domingo, 15 de abril de 2018

Marcelo Caetano, Ministro das Colónias, e o destino (1)

 
 
 
 
(dedicado ao Fernando Rosas)
 
 
Sumário:1.A caminho do poder; 2. A equipe ministerial (Setembro de 1944);3. Atrás de um programa: modernizar sem reformar; 4. Remodelação dos Governadores; 5. A situação nas colónias do Oriente; 6. A revisão do Acto Colonial (1945); 7. A longa viagem a África (1945);8. O “Memorandum” sobre a África Austral, de 1946; 9. Do regresso à saída do Ministério (Fevereiro de 1947);10. O saldo e a carreira
 
 
 
1.     A caminho do poder
Em meados de 1942, por iniciativa própria, Marcelo Caetano apelava a Salazar para que  reagisse contra o «estado moral do País e em especial acerca da marcha da Revolução Corporativa nos seus aspectos social e económico»[1]. Insistiu, durante 1943, reputando o Governo de mal informado por «a situação moral [ser] muito má e cada vez pior», aconselhando a prestar «atenção à frente interna, procurar melhorar o ambiente, pensar a sério numa política social […][2] , e sugerindo até «uma renovação do pessoal dirigente»[3]. Só no início de 1944, Salazar, pela mesma via, começou a responder-lhe pessoalmente: lamentava que as observações de Marcelo Caetano – «provavelmente muito verdadeiras e justas» – não viessem acompanhadas com «alguma coisa de positivo sobre a maneira de agir ou algumas precisões em matéria de facto» que o ajudassem a proceder sobre o que, apesar de tudo, também considerava meras deficiências da acção concreta e respectivos métodos[4].Na sequência de tal convite, Marcelo Caetano apresentou umas “lembranças de algumas medidas” urgentes – espécie de “programa de governo” em 17 alíneas, na qual, quanto a África, destacava apenas a necessidade resolver «o problema da colonização»[5].
A gravidade da crise política era evidente: o regime dava «claros sintomas de divisão quanto à estratégia a adoptar no futuro próximo»[6] e o próprio Salazar mostrava  uma «aparente indiferença» pela situação interna, concentrando-se nos problemas internacionais[7]. Em Fevereiro de 1944, decidiu convocar o II Congresso da União Nacional (comemorativo do 18.º aniversário do “28 de Maio”), para a reactivar, relançar a importância da política, unir as hostes do regime contra a oposição, enfrentar a crise de ordem subsequente à guerra, e mesmo, se necessário, rever a doutrina do Estado através de uma revisão constitucional[8]. A crise governamental estava «dada como assente»[9] e,  em meados de Junho, Salazar começou a preparar um elenco governativo que enfrentasse o pós-guerra.
Apoiado na sua corte e por sugestão de Pedro Teotónio Pereira, convocou Marcelo Caetano para uma conversa, que este narra pormenorizadamente[10]. Salazar começou por propor-lhe o Ministério da Justiça mas Marcelo Caetano recusou (por “subalterno”), preferindo a Assistência Social (sobre a qual elaborara em 1943 um parecer que, acrescenta, reforçara a reputação que «já tinha, no público, de homem desassombrado e, no Governo, de amigo incómodo»[11]); acordaram no Ministério das Colónias, por Salazar o ter convencido tratar-se de um «vastíssimo campo de acção», onde se encontrava «o futuro da Nação, o seu grande destino histórico», ficando assente ser altura de começar a mudar de rumo na política imperial, descentralizar, escolher bons governadores, e contar com as ideias que depois da guerra viriam da América do Norte[12].
Até então, apesar de alguma evidência política associada à extrema-direita e colaboração de assessoria ao Governo (incluindo na preparação da Constituição de 1933), Marcelo Caetano privilegiara a carreira universitária, Depois do doutoramento, iniciara em Outubro de 1933 a actividade docente encarregando-se da cadeira de Direito Administrativo e do curso de Administração Colonial. A primeira era nuclear e quanto a este último, tomou «a sério, o encargo», então «reduzido a meia dúzia de aulas dadas no segundo semestre lectivo, em que eram enunciadas algumas definições», estudando «largamente as questões que deviam estar dentro do seu âmbito»[13]. Assim, deu-lhe um desenvolvimento nunca até aí conhecido na Faculdade, incluindo a publicação, no fim do ano lectivo, de umas lições universitárias, com um impacto que iria revelar-se decisivo para o seu futuro político[14]. Logo em 1935, como director cultural, acompanhou o 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias para estudantes, organizado pela Agência Geral das Colónias – que iria considerar o «ponto de partida para uma nova visão da vida colonial»[15]. Um seu biógrafo assinala-o mesmo como «um dos eventos mais marcantes da vida de Marcello Caetano, confirmando a sua profunda vocação colonialista que possuía desde a infância»[16]. No regresso do Cruzeiro, narrou muito do que viu, quer ao Ministro das Colónias quer a Salazar – que o «ouviu «com paciência, rebateu algumas críticas e explicou orientações discutidas»[17] –, e publicou vários artigos, usados para um primeiro livro sobre a colonização portuguesa[18].
Cooptado para vogal do Conselho do Império Colonial, ficara também a conhecer razoavelmente o Ministério das Colónias, onde trabalhou nas secções de Administração e de Finanças e Economia, tomou conhecimento dos «mais variados casos da vida pública do Ultramar Português» e contactou «com governantes e funcionários das diversas províncias e de todas as hierarquias»[19]. A regência do curso da Administração Colonial permitiu-lhe ainda «acompanhar a doutrina que ia sendo formada na Grã-Bretanha, na França, na Bélgica e noutros países coloniais» e teorizar a experiência portuguesa[20]. Em 1940, não aceitou um convite para Subsecretário de Estado das Colónias[21].
 
2.     A equipe ministerial (Setembro de 1944)
Apesar da sua pouca importância no xadrez político português da época, o Ministério das Colónias iria proporcionar-lhe aos 38 anos de idade um fulgurante início da carreira de governante. Nomeado em 6 de Setembro de 1944, substituía Francisco Vieira Machado – «que voltava ao seu Banco Nacional Ultramarino, deixando fama duvidosa no exercício governamental»[22]. Embora entrando no Ministério «com alguma preparação e certo conhecimento da casa»[23], no acto de posse limitou-se a um breve discurso: ressalvou que o cargo lhe trazia um «pesado - e até doloroso… - sacrifício», pois, por um lado, a sua vocação era a Universidade e, por outro, tinha de deixar a “Mocidade Portuguesa”, de que era Comissário Nacional há quatro anos. Comprometeu-se a assegurar a continuidade da política colonial do Estado Novo, embora destacasse que continuidade não implicava imutabilidade, antes «adaptar e desenvolver o pensamento essencial todas as vezes que as circunstâncias o exigem»[24].
Começou por montar uma equipa coesa. O chefe de gabinete e um secretário eram familiares e foi buscar J. M. Silva Cunha, seu assistente universitário. Como Subsecretário de Estado manteve o Engenheiro Rui de Sá Carneiro, que vinha exercendo funções desde 26 de Janeiro de 1943 e mostrara ser um «técnico competente, meticuloso, de inteligência subtil»[25]. Entre os seus mais importantes colaboradores, encontravam-se os “africanistas” e velhos amigos engenheiro António Vicente Ferreira e Henrique Galvão.
O primeiro, vogal do Conselho do Império Colonial, fora Alto Comissário em Angola e Vice-Presidente da 1.ª Conferência Económica do Império Colonial Português. No recente II Congresso da União Nacional apresentara uma ambiciosa tese sobre a “Colonização étnica da África Portuguesa”, defendendo o fomento da economia colonial e a missão dos colonos agrícolas como criadores de futuras «nacionalidades de língua portuguesa»[26].
Henrique Galvão era Inspector Superior da Administração Colonial e Marcelo Caetano resolveu encarregá-lo imediatamente de um inquérito aos organismos de coordenação económica imperial. A qualidade do trabalho realizado permitiu-lhe remodelar os quadros directivos dos organismos e adoptar «normas rigorosas para procedimentos destes» [27]. Logo de seguida, o Ministro encarregou Henrique Galvão de realizar o mesmo tipo de inquérito em Angola e Moçambique e de simultaneamente preparar um relatório onde apurasse «discretamente o grau de inobservância da legislação do trabalho indígena» e propusesse medidas adequadas «para o regresso à normalidade»[28]. Ainda colaborarão durante a viagem ministerial a África e, durante a estadia em Angola, na campanha eleitoral das eleições legislativas de Novembro de 1945, em que Marcelo Caetano o impôs como candidato por Angola. Porém, as relações entre ambos passarão depois por várias crises políticas e pessoais, atingindo a ruptura em 22 de Janeiro de 1947, quando Henrique Galvão, na qualidade de deputado, apresentou um (primeiro) “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”, ainda Marcelo Caetano era Ministro.
 
António Duarte Silva






[1] Carta de 19 de Junho de 1942, apud José Freire Antunes, Salazar e Caetano – Cartas Secretas, 1932-1968, Círculo de Leitores, 1993, p. 104.


[2] O essencial desta correspondência foi seleccionado pelo próprio Marcello Caetano, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa, Verbo, 1977, pp. 152 e segs.


[3] Carta de 1 de Março de 1943, apud José Freire Antunes, op. cit., pp. 112/113.


[4] Carta de Marcelo Caetano de 25 de Janeiro, carta de Salazar de 10 de Fevereiro, carta de Marcelo Caetano de 10 de Fevereiro, carta de Salazar de 15 de Fevereiro, todas de 1943, ibidem, pp. 117/119.


[5]  Carta de Marcelo Caetano de 17 de Fevereiro de 1943, ibidem, pp. 120/122.


[6] Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974) - História de Portugal (dir. José Mattoso) - Sétimo Volume, Círculo de Leitores, 1994, p. 371.


[7] Marcello Caetano, Minhas Memórias…, cit, p. 167,


[8] Manuel Braga da Cruz, “União Nacional”, in António Barreto e Maria Filomena Mónica (coord.), Dicionário de História de Portugal, Volume IX, Porto, Figueirinhas, 2000, p. 550.


[9] Franco Nogueira, Salazar – As grandes crises (1936-1945), Vol. III, Coimbra. Atlântida Editora, 1978, p. 499.


[10] Além de Marcello Caetano, Minhas Memórias…, cit., pp. 7/10 e 177/182, ver também José Manuel Tavares Castilho, Marcelo Caetano – Uma biografia política, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 185 e segs., e Luís Meneses Leitão, Marcello Caetano – Um destino, Lisboa, Quetzal, 2014, pp. 261/263.


[11] Marcello Caetano, Minhas Memórias…, cit., pp. 156/157.


[12] Ibidem, pp. 181/182.


[13] Idem, Depoimento, Rio de Janeiro/São Paulo, Distribuidora Record, 1974, p. 23


[14] Ver Luís Meneses Leitão, Marcello Caetano – Um destino, cit., pp. 181/182, e Mário Neves, Direito Público Colonial Português (segundo as lições do Prof. Doutor Marcel Caetano, coligidas por Mário Neves), Lisboa, [s.n.]. 1934.


[15] Afirmação de Marcelo Caetano destacada e enquadrada por Maria Cardeira da Silva e Sandra Oliveira, “Paquetes do Império. O ‘Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias’”, in M. Cardeira da Silva (org.), Castelos a Bombordo. Lisboa, FCSH, CRIA, 2013, p. 277.


[16] Luís Menezes Leitão, op. cit., p. 223. O Arquivo Marcello Caetano contém 12 documentos sobre o “Cruzeiro de férias às Colónias”.


[17] Marcello Caetano, Minhas Memórias…, cit., p. 11.


[18] Idem, Perspectivas da vida política, da economia, e da vida colonial, Lisboa, Livraria Morais, 1936.


[19] Idem, Minhas Memórias…, cit. p. 9.


[20] Ibidem.


[21] Segundo carta de 10 de Outubro de 1940, na posse de Marcelo Rebelo de Sousa e revelada por Diogo Freitas do Amaral, O antigo regime e a revolução, Lisboa, Bertrand, 1995, p. 146. O Subsecretário de Estado nomeado foi Francisco José Caeiro. Antes, em Abril de 1933, Marcelo Caetano recusara ser Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social – cfr. Luís Menezes Leitão, op. cit., pp 166 e segs.


[22] José-Augusto França, O «Ano XX» - Lisboa, 1946. Estudo de Factos Socioculturais, Lisboa, INCM, 2012, p. 110.


[23] Marcello Caetano, Minhas Memórias…, cit., p. 9.


[24]  Cfr. “Discurso do sr. Prof. Marcelo Caetano - Acto de posse do Ministro das Colónias” In Boletim Geral das Colónias, n.º 230-231, Agosto/Setembro de 1944, pp. 14 e 12, respectivamente.


[25] Franco Nogueira, Salazar…, cit., p. 548.


[26] Cfr. Fernando Rosas, Portugal entre a paz e a guerra – 1939-1945, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, p. 444, e Rui Ferreira da Silva, “No II Congresso da União Nacional – Racismo e colonização étnica de Angola”, in História, Ano XVII (Nova Série), n.º 9, Junho 1995, pp. 20 e segs..  


[27] Cfr. Marcello Caetano, Minhas Memórias…, pp. 191/192.


[28] Ibidem, p. 193. O Arquivo Marcelo Caetano contém 22 documentos sobre estes “Inquéritos de Henrique Galvão”.



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