, o pirata ávido de riquezas, que apareceu pela primeira vez num
dos livros mais populares de Chukovsky, Krokodil,
de 1916. Tornou-se uma personagem lendária do imaginário russo, infantil e não
só, sobre a qual existem dezenas de recriações, adaptações em filmes de
animação, muita e muita coisa. O contraponto simpático de Barmaley é o bondoso Doutor Aybolit, inspirado num médico e activista social e político, o judeu Zemach Shabad, nascido e morrido em Vilnius, entre 1864 e 1935. Que seria do mundo sem
a Wikipedia?
Barmaley
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No
conto de Chukovsky, onde se insere o poema acabado de assassinar numa tradução
literal e empastelada, a história era assim: enquanto estava a ser queimado
vivo pelo sinistro Barmaley, o Doutor Aybolit pediu a um crocodilo, que ali entrara
em cena pela mão de um gorila, que devorasse o pirata, para que este nunca mais
fizesse mal às crianças. O crocodilo engole o corsário mau-carácter mas acaba
por libertá-lo, creio que pela boca, contra a promessa de as crianças nunca
mais serem alvo dos maus-tratos de Barmaley e outras piratarias.
A fonte é mais famosa do que a história. Mas foi a fotografia que deu fama à fonte. Tem servido para tudo: na cinematografia soviética que mostrava a Batalha de Estalinegrado, a Fonte das Crianças aparecia sempre (ver aqui) e vai aparecer, ou já apareceu, num novo filme russo, Estalinegrado, cuja estreia estava anunciada para o ano passado (aqui). Na Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, a fotografia de Evzerikhin foi uma das imagens que, no quadro da «terapia da aversão», obrigaram o cruel Alex a ver, de eyes wide open. Muita adulterada, com crianças a mais, a Fonte aparece ainda no filme Enemy at the Gates, de 2001, em que Jean-Jacques Annaud colocou Joseph Fiennes, Jude Law, Bob Hoskins e outros artistas famosos na frente de Estalinegrado. O bonitaço Jude Law encarna o lendário Vasili Zaytsev, um sniper de Estalinegrado que, segundo se diz, abateu, só à sua conta, 225 soldados do Eixo (em 2006, fizeram-lhe uma grande homenagem). Enemy at the Gates baseia-se num livro com o mesmo nome, uma investigação histórica da autoria de William Craig, saída no ano de 1973, cuja capa mostra precisamente a Fonte de Barmaley.
A
Fonte surge noutra película, V for Vendetta (2006), um thriller futurista
com Natalie Portman, passado numa Londres distópica. E, claro está, a Fonte das
Crianças transitou para o mundo dos videojogos, surgindo no Company of Heroes 2, lançado no passado
mês de Junho (trailer aqui). Mas, como entro em território que para mim é sânscrito e estou a
jogar sem grande apoio da Wikipedia, se calhar o que digo é disparate. Falando
em disparate, dizem que há um videojogo que coloca a Fonte de Barmaley na Praça
Vermelha, em Moscovo… Segundo parece, é o Call of Duty 2, mas não juro (ver aqui). Além de filmes e videojogos, a Fonte das Crianças
aparece nas habituais reconstruções em Playmobil e nas mãos de escultores
contemporâneos como Alessandro La Rocca
(o que não deixa de ser curioso, pois não consegui saber quem era o autor da
fonte original, a de 1939).
Enemy at the Gates
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Cenário para um novo filme russo sobre Estalinegrado (aqui)
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Call of Duty 2
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Call of Duty 2
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O
círculo nem sempre tem crianças felizes a cantar à roda. O Khorovod da História, às vezes, adquire
contornos trágicos. A Leste, o trágico repete-se ciclicamente – muitas vezes, vezes demais. Há
poucos dias, a 29 e a 30 de Dezembro, ocorreram dois atentados suicidas em
Volgogrado. No balanço final, 34 mortes. Um dos atentados, crê-se que de
inspiração islâmica radical, teve lugar no átrio da principal estação de
comboios da cidade, Volgogrado-1. Ao início, julgava-se que teria sido perpetrado
uma mulher-suicida, Oksana Aslanova, uma shahdika
ou «Viúva Negra». Agora, já não há tantas certezas.
Oksana Aslanova
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O cadáver de Oksana
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O momento da explosão
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Escombros
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No entanto, e é aqui que queria chegar depois destas voltas todas, o atentado ocorreu no preciso lugar em que Putin estivera no mês de Agosto, na companhia do líder dos Lobos da Noite. De novo, em 2013 como em 1942, as Crianças da Roda assistiram à morte e à destruição em seu redor, mantendo-se impassíveis e tranquilas. Uma circularidade feliz. Krokodil, krokodil, quem protegerás tu?
António Araújo
São já muitas as interessantes e, por vezes, extraordinárias, histórias que aqui nos traz. Mas que não deixam de surpreender!! Pelo insólito, bizarro, histriónico, compassivo, angustiante e pela impressividade e extraordinário detalhe da sua pena!!!
ResponderEliminarUm bem haja,
Estou rendido e curioso por próximos encontros, aqui. Excelente trabalho. Muito obrigado
ResponderEliminarFantástico texto, abençoada Wikipédia :) onde só quem sabe o que procura é que encontra
ResponderEliminarObrigado a todos. É, de facto, uma história curiosa, não acham?
ResponderEliminarCordialmente,
António Araújo
P.S. - se me permitem, um agradecimento especial à Suzana.
E quando pensava que a fasquia já tinha sido atingida.. genial
ResponderEliminarSimplesmente...obrigado.
ResponderEliminarÉ sempre um gosto ler este blog
ResponderEliminarNo melhor malomil cai a nódoa... Ó homem, se tivesse pesquisado bem (e usado a memória) saberia que este (http://2.bp.blogspot.com/-eUQIfxhPoys/Utv_9ZtveQI/AAAAAAAAh3o/3u0ZOD-USiM/s1600/0_10ce81_972774a9_L.jpg) não é o "Zaldostanov, na fase pré-motoqueira" coisíssima nenhuma: é o actor Peter Green, que entrou no "Pulp Fiction", entre outros.
ResponderEliminarObrigado, vou já fazer a correcção!
ResponderEliminarCordialmente,
António Araújo