quinta-feira, 24 de março de 2016

Espinosa, o judeu não-judeu português da Holanda (1).




 

 
 
“Como é que uma pessoa se transforma em Espinosa?, pergunto-me. Ou, por outras palavras, como é possível explicar a sua estranheza? Eis aqui um homem que discordou firmemente com o filósofo mais conhecido do seu tempo, que batalhou contra a religião organizada e foi expulso da sua própria religião, que rejeitou o modo de vida dos seus contemporâneos e estabeleceu critérios para a sua própria vida que mais lembravam os da vida dum santo, ou a vida de um tolo, para outros.
Será que Espinosa era, de facto, uma aberração social?”
António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, Lisboa, 2003.
 
“Não houve filósofo mais digno, mas também não o houve mais injuriado e odiado.
Para compreender a razão  disso (…) não basta tornar manifesto como se combinam o panteísmo e o ateísmo nesta tese, ao negar a existência de um Deus moral, criador e transcendente. É preciso partir das teses práticas que fizeram do espinosismo um objecto de escândalo.”
Gilles Deleuze, La Philosophie pratique de Spinoza, Paris, 1981.
 
“Espinosa conscientemente preferiu a aposta na cidadania moderna
à «Eleição» dos seus pais.”
Daniel Lindenberg, Destins marranes (2004).
 
“As mãos e o espaço de jacinto
Que empalidece os confins do Ghetto
Quase não existem para o homem quieto
Que está a sonhar um calado labirinto.
(…)
Livre da metáfora e do mito
Lavra um árduo cristal: o infinito
Mapa de Aquele que é todas as suas estrelas.”
Jorge Luís Borges, Espinosa
 
 
1.Breve biografia dum pensador controverso
 
Benedictus, Benedito, Baruch ou, por fim – na versão portuguesa do seu nome próprio, aquela que figurava nos seus documentos de identidade –, Bento de Espinosa (1632-1677) − nasceu numa família de negociantes judeus portugueses, isto é, oriundos de Portugal e que tinham partido para França quando a Inquisição se estabeleceu em Évora.[1] O seu avô paterno chamava-se Isaac Rodrigues Espinosa de Nantes (aliás Pero Rodrigues Espinosa), casado na Vidigueira e estabelecido em Nantes, donde partiria  para a Holanda, em 1615, onde nasceram Fernando, Miguel de Espinosa (aliás Gabriel Álvares), que faleceria em  1654, em Amesterdão – pai do filósofo Baruch de Espinosa – e da sua mulher Maria Clara. Miguel, este último mercador com presença activa na comunidade da “Nação” portuguesa de Amesterdão, na rua Hougracht – onde também era figura de relevo o seu tio Abraão –,  tendo tido vários filhos: Miriam, Bento/Baruch, Rebeca e ainda Gabriel. Casara-se seu pai Miguel em 1628 com Raquel, depois com Hannah Débora (falecida em 1638), que morreria em 1654, voltando a consorciar-se de novo com Ester, em 1641. Esta última viera directamente de Lisboa para a Holanda. Os seus parentes maternais e paternais, assim como as suas madrastas, vinham todos de Portugal, de Lisboa, Porto, Vidigueira e Portalegre.[2] Em suma, Bento de Espinosa perdia a mãe aos 6 anos e o pai aos 22.
Expulso em 26-VII-1656 pelo mahamd, o conselho judaico da sinagoga de Amesterdão, Bento acabaria por se afastar do meio familiar, deixando a cidade natal e fixando-se em Rijnsburg (1660), depois em Vorburgo (1663), aldeiazinha a poucos quilómetros de Leiden, editando um estudo sobre Descartes, sendo esta a única obra que assinaria com o seu nome, recebendo de Johan De Witte uma bolsa de 200 florins,   morrendo em Haia a 21-II-1677. Em 1674-5 terminara de redigir a Ethica, que seria publicada após a sua morte. Em  Novembro de1676 fora visitado por Leibniz, o filósofo e cientista católico alemão que o quis conhecer e que, desde 1671,lhe escrevera sobre assuntos de óptica.[3]
Nunca se casou, nem teve casa própria, vivendo em habitações alugadas, não exerceu qualquer profissão pública, subsistindo graças a um modesto mester de polidor de lentes para lupas, microscópios e telescópios. Era um judeu banido da comunidade de fiéis, escorraçado da “linhagem de Israel”, um solteirão impenitente e um filósofo não académico, tendo recusado o convite para leccionar na universidade alemã de Heidelberg – ao recusar o convite que lhe a carta na qual o professor desta famosa universidade lhe enviara em 16-II-1673, em, nome do Eleitor Palatino, Espinosa confessava que levava “uma vida privada e solitária” -, um pária excomungado pelos seus, que o seu amigo e correspondente Henry Oldenburg definiu como “um estranho filósofo que vive na Holanda mas não é holandês”.[4] O filósofo assistiria a três epidemias de peste em Amesterdão, em 1635, 1655 e 1663 e desde a infância este marrano de tez olivácea e carão comprido, tipicamente ibérico, nunca gozaria de boa saúde durante toda a sua existência, sofrendo de tuberculose pulmonar, que por fim o levaria quando tinha 44 anos, sendo a sua vida de solteirão confortada por um único vício, o cachimbo.[5] Um dos seus biógrafos ingleses, Stuart Hampshire, sublinha que Bento Espinosa “apagou deliberadamente a sua própria personalidade e quis que a sua filosofia subsistisse sozinha. De modo que possuímos apenas um simples resumo de factos confiáveis, mas que nos bastam para explicar que a sua vida e modos de ser impressionaram tanto os seus amigos como inimigos.”[6]
 




 
2. Espinosa e a língua portuguesa: exame da sua biblioteca[7]
 
O inventário da biblioteca de Espinosa [8] foi feito por ocasião do seu falecimento; a sua consulta revela que não havia naquela autores portugueses, exceptuando dois judeus lusos (Leão Hebreu e Menasseh Ben Israel), embora houvesse alia várias obras em castelhano, a começar por gramáticas de espanhol, uma bíblia cristã em espanhol e ainda algumas obras de Cervantes (as Novelas exemplares), uma Bíblia em espanhol, um Tesoro da Lengua castellana (Madrid, 1611), uma edição da Institución de la Religion christiana, de Calvino (trad. de Cypriano de Valera, em 1597), uma obra de Quevedo, as obras completas de Gongora (Madrid, 1633), uma peça teatral de Pérez de Montalvan, a Comedia famosa, um vocabulário italiano e espanhol (Roma, 1637), as obras de Antonio Pérez (o político espanhol que desertara a Espanha e se refugiara  na Grã-Bretanha, denunciando as malfeitorias de Filipe II de Espanha em obras que ajudaram a construir a lenda negra anti-espanhola), o Comentário de Daniel do espanhol Bento Pereira, o poema do judeu espanhol Juan Pinto Delgado, o Poema de la Reyna Ester ( editado em Rouen em 1627), a Esperança de Israel de Menasseh Ben Israel (Amesterdão, 1650), a Voyage d’Espagne de Mme Daunnoy (1666),  a Corona gothica, castellana y austriaca de Diego de Saavedra Fajardo, os Dialogos de Amor (trad. esp.) de Leon Abrabanel, filho de Isaac Abrabanel, conhecido como Leão Hebreu (Veneza,1568). Entre os filósofos, há nesta biblioteca obras de Maquiavel (5 vols., 1555), Aristóteles, Séneca, Epicteto, Maimónides (Guia dos Perplexos), várias obras de Descartes, Thomas More (Utopia), Grotius, Hobbes (Elementha philosophica sive De Cive, Paris, 1642), Francis Bacon. Nenhuma obra de Platão se inclui na biblioteca de Espinosa.
 
 
 
 
 
Esta continha ainda diversas obras de anatomia, medicina, matemática, álgebra, astronomia, óptica, relojoaria (como o famoso tratado de Christiaan Huygens sobre o relógio oscilatório), farmácia, política holandesa, além de várias edições bíblicas, hebraicas e cristãs, traduções da bíblia em latim, além da História dos Judeus de Flavius Josephus, léxicos talmudistas (v.g., o dicionário rabínico de H.C.Rogge, Amesterdão, 1640), e uma obra do judeu francês Isaac de la Peyrère sobre os Pré-Adamitas (Paris,1655), tema que interessou Espinosa. Petrarca figura também nesta lista de livros, com o Vita solitaria. Quanto aos autores antigos, há obras de Tácito, Homero, Júlio César, Virgílio, Ovídio, Tito Lívio, Salústio, Luciano, Aristóteles, Justiniano e Epicteto, embora Platão, como se viu, não figure neste rol.
António Damásio admira-se de que não houvesse Os Lusíadas entre os livros que Espinosa tinha na sua biblioteca, salientando que ali também não constavam autores como Shakespeare ou Marlowe, pondo a hipótese de que talvez o filósofo não se quisesse recordar de Portugal, sublinhando ainda que entre os seus livros não constavam nenhuns sobre música e pintura, concluindo, muito acertadamente, que seria “arriscado julgar os hábitos de leitura dos homens pelo tamanho e conteúdo da sua biblioteca”, além de que esta colecção de livros revela um certo “minimalismo que parece excessivo”.[9] Embora falasse português em sua casa, quando vivia com os pais e os irmãos, era natural que o jovem Bento não se sentisse atraído ou minimamente interessado pela épica nacional lusa, esse poema canónico da gesta marítima portuguesa e da ufania que celebrava “o peito ilustre lusitano”, além dos feitos históricos duma nação cristã que edificara um “novo reino” na sequência da viagem marítima de Vasco da Gama à Índia, na mesma altura em que D. Manuel expulsava de forma rudemente implacável os judeus do reino (édito de expulsão em 5-XII-1496, determinando a sua partida até Outubro de 1497), como o tinham feito algum tempo antes (1492) os monarcas espanhóis, como nos seus Ensaios Montaigne não deixaria de sublinhar[10] – sendo este autor uma das lacunas mais incompreensíveis na sua colecção de obras.
De qualquer modo, a questão da língua portuguesa de Espinosa, levantada por A. Damásio, e o facto intrigante da biblioteca de Espinosa quase não contar com livros nessa língua foi acertadamente sumarizado por Pierre-François Moreau, reputado especialista do espinosismo, ao dizer que a comunidade judia de Amesterdão usava tanto o espanhol como o português, o primeiro como língua de cultura, o último para a vida quotidiana.[11]
 
 


Casa de Espinosa em Rijnsburg, para onde se mudou após ser excomungado


 
 
3. A Holanda de Espinosa
A escolha de Amesterdão, essa “Jerusalém batávia”, como local de expatriação destes judeus portugueses tinha muito a ver com a natureza deste país protestante que era, sem dúvida, o mais tolerante na Europa de então e o refúgio natural das perseguições religiosas que sofriam nas suas terras de origem, estando desse modo a capital holandesa cheia de faces judias como aquelas que Rembrandt (1606-1669) abundantemente reproduzira na sua pintura e gravuras. A Holanda calvinista, porto de abrigo onde se acolhiam tantos refugiados marranos da Ibéria, era um país que combatera pertinazmente a ocupação espanhola e escolhera em dada altura a forma republicana de Estado, as Províncias Unidas do Norte reconhecidas pelo Tratado de Utreque de 1579 como uma república independente, continuando todavia os espanhóis na posse de algumas cidades no sul dos Países Baixos, até que em 1648 reconheceriam a independência das sete províncias neerlandesas. Esse país calvinista era um espaço de tolerância assinalável e excepcional na Europa monárquica do tempo, sendo as Províncias Unidas soberanas do Norte dirigidas por um governador (stadhouder). A Holanda independente tornara-se um país governada por uma burguesia mercantil de “regentes”, conhecendo então, no séc. XVII, uma fase de esplendor artístico, um verdadeiro “século de oiro” (Franz Hals, Rembandt, Vermeer, etc.) e científico, associado a uma riqueza que se acentuara com a expansão seiscentista marítima e o comércio no Oriente, onde os holandeses fora tomando as antigas possessões lusas e espanholas, o que os levaria ainda às Américas, onde criaram em 1623 a Nova Amesterdão (Nova Iorque), Curaçao nas Antilhas e até uma colónia no Brasil português/espanhol (Pernambuco) – durante a qual muitos judeus refugiados na Holanda participaram na ocupação do parte do território luso no Brasil, em Pernambuco, em 1637, erguendo no Recife uma sinagoga sefardita, a primeira no Novo Mundo americano.[12]
Foi nessa Holanda tolerante das Províncias Unidas do Norte, onde se criara uma estrutura capitalista, as companhias das Índias Orientais (1624) e Ocidentais (1602), gerindo através de sociedades por acções esse novo império colonial holandês que se foi estendendo até às Américas e Batávia (hoje Jacarta, Indonésia), que Descartes decidira viver desde 1629 e depressa o seu ensinamento era comentado nas universidades holandesas, como em Utreque, tendo discípulos em Leiden, só abandonando a Holanda em 1649, convidado pela rainha Cristina da Suécia a ir para a corte sueca, onde faleceu pouco tempo volvido (1650). Em suma, foi nesta acolhedora – e durante algum tempo republicana – Holanda do séc. XVII,[13] quando os Países Baixos se tornavam um dos centros mais importantes da civilização ocidental, que Espinosa produziu a sua obra filosófica, de algum modo estimulado por um francês seu vizinho,  que ele só conhecia pelos livros, trinta e seis anos mais velho do que o marrano português e um dos grandes fundadores da filosofia moderna. [14]
Quando o tio de Miguel Espinosa, Abraão, faleceu, em 1627, o seu cadáver foi trazido de Roterdão para o cemitério judeu de Amesterdão, ficando enterrado ao lado de Sara, a primeira mulher do pai de Bento Espinosa. Miguel seria, entretanto, feito parnas (intendente), um dos membros dirigentes da sinagoga portuguesa, aquela mesma onde conheceria o rabino Menasseh Ben Israel, que lhe dedicaria a edição em português de Esperança de Israel, o famoso tratado messiânico. Mercador de sucesso, embora não sendo rico, Miguel faria algumas doações para os fundos da sinagoga portuguesa, falecendo em 1654, ou seja, dois anos antes de Bento ser excomungado pela templo no qual seu pai era um dos parnassim. Note-se que alguns judeus eram sócios da companhia das Índias Orientais, como foi o caso de Isaac Aboab de Fonseca. O pequeno Bento perderia a mãe Hana Débora (1638) antes de fazer seis anos, sendo esta enterrada em Beth Haim, o cemitério judeu de Ouderdek. Miguel esposara sucessivamente três mulheres, primeiro Raquel, depois Hanna Débora e, por fim, Ester. A única irmã da mesma linha materna seria Miriam, já que os demais meio-irmãos provinham das outras duas esposas de Miguel. A infância de Bento passou-se largamente em torno das sinagogas portuguesas, Beth Jacob e Beth Israel, e, a partir de 1638, da sinagoga unida de Talmud Torah, que o futuro filósofo frequentava em companhia de Miguel e do seu tio Isaac. Esta última era ainda visitada por curiosos da vida judaica na Holanda, sendo os ofícios do Shabbath uma mistura de liturgias orientais e hispânicas, onde havia também elementos do médio oriente, soltando brados e meneando ritmicamente as cabeças. Aquele era um meio no qual os judeus de origem portuguesa se consideravam a si mesmos como uma elite superior, com sangue de David. Um depoimento da época refere que os portugueses da Aliança garantiam que o Messias viria duma tribo que falava português, convicção difundida já no séc. XVI pelo místico Isaac Luria (1524/34–1572), o grande mestre cabalista de Safed. Se nos templos cristãos a música era proibida e os órgãos só tocavam depois da cerimónia religiosa terminar, já nas sinagogas ela estava fortemente presente, desde as guitarras da Renascença aos cantos ritmados, dum lirismo e dramatismo muito hispânicos, além de que na festa do Purim, em honra da rainha Ester, esta era tratada por “santa” e alguns aspectos do carnaval ibérico emergiam na celebração, como o uso de máscaras grotescas.
Tinha Bento oito anos quando se deu o deplorável caso de Uriel da Costa (ou Acosta ou D’Acosta ou ainda Gabriel da Costa, vivendo em Portugal como marrano),  que acabaria expulso da sinagoga por alegadamente a ter insultado, fugindo então para Hamburgo, donde voltaria, aceitando desculpar-se, lendo a confissão dos seus erros e sendo flagelado com 39 chicotadas no templo judaico, após o que, mais tarde, se suicidaria.[15] Esta cena dramática e degradante deve seguramente ter traumatizado o jovem Espinosa, o qual, como observa a sua biógrafa Gulan-Whur, percebia que “a comunidade judia era tão brutal como a holandesa”,[16] ainda que, na sua obra, não haja uma única referência directa ao caso doloroso do judeu castigado pelo seus correligionários – ressalve-se, contudo, uma alusão ao farisaísmo de alguns judeus que instigam Inquisições pondo a lei de Moisés acima da piedade, a qual não deixa, assim, de ser um eco deste episódio amargo –, ainda que o fenómeno do suicídio fosse examinado nas suas obras.
A verdade é que, em vez de prosseguir os estudos de aprofundamento do judaísmo que o poderiam levar ao rabinato, Espinosa, depois de frequentar a escola judia de Ets Haim e a yeshiva de Keter Torah, não seguiu a tradição sefardita de se tornar num hakkam (sábio, rabino), antes frequentou alguns cristãos dissidentes, estudando a fundo a obra de Descartes – que , como acima se viu, vivera na Holanda, com algumas curtas interrupções, desde 1629 a 1649, fazendo diversos discípulos e debatendo naquele país  as suas doutrinas -, cuja doutrina resumiu num opúsculo acima citado, frequentando ou lendo os livros de alguns espíritos suspeitos de “cepticismo”, “epicurismo”, cartesianismo e “libertinismo”. A tertúlia intelectual de Espinosa incluía figuras judias como Menasseh Ben Israel,[17] Saul Morteira – que, contudo, seria depois um dos juízes mais severos, responsável pelo herem de 1656 – e Juan de Prado, um marrano vindo de Espanha. Bento escolheu, em suma, uma via diferente do judeu expatriado na Holanda tolerante, interessando-se pela matemática e pela física, lendo os autores judeo-espanhóis como Maimónides e Crescas, relacionando-se com o já referido Christiaan Huygens (1629-1693) – famoso sábio e inventor de instrumentos telescópicos que, além de ter estabelecido a teoria do pêndulo que usaria para a regulamentação dos relógios, concebeu um telescópio que lhe permitiu descobrir o anel de Saturno e duma teoria ondulatória sobre a refracção e a reflexão da luz, bem como de um tratado completo sobre o cálculo de probabilidades. Espinosa, a optar pela modesta profissão de polidor de lentes para lupas, microscópios e telescópios,[18] mester relacionado com o seu interesse por óptica e pela física, tendo ainda gerido, de parceria com o irmão Gabriel, um negócio de importação-exportação de frutas, período de formação intelectual que ocuparia os anos de 1643 até ao herem de 1646.
Não sendo fluente em holandês, Bento estudou na escola o espanhol necessário para ler a literatura castelhana, o que parece confirmar a sua relativa ignorância dos autores lusos, embora em casa falasse com os pais e irmãos em português, língua predominante nas sinagogas lusas de Amesterdão. Na escola de Franciscus (Franz) Van den Enden[19]  − um ex-jesuíta herético de origem francesa que seria executado em França como conspirador contra a realeza −, aprenderia o filósofo o latim no qual havia de escrever toda a sua obra filosófica. É também nesse mesmo período temporal que Espinosa se afasta da lei da sua nação e se orienta, através da razão e duma mente nada religiosa, antes adoptando um cogito de cânone matemático-geométrico, influenciado pelo cartesianismo, cosmovisão que não podia deixar de conduzir à ruptura com o judaísmo. Como observou o seu citado biógrafo Johan Colerus, ministro luterano de Haia, que no séc.XVIII publicou uma pequena biografia da sua vida, o autor da Ethica “tornou-se bastante reservado quanto aos doutores judeus, de que evitou o comércio tanto quanto lhe foi possível, e que o viram raramente nas suas sinagogas (…), e que os irritou extremamente contra ele”, acabando por o excomungar, expulsar e vituperar.[20] Um pintor polaco oitocentista, Samuel Hirszenberg,[21] deu-nos, na escassa imagética em torno da vida do nosso filósofo, um raro quadro de excepcional interesse, pintado em 1907, representando um jovem absorto, de típico chapéu escuro cobrindo-lhe os cabelos negros, mostra-nos Espinosa passeando no meio duma rua de Amesterdão, totalmente absorto e alheio, lendo na rua, um livro que segura na mão direita, observado por diversos judeus horrorizados: esta imagem representa sem dúvida a solidão dum descrente a mover-se solitariamente sem se dar conta da hostilidade religiosa que o cerca, exprimindo com especial realismo o papel representado por Espinosa no episódio que culminou no herem de 1656.
Em suma, Espinosa foi um refractário que acabaria por se afastar, ainda jovem,   da lei de Moisés. Daniel Lindenberg chama-lhe “um intelectual absoluto”, “uma figura de déviant” que no mundo judeu justificava “a assimilação total, assumida como fusão no Universal, repúdio dos diversos elos tribais” e que “conscientemente preferiu apostar na cidadania moderna em lugar da «Eleição» dos seus pais. Este procedimento solitário tornou-se hoje a coisa mais partilhada depois da Revolução Francesa, a qual realizou, incluso no que diz respeito aos «Israelitas», o programa do Tratado teológico-político”,[22] o que fez dele alguém que autores destacados como Mauss, Brunschvicg, Edgar Morin e Lévi-Strauss fariam seu –, um inovador ousado mas prudente, cujo lema caute (o emblema circular desta divisa espinosista de prudência incluía, no centro, uma rosa, símbolo do secretismo, cercada das suas três iniciais, BdS), levaria a evitar-lhe um destino tão abrasivo como o de Uriel da Costa. No campo teológico, metafísico e político, recorde-se o seu extraordinário Tratado Teológico-político, livro publicado anonimamente em latim (só seria traduzida para hebreu, em 1868, em Viena) − seria a sua grande obra editada em vida, com quatro edições no ano de em 1670, obra fundadora do pensamento democrático moderno[23] −, com a qual este filósofo benedictus/maledictus prolongaria uma série de esboços de “heresia” e de abandono de tradições institucionais da sua Nação de exilados perpétuos, embora o fizesse numa linha também judaica de auto-ultrapassagem ideológica e religiosa, constituindo-se como um “judeu não-judeu” segundo a expressão adequada de Isaac Deutscher [24] − na qual se podia também detectar o “ódio por si mesmo”(Selbsthass) que o judeu alemão Theodore Lessing estudou no seu La Haine de soi (1830).[25] Também se poderia recorrer à metáfora de George Steiner, definindo Espinosa como um desses “meta-rabinos”, tais como Marx, Freud, Kafka, Schönberg e Wittgenstein.[26]


Túmulo de Espinosa
 
Uma interessante obra recente, de pesquisa bastante alargada sobre a recepção de Espinosa até aos nossos dias, o bem documentado estudo de Daniel B. Schwartz, The First modern Jew (2012), estuda a odisseia póstuma do filósofo, desde Amesterdão à Palestina/Israel e de novo na Europa, a partir da imagem de herético solitário na Holanda, expulso da sinagoga até à sua reabilitação como um dos patronos da identidade judaica, a sua posição de precursor do sionismo e até as suas mais diversas leituras como pensador nacionalista do judaísmo ou cosmopolita, reformista, democrata, destacando-se finalmente como um símbolo do “primeiro judeu moderno” no qual várias gerações de intelectuais judeus – alemães liberais, maskilim do leste da Europa, sionistas seculares e escritores iídiches (como o grande autor judeu expatriado nos Estados Unidos, Isaac Bashevis Singer)[27] – projectaram os seus próprios dilemas de identidade, remodelando às suas próprias imagens, no marrano português, de modo que o solitário pensador foi motivo de celeuma, por alguns séculos, no campo judaico sobretudo quanto à maneira de desenhar as fronteiras da judeidade e ainda se uma identidade judia secular era possível, confirmando, através do caleidoscópio de autores em disputa quanto ao espinosismo, que o autor do Tratado teológico-político continua a ser uma obsessão para o povo da Aliança.
Nesta sua obra de grande interesse, Schwartz mostra que Espinosa, de rejeitado olhado como suspeito pelos próprios judeus, acabaria por se tornar num judeu de novo tipo, que punha a verdadeira questão a identidade judaica, com a pergunta: “o que é um judeu?”, ainda mais lancinante depois da criação do Estado judaico em 1948, na medida em que se, do séc. XVII aos nossos dias, o problema de saber se era possível “um judaísmo sem judeidade e uma judeidade sem judaísmo”, desde que se separou etnicidade e religião, tanto mais que o filósofo de Amesterdão desertara da sua religião sem aderir a nenhuma outra.[28] Depois, na sua Ethica, terminada em 1675 mas só publicada após da sua morte, tornava-se patente que a sua ética “não era mais a ética judia, mas a do homem em geral e o seu Deus não era mais o Deus judeu: intimamente misturado com a natureza, este perdia a sua identidade divina separada e distinta. Num sentido, contudo, o Deus e a ética de Espinosa continuavam a ser uma cosmovisão judia, com a diferença de que se tratava dum monoteísmo levado à sua conclusão lógica e do Deus universal judeu e pensado até ao fim; e pensado até ao fim, esse Deus deixava de ser judeu”, observa Deutscher.[29]
Por outro lado, como o mostrou o grande estudioso da mística judaica Gershom Scholem, no seu monumental estudo sobre o caso do pseudo-Messias Sabbatai Zevi, o filósofo tornado um modesto polidor de lentes para melhor levar uma vida apagada e inteiramente devotada ao cogito, apesar de contemporâneo desse messianismo que teve extraordinária voga em vários países europeus como a Alemanha, a Polónia e a Holanda, constituindo um autêntico terramoto místico-religioso que varreu o mundo desde Jerusalém e Alepo a Hamburgo, Amesterdão e Varsóvia, não mostrou qualquer interesse por essa epidemia milenarista iniciada pela acção do antigo rabino de Esmirna, o qual, finalmente seria preso pelos turcos (1666) e posto ante a opção entre a conversão ao islão ou a morte, preferindo a primeira hipótese, o que aliás não significaria o termo desse delírio milenarista, uma vez que muitos sequazes seus continuariam a segui-lo, embora continuassem fiéis à fé judia, mesmo após a morte do falso Messias em 1676. [30] 
João Medina
 


[1] Veja-se A. Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Princípios a 1668, vol. I, Lisboa, Caminho, 1987.
[2] Para a linhagem paterna e materna de Espinosa, veja-se a genealogia feita por Margaret Gullan-Whur, no seu Within Reason. A Life of Spinoza, Londres, Jonathan Cape, 1998, ilustr., p. XVI (árvore genealógica) e pp.6-8 (parentescos).
[3] Veja-se na Correspondencia de Espinosa, ed. e anotada por  Atilano Domíguez (Madrid, Alianza Editorial, 1988), as cartas trocadas entre E. e L., pp.296-298.
[4] Apud Atilano Domínguez, na sua introdução ao cit. volume de Correspondencia de Espinosa, , p.23.
[5] Johan Colerus diz que E. era duma constituição fraca, malsã, sendo magro e atacado de tísica desde os 20 anos, o que o obrigou a viver em regime e a ser extremamente sóbrio no seu beber e comer.”(Vies de S., ed. Allia, p.82).
[6] Stuart Hampshire (1914-2004 ), Spinoza, Harmondsworth, Penguin Books, 1953, p.227. Sir Stuart Newton Hampshire foi crítico literário e professor universitário, alistando-se no exército em 1940, servindo então nos serviços secretos, até 1947, ao lado do historiador Hugh Trevor-Roper, ensinando depois em Oxford e, de 1947 a 1950, no University College de Londres, onde sucedeu ao filósofo A. J. Ayer na cátedra de Filosofia. Em 1970 passou para o Wadham College de Londres, reformando-se em 1984. Foi nobilitado em 1979.
[7] Para a biografia detalhada de Espinosa, nomeadamente no tocante às suas origens portuguesas e meio lusófono da “Nação”( como a comunidade judia de origem lusa se chamava a si mesma, e não como “Nacion”), veja-se a recente e meticulosa obra supracitada de Margaret Gullan-Whur,  Within Reason. A Life of Spinoza; mapa de Amesterdão e os locais da vida de Espinosa: estampa 1, diante da p.206; família portuguesa de E.: pp. 1-14; árvore genealógica dos E.: p.XV; E. em Amesterdão: pp.18-39-38; vida de E. a partir da sua expulsão da sinagoga: pp.39-71; E. em  Rijnsburg: p.97 e ss e em Voorburg: p.128 e ss e 154 e ss. Os dados biográficos de E. que referimos neste estudo devem-se essencialmente a esta indispensável e recente obra, na qual se afirma que, até aos anos 30 do séc. passado, os estudiosos de E. cometiam o erro corrente de o referirem como judeu “Espanhol” (op. cit., p. 6). Todavia, esta autora insiste no facto de as referências a Portugal – vinham da Vidigueira, no Alentejo,  os seus avós – na sua obra serem nulas, e, ao contrário, encontram-se na sua biblioteca  muitos autores espanhóis como Francisco Suárez, assim como uma rara tradução castelhana de Calvino. Esta biógrafa recorda que os judeus portugueses de Amesterdão, como a família Nunes da Costa – a avó materna de E., Maria Nunes da Costa, do Porto, pertencia a esta família – enviaram dinheiro e armas para D. João VI quando Portugal de libertou do jugo espanhol (op. cit., p.9). Uma das primeiras biografias de E. foi a que publicou Jean Colerus, ministro luterano de Haia, escrita em francês, reeditada na mesma língua na obra que recolhia a lista dos livros da biblioteca do filósofo, inventário notarial feito aquando do seu falecimento, Inventaire des Livres formant la Bibliothèque de Benedict Spinoza (Haia e Paris, 1889, reed. em facsímil e adiante referida a propósito da dita biblioteca). A obra de Johan Colerus incluía essa biografia, intitulada Vie de Spinoza (pp.47-108), na qual o referido autor sublinhava, logo no começo do seu texto, a origem portuguesa de E.: “os seus pais, Judeus Portugueses, gente honesta e bem instalada, eram mercadores em Amesterdão” (ed. Vies de Spinoza, de J. Colerus e Jean Maximilin Lucas, Paris, Editions Allia, 2002, p. 9).
[8] Veja-se a reed. facsimilada do Inventaire des Livres formant la Bibliothèque de Benedict Spinoza publiée après un Document inédit, avec les Notes biographiques et bibliographiques et une Introduction par A.J. Servais Van Rooijean, Haia e Paris, W.C.Tenegler e Paul Monnerat, 1888, reed. da Kessinger Legacy Reprints, s.l.n.d..
[9] A, Damásio, Ao Encontro de Espinosa, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003, pp.292-3.
[10] Sobre a posição de Montaigne, pensador de origem judaica ibérica, em relação à expulsão dos judeus portugueses, veja-se o nosso estudo “O Segredo judaico de Montaigne (A questão da sua origem marrana e as fontes portuguesas dos seus Ensaios no tocante às perseguições dos judeus em Portugal)”,  Caderno de Estudos Sefarditas, Lisboa, nº 9, pp.11-34.
[11] Pierre-François Moreau, Spinoza et le Spinozisme, 3ª ed., Paris, Presses Universitaires de France, col. Que Sais-Je?, 2011. Sobre os judeus portugueses e espanhóis, veja-se o capítulo “Héritages espagnol et portugais”, pp.22-3, sublinhado Moreau que essa comunidade chamada portuguesa vinha sobretudo de Lisboa, Porto e Coimbra, trazendo com ela uma rica herança ibérica, uma vez que a suas origens tinha a ver com a decisão da expulsão dos monarcas espanhóis em 1492 (a que se seguira a expulsão lusa de 1497).Veja-se ainda, deste mesmo autor, o seu Spinoza, Paris, Editions du Seuil, 1975, ilustr (com um facsímil do herem).
[12] Veja-se: -Leonardo Dantas Silva,  1630-1654. Holandeses em Pernambuco,  Recife,  Instituto Ricardo Brennand, 2005, ilustr., maxime pp.67-75 (cristãos-novos e judeus no Recife, em Pernambuco) e pp.261-271 (os judeus do Recife, onde existiu a primeira sinagoga do Novo Mundo, deixam o Brasil e seguem para outras regiões americanas, como a América do Norte, em Nova Iorque). –Tânia Neumann Kaufman, Passos perdidos, História recuperada. A presença judaica em Pernambuco - Brasil, 4ªed., Recife,  Ensol Lda, 2005, ilustr., maxime pp.35-33 (judeus holandeses no Brasil de Maurício de Nassau.). reja-se ainda o nosso estudo Portuguesismo(s).(Acerca da Identidade nacional), Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006, no capítulo VI, “O «Povo errante» - Os judeus expulsos, perseguidos e queimados”(pp.460-526), duas fotos da portuguesa sinagoga Touro de Newport (Rhode Island), onde se acolheram judeus portugueses vindos da Holanda no séc. XVIII (1758).
[13] Para conhecimento da vida dos marranos fugidos da Ibéria para a capital holandesa, veja-se o capítulo “A Jerusalém holandesa” do estudo de Cecil Roth, Histoire des Marranes, Paris, Liana Levi, 202, pp.187-198 (Espinosa: maxime pp.195-7; os sabataístas em Amesterdão: pp.1978). Cecil Roth (1899-1970), historiador judeu inglês, é autor de vários estudos pioneiros sobre os judeus ibéricos, como The Spanish Inquisition (1937) e da referida história dos marranos portugueses e espanhóis (1932), além de uma reputada biografia do judeu madeirense Manuel Dias Soeiro (Madeira, 1604 – Amesterdão, 1657), mais conhecido como Menasseh Ben Israel (vide infra), Mennasseh Ben Israel, Rabbi, Printer and Diplomat (Filadélfia, Jewish Publication Society in America, 1934).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       
[14] Espinosa publicou em 1663, já tinha Descartes falecido, o seu estudo Renati Descartes principiorum philosophiae, editado por Johannes Rieuwerte em Amesterdão, a sua única obra assinada com o seu nome. Veja-se esta obra, em trad. franc., Les Principes de la Philosophie de Descartes démontrés selon la Méthode geoméytrique,  no vol.I das Oeuvres de Spinoza, trad. e notas de Ch. Appuhn, Paris, Garnier Frères, 1907, pp.549-425. Ver ainda Colerus, op. cit., p.113.
[15] Veja-se a edição bilíngue (latim e esp.) da autobiografia de Uriel da Costa, Espejo de una Vida humana ou Exemplar humanae Vitae, Madrid, Libros Hiperión, 1985, trad. e notas de G. Albiac; flagelação: pp..42-45. Consulte-se também  I.S.Révah, Uriel da Costa et les Marranes de Porto, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2004, com muitas referências a Bento Espinosa, Miguel E. e Miriam E.). Veja-se Jean-Pierre Osier, D’Uriel da Costa à Spinoza, Paris, Berg International, 1983.
[16] M. Gullann-Whur, op. cit., p.38.
[17] Sobre Menasseh Ben Israel (Manuel Dias Soeiro, seu nome em Portugal, 1604-1657), veja-se o seu retrato na p.484 do nosso supracitado livro Portuguesismo(s), bem como a sua biografia, idem, pp.484-5. Quanto a Espinosa, veja-se o seu retrato, gravura do séc. XVII, p.486 e biografia pp.487-91. Cecil Roth publicou uma biografia de referência sobre M. Ben Israel, acima citada.
[18] A biógrafa Margaret Gullan-Whur põe a hipótese de a sua actividade no domínio óptico ser um disfarce para Bento poder contactar com correspondentes e visitantes sem medo de ser censurado por uma companhia duvidosa (op. cit, p.118). Sobre as relações entre Christiaan Huygens (1629-1695) e Espinosa, ver op. cit., pp.170-3.O sábio e inventor holandês iria viver para Paris, para ali ajudar a criar a Academia Real de Ciências, referindo-se a Espinosa, nas suas cartas ao irmão, como “o Judeu” ou “o Israelita”.
[19] Sobre a vida de Van den Enden e as suas relações com Espinosa, bem como a sua conjura contra o rei de França, veja-se a nutrida atenção que lhe dedica Steven Nadler, Espinosa. Vida e Obra, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003, pp.114-20
[20] J. Colerus, La Vie de Spinoza, 1706, in Colerus/Lucas, Vies de Spinoza, Paris, Editions Allia, 2002, pp.14-15 e 17.
[21] O pintor judeu polaco Samuel Hirszenberg (Lodz, 1865 - Jerusalém, 1908), fez estudos artísticos em Krakov, Munique (1885-1889) e Paris, regressando à Polónia em 1891, dedicando-se a temas judaicos (repouso sabático, cemitério hebreu, o Judeu errante, Espinosa e Uriel da Costa, etc.), expondo sem grande sucesso essa temática em Paris (1900. Emigrou em 1907 para a Palestina, ali falecendo. Este quadro de Espinosa a ler na rua é reproduzido a cores, na capa do livro de Daniel B. Schwartz, The First Modern Jew. Spinoza and the History of an Image,  Princeton e Oxford, Princeton University Press, 2002, e a preto e branco na p.110. O mesmo artista fez outro quadro, Uriel da Costa e Espinosa, em 1888, reproduzido também neste livro (p.168), ocupando-se este das relações do caso Uriel com o nosso filósofo (pp.107-9).
[22] Daniel Lindenberg, Destins marranes. L’Identité juive en question, Paris, Hachette, 2004, p.185 e 186.
[23] Veja-se Espinosa, Traité théologico-politique, vol. II de Oeuvres de Spinoza, t.II, trad. de Ch. Appuhn, Paris, Librairie Garnier Frères, s.d. Vide Etienne Balibar, Spinoza et la Politique, Paris, Presses Universitaires de France. 1985, maxime pp.35-62 pp.63-90 (sobre o Tratado teológico-político). Veja-se ainda Jonathan Israel, A Revolution of the Mind. Radical Enlightenment end the intellectual Origins of modern Democracy, Princeton e Oxford, Princeton University Press, 2010, obra à qual damos adiante especial atenção.
[24] Veja-se Isaac Deustcher (1907-1967), Essais sur le Problème juif, pref. de Tamara Deutscher, Paris, Payot, 1969 (ed. ingl., The Non Jewish Jew, 1968, pp.35-54). Deutscher começa por recordar uma passagem dum texto judaico que o impressionara muito, quando ainda jovem, a história do rabino Meir, grande santo e sábio no meio dos talmudistas judeus, que recebia lições de teologia dum herético chamado Elishas Ben Abiyud, dito Akher (o Estrangeiro), e que, num dia de shabbatt, encontrando-se com o seu mestre, travou com este uma discussão erudita, indo o guru montado num burro e o seu discípulo a pé, uma vez que não podia montar num animal num dia santo como aquele. E iam os dois tão absorvidos na discussão religiosa que não teve Meir consciência de que tinham ultrapassado a fronteira ritual para os judeus num dia como aquele. O herético virou-se então para o seu aluno ortodoxo e disse que tinham passado a raia, pelo que tinham de se separar, não podendo o seu discípulo continuar mais, pelo que lhe pedia que voltasse atrás. O rabi Meir assim o fez, enquanto o herético, porque o era, continuou o seu caminho e, desse modo, ultrapassou os limites do judaísmo. Desta história talmúdica conclui Deutscher que alguns judeus, desde o séc. XVII, tinham, feito como o herético, i.e, tinham prosseguido a sua viagem para além do perímetro judaico – Espinosa (pp.38-40. ed. francesa cit.), Heine, Marx (pp.40-1, 43-4), Rosa Luxemburgo, Trotsky (pp.44-6 e 49-50) e Freud (pp.46-7), examinando cada um destes casos especiais. Todos eles, nota I.D., eram judeus que viviam no cruzamento de civilizações, de religiões e de culturas nacionais diversas ou entre épocas diferentes, e todos eles tinham ido além desses limites, quebrando com os dogmas do judaísmo, passando a ser “judeus não-judeus”. Quanto a Espinosa, começando por fazer uma crítica moderna da Bíblia judaica, pondo o seu dedo sobre a contradição cardial do judaísmo, aquela que opõe um Deus monoteísta e universal às condições com que Deus se apresenta na religião judaica, ou seja como o Deus dum povo único, o que separa um povo eleito e um Deus universal. Foi por isso excomungado pela sinagoga de Amesterdão, mas, ao contrário de Uriel da Costa, pôde harmonizar as influências rivais e chegar nessa base a uma concepção mais elevada do mundo e a uma filosofia integrada (op. cit., pp.39-40). Os demais judeus citados fizeram algo de parecido. O essencial do caminho de Espinosa foi o de chegar a um Deus que deixava de ser judaico. O judeu polaco I. Deutscher nasceu em 1907, em Chzanov, na Polónia, ingressou no clandestino PC polaco, visitou a URSS em 1931, tornou desiludido ao seu país, criando um partido trotskista, acabando por se exilar na Inglaterra em Abril de 1939, escrevendo no The Economist e no diário Observer, encetando após a guerra uma intensa carreira de estudioso do movimento comunista, nomeadamente as biografias de Estaline (1949) e a grande trilogia sobre Trotsky (1954-1963), dando ainda aulas em Cambridge, Princeton e na Columbia University. Faleceu em Roma, em 1967. A sua obra póstuma, The Non-Jewish Jew and other Essays (N. Iorque, Oxford University Press, 1968) é uma importante reflexão sobre a identidade judaica. Lembremos uma reflexão central de um dos ensaios desse livro: “Religião? Sou um ateu. Nacionalismo judeu? Creio no internacionalismo. Portanto, não sou judeu em nenhum desses dois sentidos. Contudo, sou judeu na sequência da minha solidariedade incondicional com as pessoas que são perseguidas e exterminadas. Sou judeu porque sinto a tragédia judia como a minha própria tragédia; porque tenho debaixo dos dedos o pulso da história judia; porque quereria fazer tudo o que está no meu poder para assegurar aos judeus uma segurança, um respeito não falseado.”(trad. franc. cit., p.66).
[25] Theodore Lessing (Hanover, 1873-1933), La Haine de Soi. Le refus d’être juif, Paris, Berg International, 2010, maxime pp.50-77. O caso de Espinosa não é referido nesta obra.
[26] G. Steiner apud D. Lindenberg, op. cit., p. 185.
[27] Daniel B. Schwartz, The First modern Jew Spinoza and the History of an Image, Princeton e Oxford, Princeton University Press, 2012. Quanto a “Espinosa redivivus no séc.XX”, vide pp.189-201; no tocante a E. como “precursor do sionismo”, vide pp.116-124; no referente ao E. visto pelo grande escritor iídiche polaco expatriado nos E.U.A., Isaac. B. Singer, vide pp.155-62, 165-8 e 170-6, com especial interesse nos seus romances A Família Moskat, Sombras sobre o Hudson e ainda o conto O Espinosa do Mercado público, além das memórias No Tribunal do meu Pai.
[28] D. Schwartz, op. cit., maxime pp.1-13 e pp.189-201. Quanto à posição ainda mais radical de Shlomo Sand (nasc. em Linz, Áustria, em 1946, professor na Universidade de Telaviv desde 1985) no tocante o à questão de “o que é ser judeu?”, vejam-se os seus livros Comment la Terre d’Israël fut inventée. De la Terre sainte à la Mère Patrie (Paris, Champs, col. Histoire, 2014, no qual desenvolve a ideia de Israel como um “miterritório” (mytherritoire, i.e., um “território mito, ver pp.105-78), e sobre “sionismo versus judaísmo”(pp.261-368) e o provocador Comment j’ai cesse d’être Juif (Paris, Champs, col. Actuel, 2015, maxime pp.133-9, onde afirma que se quer “demitir” de ser judeu, rompendo definitivamente com o “judeocentrismo tribal” e a essa “etnia fictícia de membro de um clube de eleitos”, pelo que se demitia e cessava de se considerar judeu, tendo “a consciência de viver numa das sociedades mais racistas do mundo ocidental”, pp.133-5).
[29] I. Deutscher, Essais sur le Problème Juif (no original inglês, insistamos, esta obra chamava-se The Non-Jewish Jew), pp.41-2.
[30] Veja-se Gershom Scholem (Berlim, 1897 - Jerusalém, 1982), Sabbataï Tsevi. Le Messie mystique, 1626–1676, Paris, Éditions Verdier, 2008 (maxime pp. 502-528: o sabataísmo em Amesterdão; pp.526-7 e 528: posição de E.). Numa carta que enviou a Espinosa, de Londres, em 8-XII-1665, o seu assíduo correspondente cristão Oldenburg diz que corre o rumor de que “os israelitas na diáspora há mais de dois mil anos, regressam à sua pátria. Neste país, poucos o crêem mas muitos o desejam”, notícia que, a ser exacta, “me parece que provocaria uma catástrofe de todas as coisas no mundo”, pedindo-lhe a sua opinião (Espinosa, Correspondência, ed cit., p.243-44). Não se sabe se Espinosa lhe terá respondido, Quanto a Scholem, este, lembrando que no TTP, o filósofo afirmara que, “se algum dia os judeus, quando a ocasião se apresente,(…), reconstruiriam o seu Estado, e Deus os elegeria de novo” (TTP, p.133), deplora que a resposta de E. a Oldenburg tenha desaparecido (Sabbataï Tsevi, p.527). G. Scholem é um dos mais competentes historiadores da mística hebraica, com obras sobre as grandes tendências do misticismo judeu, a cabala, o Zohar, a gnose hebraica e o cit. estudo sobre Sabbatai Zevi, deixando ainda uma notável autobiografia, De Berlim a Jeriusalém.Memórias da minha Juventude (1977). Foi íntimo amigo de Walter Benjamin e polemicou com Hannah Arendt por causa do famoso livro desta sobre Eichmann julgado em Jerusalém. Quanto a Zevi, nasceu este em 1626 na Turquia governada pelos otomanos, foi rabino de Esmirna, convencendo-se de que era o Messias esperado pelos seus correligionários, atraindo em seu redor uma multidão de discípulos fervorosos que percorreram parte da Europa no sentido de fazerem convergir os judeus em Jerusalém, onde aquele seria aclamado em 1665 como “Ungido do Senhor”. Preso pelos otomanos, que lhe deram a escolher entre converter-se ao islão ou ser morto. Zevi optou pela primeira solução (16-IX-1666), assim como muitos sabataístas seguiram a sua apostasia, embora se mantivessem secretamente judeus, formando uma seita que duraria largo tempo. Duas obras literárias do séc. XX evocam de modo impressionante a aventura dos discípulos de Zevi na Europa do Norte: a de Jakob Wassermann (1873-1933), Les Juifs de Zirndorf, Paris, Pierre Jean Oswald, 1973 (obra publicada em 1897); e a de Isaac Bashevis Singer (Varsóvia, 1904 – Miami, 1991), Satan in Goray, Londres, Vintage/Random House, 2000. O livro de J.W. descreve o nascimento, no séc. XVII, da emigração dos judeus da aldeia de Zirndorf, provocada pelo anúncio da chegada à terra santa do pretenso Messias, Sabbatai Zevi, êxodo detido pela intervenção armada da polícia de Nuremberga. O romance de I.B.S. descreve os conflitos violentos entre um grupo de sabataístas num shtetl polaco, Goray, no qual a comunidade judaica se cinde em duas facções opostas, uma que pretende convencer os habitantes a deixarem tudo e partirem sem demora para Jerusalém de modo a assistirem à consagração do anunciado libertador e outra que não aceita essa impostura. Esta obra, publicada em iídiche, em 1935, na Polónia, tinha um claro sentido metafórico essencial, já que assimilava o estalinismo e o nazismo a formas da mesma ficção tirânica e messiânica que Sabbatai Zevi representara no séc. XVII. Singer partiria nesse mesmo ano para os Estados Unidos, recebendo em 1978 o prémio Nobel da literatura. Na supracitada obra de Steven Nadler, Espinosa. Vida e Obra, este autor dá especial atenção ao fenómeno de Zevi, o pseudo-Messias, no contexto do milenarismo dos judeus de Amesterdão (op. cit., pp.255-260), observando que o filósofo deve ter observado o sabataísmo na Holanda, “na melhor das hipóteses, de uma forma divertida e, possivelmente, com desdém pelo seu comportamento supersticioso e ridículo, Esta aventura, sem dúvida, veio confirmar tudo o que pensava e tudo o que escrevera sobre as formas como a credulidade e as emoções das pessoas vulgares podem ser manipuladas pelas autoproclamadas autoridades religiosas.” (p. 260).
 
 


1 comentário:

  1. A "Ética demonstrada a maneira dos geômetra", de Spinoza, é o maior tratado sobre a Alma Humana.
    Acho que o autor daquele escrito, foi o Cristo, que vinha em sonho para ditar para Spinoza, todas as noites,. só pode ter sido.

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