(dedicado
ao Fernando Rosas)
Sumário:1.A caminho do poder; 2. A
equipe ministerial (Setembro de 1944);3. Atrás de um programa: modernizar sem
reformar; 4. Remodelação dos Governadores; 5. A situação nas colónias do Oriente;
6. A revisão do Acto Colonial (1945); 7. A longa viagem a África (1945);8. O
“Memorandum” sobre a África Austral, de 1946; 9. Do regresso à saída do Ministério
(Fevereiro de 1947);10. O saldo e a carreira
1.
A
caminho do poder
Em
meados de 1942, por iniciativa própria, Marcelo Caetano apelava a Salazar para
que reagisse contra o «estado moral do
País e em especial acerca da marcha da Revolução Corporativa nos seus aspectos
social e económico»[1].
Insistiu, durante 1943, reputando o Governo de mal informado por «a situação moral [ser] muito má e cada vez pior», aconselhando
a prestar «atenção à frente interna,
procurar melhorar o ambiente, pensar a sério numa política social […][2] ,
e sugerindo até «uma renovação do pessoal dirigente»[3]. Só
no início de 1944, Salazar, pela mesma via, começou a responder-lhe
pessoalmente: lamentava que as observações de Marcelo Caetano – «provavelmente
muito verdadeiras e justas» – não viessem acompanhadas com «alguma coisa de
positivo sobre a maneira de agir ou algumas precisões em matéria de facto» que
o ajudassem a proceder sobre o que, apesar de tudo, também considerava meras deficiências
da acção concreta e respectivos métodos[4].Na
sequência de tal convite, Marcelo Caetano apresentou umas “lembranças de
algumas medidas” urgentes – espécie de “programa de governo” em 17 alíneas, na
qual, quanto a África, destacava apenas a necessidade resolver «o problema da
colonização»[5].
A
gravidade da crise política era evidente: o regime dava «claros sintomas de
divisão quanto à estratégia a adoptar no futuro próximo»[6] e
o próprio Salazar mostrava uma «aparente
indiferença» pela situação interna, concentrando-se nos problemas
internacionais[7].
Em Fevereiro de 1944, decidiu convocar o II Congresso da União Nacional
(comemorativo do 18.º aniversário do “28 de Maio”), para a reactivar, relançar
a importância da política, unir as
hostes do regime contra a oposição, enfrentar a crise de ordem subsequente à
guerra, e mesmo, se necessário, rever a doutrina do Estado através de uma
revisão constitucional[8]. A
crise governamental estava «dada como assente»[9] e,
em meados de Junho, Salazar começou a preparar
um elenco governativo que enfrentasse o pós-guerra.
Apoiado
na sua corte e por sugestão de Pedro Teotónio Pereira, convocou Marcelo Caetano
para uma conversa, que este narra pormenorizadamente[10]. Salazar
começou por propor-lhe o Ministério da Justiça mas Marcelo Caetano recusou (por
“subalterno”), preferindo a Assistência Social (sobre a qual elaborara em 1943
um parecer que, acrescenta, reforçara a reputação que «já tinha, no público, de
homem desassombrado e, no Governo, de amigo incómodo»[11]);
acordaram no Ministério das Colónias, por Salazar o ter convencido tratar-se de
um «vastíssimo campo de acção», onde se encontrava «o futuro da Nação, o seu
grande destino histórico», ficando assente ser altura de começar a mudar de
rumo na política imperial, descentralizar, escolher bons governadores, e contar
com as ideias que depois da guerra viriam da América do Norte[12].
Até
então, apesar de alguma evidência política associada à extrema-direita e
colaboração de assessoria ao Governo (incluindo na preparação da Constituição
de 1933), Marcelo Caetano privilegiara a carreira universitária, Depois do
doutoramento, iniciara em Outubro de 1933 a actividade docente encarregando-se
da cadeira de Direito Administrativo e do curso de Administração Colonial. A
primeira era nuclear e quanto a este último, tomou «a sério, o encargo», então
«reduzido a meia dúzia de aulas dadas no segundo semestre lectivo, em que eram
enunciadas algumas definições», estudando «largamente as questões que deviam
estar dentro do seu âmbito»[13].
Assim, deu-lhe um desenvolvimento nunca até aí conhecido na Faculdade, incluindo
a publicação, no fim do ano lectivo, de umas lições universitárias, com um
impacto que iria revelar-se decisivo para o seu futuro político[14]. Logo
em 1935, como director cultural, acompanhou o 1.º Cruzeiro de Férias às
Colónias para estudantes, organizado pela Agência Geral das Colónias – que iria
considerar o «ponto de partida para uma nova visão da vida colonial»[15].
Um seu biógrafo assinala-o mesmo como «um dos eventos mais marcantes da vida de
Marcello Caetano, confirmando a sua profunda vocação colonialista que possuía
desde a infância»[16].
No regresso do Cruzeiro, narrou muito do que viu, quer ao Ministro das Colónias
quer a Salazar – que o «ouviu «com paciência, rebateu algumas críticas e
explicou orientações discutidas»[17] –,
e publicou vários artigos, usados para um primeiro livro sobre a colonização
portuguesa[18].
Cooptado
para vogal do Conselho do Império Colonial, ficara também a conhecer
razoavelmente o Ministério das Colónias, onde trabalhou nas secções de
Administração e de Finanças e Economia, tomou conhecimento dos «mais variados
casos da vida pública do Ultramar Português» e contactou «com governantes e
funcionários das diversas províncias e de todas as hierarquias»[19].
A regência do curso da Administração Colonial permitiu-lhe ainda «acompanhar a
doutrina que ia sendo formada na Grã-Bretanha, na França, na Bélgica e noutros
países coloniais» e teorizar a experiência portuguesa[20]. Em
1940, não aceitou um convite para Subsecretário de Estado das Colónias[21].
2.
A
equipe ministerial (Setembro de 1944)
Apesar
da sua pouca importância no xadrez político português da época, o Ministério
das Colónias iria proporcionar-lhe aos 38 anos de idade um fulgurante início da
carreira de governante. Nomeado em 6 de Setembro de 1944, substituía Francisco
Vieira Machado – «que voltava ao seu Banco Nacional Ultramarino, deixando fama
duvidosa no exercício governamental»[22]. Embora
entrando no Ministério «com alguma preparação e certo conhecimento da casa»[23],
no acto de posse limitou-se a um breve discurso: ressalvou que o cargo lhe
trazia um «pesado - e até doloroso… - sacrifício», pois, por um lado, a sua
vocação era a Universidade e, por outro, tinha de deixar a “Mocidade
Portuguesa”, de que era Comissário Nacional há quatro anos. Comprometeu-se a
assegurar a continuidade da política colonial do Estado Novo, embora destacasse
que continuidade não implicava imutabilidade, antes «adaptar e desenvolver o
pensamento essencial todas as vezes que as circunstâncias o exigem»[24].
Começou
por montar uma equipa coesa. O chefe de gabinete e um secretário eram
familiares e foi buscar J. M. Silva Cunha, seu assistente universitário. Como Subsecretário
de Estado manteve o Engenheiro Rui de Sá Carneiro, que vinha exercendo funções
desde 26 de Janeiro de 1943 e mostrara ser um «técnico competente, meticuloso,
de inteligência subtil»[25]. Entre
os seus mais importantes colaboradores, encontravam-se os “africanistas” e
velhos amigos engenheiro António Vicente Ferreira e Henrique Galvão.
O
primeiro, vogal do Conselho do Império Colonial, fora Alto Comissário em Angola
e Vice-Presidente da 1.ª Conferência Económica do Império Colonial Português. No
recente II Congresso da União Nacional apresentara uma ambiciosa tese sobre a
“Colonização étnica da África Portuguesa”, defendendo o fomento da economia
colonial e a missão dos colonos agrícolas como criadores de futuras
«nacionalidades de língua portuguesa»[26].
Henrique
Galvão era Inspector Superior da Administração Colonial e Marcelo Caetano
resolveu encarregá-lo imediatamente de um inquérito aos organismos de
coordenação económica imperial. A qualidade do trabalho realizado permitiu-lhe
remodelar os quadros directivos dos organismos e adoptar «normas rigorosas para
procedimentos destes» [27]. Logo
de seguida, o Ministro encarregou Henrique Galvão de realizar o mesmo tipo de
inquérito em Angola e Moçambique e de simultaneamente preparar um relatório onde
apurasse «discretamente o grau de inobservância da legislação do trabalho
indígena» e propusesse medidas adequadas «para o regresso à normalidade»[28].
Ainda colaborarão durante a viagem ministerial a África e, durante a estadia em
Angola, na campanha eleitoral das eleições legislativas de Novembro de 1945, em
que Marcelo Caetano o impôs como candidato por Angola. Porém, as relações entre
ambos passarão depois por várias crises políticas e pessoais, atingindo a
ruptura em 22 de Janeiro de 1947, quando Henrique Galvão, na qualidade de
deputado, apresentou um (primeiro) “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas
nas Colónias”, ainda Marcelo Caetano era Ministro.
António Duarte Silva
[1] Carta de 19 de
Junho de 1942, apud José Freire Antunes, Salazar
e Caetano – Cartas Secretas, 1932-1968, Círculo de Leitores, 1993, p. 104.
[2] O essencial
desta correspondência foi seleccionado pelo próprio Marcello Caetano, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa,
Verbo, 1977, pp. 152 e segs.
[4] Carta de
Marcelo Caetano de 25 de Janeiro, carta de Salazar de 10 de Fevereiro, carta de
Marcelo Caetano de 10 de Fevereiro, carta de Salazar de 15 de Fevereiro, todas
de 1943, ibidem, pp. 117/119.
[6] Fernando Rosas,
O Estado Novo (1926-1974) - História de Portugal (dir. José Mattoso) -
Sétimo Volume, Círculo de Leitores, 1994, p. 371.
[8] Manuel Braga da
Cruz, “União Nacional”, in António Barreto e Maria Filomena Mónica (coord.), Dicionário de História de Portugal,
Volume IX, Porto, Figueirinhas, 2000, p. 550.
[9] Franco
Nogueira, Salazar – As grandes crises
(1936-1945), Vol. III, Coimbra. Atlântida Editora, 1978, p. 499.
[10] Além de Marcello
Caetano, Minhas Memórias…, cit., pp.
7/10 e 177/182, ver também José Manuel Tavares Castilho, Marcelo Caetano – Uma biografia política, Coimbra, Almedina, 2012,
pp. 185 e segs., e Luís Meneses Leitão, Marcello
Caetano – Um destino, Lisboa, Quetzal, 2014, pp. 261/263.
[14] Ver Luís
Meneses Leitão, Marcello Caetano – Um
destino, cit., pp. 181/182, e Mário Neves, Direito Público Colonial Português (segundo as lições do Prof. Doutor
Marcel Caetano, coligidas por Mário Neves), Lisboa, [s.n.]. 1934.
[15] Afirmação de
Marcelo Caetano destacada e enquadrada por Maria Cardeira da Silva e Sandra
Oliveira, “Paquetes do Império. O ‘Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias’”,
in M. Cardeira da Silva (org.), Castelos
a Bombordo. Lisboa, FCSH, CRIA, 2013, p. 277.
[16] Luís Menezes
Leitão, op. cit., p. 223. O Arquivo Marcello Caetano contém 12
documentos sobre o “Cruzeiro de férias às Colónias”.
[18] Idem, Perspectivas da vida política, da economia,
e da vida colonial, Lisboa, Livraria Morais, 1936.
[21] Segundo carta
de 10 de Outubro de 1940, na posse de Marcelo Rebelo de Sousa e revelada por
Diogo Freitas do Amaral, O antigo regime
e a revolução, Lisboa, Bertrand, 1995, p. 146. O Subsecretário de Estado nomeado
foi Francisco José Caeiro. Antes, em Abril de 1933, Marcelo Caetano recusara
ser Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social – cfr. Luís
Menezes Leitão, op. cit., pp 166 e
segs.
[22] José-Augusto
França, O «Ano XX» - Lisboa, 1946. Estudo
de Factos Socioculturais, Lisboa, INCM, 2012, p. 110.
[24] Cfr. “Discurso do sr. Prof. Marcelo Caetano -
Acto de posse do Ministro das Colónias” In Boletim
Geral das Colónias, n.º 230-231, Agosto/Setembro de 1944, pp. 14 e 12,
respectivamente.
[26] Cfr. Fernando
Rosas, Portugal entre a paz e a guerra –
1939-1945, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, p. 444, e Rui Ferreira da Silva,
“No II Congresso da União Nacional – Racismo e colonização étnica de Angola”,
in História, Ano XVII (Nova Série),
n.º 9, Junho 1995, pp. 20 e segs..
[28] Ibidem, p. 193. O Arquivo Marcelo Caetano contém 22 documentos sobre estes
“Inquéritos de Henrique Galvão”.
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