Paul Watson
Mogadíscio, Somália
Outubro de 1993
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«Gutle
pediu-me que ficasse no carro, enquanto ele e os dois guardas iam sondar os
ânimos da população. Será que eles se importariam que eu fotografasse o corpo?
Gutale regressou pouco depois, meteu a cabeça dentro do carro e, com um sorriso
nervoso, anunciou que os líderes do bando me autorizavam a tirar fotografias.
Senti o coração aos pulos e a cabeça à roda. Foi uma descarga de adrenalina
como jamais experimentei em toda a minha vida. O terror da morte fazia-me
sentir mais vivo do que nunca.
Avancei,
híper-alerta, escudado apenas por um trio de protectores que não teria qualquer
hipótese caso a turba decidisse voltar-se contra nós. E, nesse momento, a
multidão apartou-se, formando um fanático semicírculo em redor do cadáver. Os
meus olhos percorreram a cena frenética como uma câmara guiada por mãos
invisíveis. Olhei para o chão. E foi assim que conheci o primeiro-sargento
William David Cleveland.
Tive
então de decidir, em menos de um segundo, se devia ou não despojar um homem
morto do seu último resquício de dignidade. O momento da escolha, no turbilhão
da poeira e suor, repulsa e medo, continua presente no meu espírito, negando-me
a paz: no instante em que estava prestes a premir o botão do obturador, o mundo
mergulhou no silêncio, a multidão que me rodeava tornou-se numa mancha
indistinta, e uma voz disse:
Se o fizeres, nunca
mais te livrarás de mim.
“Perdoa-me”,
pensei. Queria que ele compreendesse. Que me perdoasse. Eu já tinha fotografado
muitos cadáveres, vários deles mais chocantes do que aquele. Mas Cleveland
tinha qualquer coisa de diferente, um significado que eu levaria anos a compreender.
Naquele centésimo de segundo, antes de consumada a decisão, eu percebi o que
tinha a fazer. Sentia os músculos tensos, os sentidos ultra-apurados, atentos à
mais subtil ameaça. Estava ligeiramente inclinado para a frente, a tentar obter
o melhor ângulo, os ombros rígidos, na expectativa de um ataque. Um coro
indistinto de novas perguntas atravessou-me o espírito. Como um médico legista
durante uma autópsia, obriguei-me a ser frio e objectivo. Não podia permitir
que as minhas emoções me imobilizassem. Qualquer hesitação, o mais pequeno
sinal de incerteza, poderia atrair sobre mim a primeira pedrada, e, se assim
fosse, depressa tombaria sob uma tempestade de pedras, balas, punhos e pés, tal
como acontecera em Julho a quatro colegas meus.
Exultante,
a multidão dançava e espancava o corpo de Cleveland com tamanho prazer que, na sua
sede de vingança, dir-se-ia que não estava apenas a profanar o corpo de um
soldado caído, mas a celebrar a vitória sobre todo um exército derrotado.
Alguns cuspiam no cadáver. Outros pontapeavam-no e apedrejavam-no. Um homem
novo, de óculos de piloto, abriu caminho para ficar na fotografia e fez um
gesto obsceno ao soldado morto, o rosto torcido num esgar de alegria. Um
velhote ergueu a bengala como se fosse uma moca e golpeou vigorosamente o
cadáver, uma, duas vezes. Os mais jovens acharam esta cena hilariante.
Olhem
para o velho, como malha!
Eu
sentia-me a estremecer a cada golpe. Aquele soldado era para mim um perfeito
estranho, e, depois de ter visto mortas e estropiadas tantas mulheres e
crianças somalis, não sentia senão desprezo por homens como ele, que espalhavam
a morte a partir dos céus. A partir desse momento. Agora estávamos ali os dois,
um diante do outro, entre as nuvens de poeira e o fedor acre do lixo em
putrefacção, numa ruela sem nome de um país que nos era estranho – e, pela
primeira vez, senti que havia dois lados: nós e eles. E eu nada podia fazer
para o ajudar. A turba exultava a cada nova injúria, balançava como uma onda,
alimentando-se do seu próprio frenesim. Os homens que puxavam as cordas
enroladas em torno dos pulsos do soldado, esticando-lhe os braços bem acima da
cabeça, faziam-no rolar de um lado para o outro, sob a luz branca e impiedosa
da manhã de Mogadíscio. O homem morto dançava com os seus algozes como uma
marioneta quebrada.
Eu
sentia-me como que a pairar sobre tudo aquilo, via-me a mim próprio a fazer
algo de completamente insano: a fotografar seres humanos transformados em
animais. Tentei distanciar-me alguns passos daquela realidade – da imagem
enquadrada pelo óculo da câmara – esforçando-me por obter, nos poucos segundos
de que dispunha, uma prova que os militares jamais pudessem refutar. Não havia
margem para erro. E assim, no meio do caos, ao invés de pensar em como
salvar-me ou em que direcção fugir, como decerto faria uma pessoa normal, dei
por mim preocupado com a possibilidade de ter carregado mal o rolo, com o tempo
e a velocidade do obturador, perguntando-me se não seria melhor usar o flash por causa das sombras projectadas
pelo sol castigador.
Será que troquei as
pilhas da máquina?
Clic
O corpo está mole: terá
morrido há muito tempo?
Clic
Aqueles ferimentos de
bala que tem nas pernas: terá sido alvejado logo a seguir ao despenhamento ou
mais tarde?
Clic
E se estiver apenas
inconsciente? Será possível que ainda esteja vivo?
Clic
Pobre homem… Quem és
tu?
Clic
Mal
tinha começado quando Gutale e o meu principal guarda-costas me disseram que
era altura de sair dali. A turba, que de início tolerara a minha presença,
começava agora a mudar de disposição. “Mas que está ele a fazer aqui?”, gritou alguém em somali.
Gutale
puxou-me rapidamente para dentro do carro.»
(Paul
Watson, Tanta Terra, Tanta Guerra,
trad. port., Colares, Pedra da Lua, 2010, pp. 48-51).
O
sargento William David Cleveland Jr. foi morto no dia 3, ou 4, de Outubro de 1993,
em Mogadíscio, na Somália. Nasceu em Phoenix, Arizona, em 27 de Janeiro de 1959,
sendo filho de William David e Nada Irene Barr Cleveland. Além de uma irmã,
morta quando criança, tinha dois irmãos e uma irmã mais nova. Tinha cinco
filhos: dois rapazes, do seu primeiro casamento, com Linda Amy Shaw; dois
rapazes e uma rapariga, do seu segundo casamento, com Christine Werner. Em
jovem, gostava de atletismo, tendo ganho várias medalhas na modalidade de
corrida. Em 1978, logo após a sua formatura na High School de Peoria, ingressou
nas Forças Armadas, tendo prestado serviço na Alemanha, na Coreia e na Somália,
onde morreu. Foi enterrado em local não especificado, no dia 23 de Outubro de
1993, com direito a honras militares. Por vontade da família, a imprensa não
esteve presente nem foram captadas fotografias do funeral.
Mais
informações, aqui.
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