47.
Como tem sido observado por alguns
comentadores de A Grande Onda, a
xilogravura de Katsushika Hokusai – e aqui residiu um dos seus principais atractivos
no Ocidente de finais do século XIX, que de algum modo se prolonga até aos
nossos dias – captura a acção de um dos poderes elementares da Natureza, o mar
em fúria, razão pela qual teve um impacto profundo sobre a imaginação romântica
oitocentista e o seu culto do sublime.
Por outro lado, a sua proveniência de
um lugar remoto e exótico, impregnado de uma cultura em larga medida
idealizada, pode levar-nos a concluir que o japonisme,
de um modo geral, e o fascínio pela Grande
Onda, em particular, confirmam a afirmação de Said segundo a qual «o
Oriente é menos importante como material humano do que como elemento de um
projecto redentor romântico» (cf. Edward W. Said, Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente, tradução
portuguesa, Lisboa, Livros Cotovia, 2004, p. 180).
A pertinência desta observação, quando aplicada
à obra de Katsushika Hokusai, torna-se mais evidente se tivermos presente que,
ao contrário do que poderia sustentar uma visão romantizada dessa obra, as
xilogravuras do ukiyo-e visavam
satisfazer desejos de consumo populares e, digamos assim, «de massas». A Grande Onda, bem como todas as
gravuras da série Trinta e Seis Vistas do
Monte Fuji, entre os milhares que se produziram em Edo na altura, serviam,
de certo modo, como os pósteres da actualidade, sendo ademais desvalorizadas
pelas elites japonesas da altura como expressão de um gosto marcadamente
popular e pouco sofisticado.
Em face disto, não deixa de ser irónico
que, com o passar dos anos, e muito por efeito da sua recepção e difusão no
Ocidente, A Grande Onda tenha
adquirido um estatuto de símbolo nacional nipónico ou seja vista como expressão
da quintessência da identidade japonesa no que esta tem de mais elaborado ou
complexo.
A constatação desta ironia aprofunda-se
se pensarmos que este processo não se cinge à Europa ou à América, tendo sido
incorporado – pelas mais diversas razões, incluindo turísticas ou comerciais –
no Japão, que só recentemente começou a valorizar o trabalho de Hokusai e em
especial A Grande Onda, o que talvez
seja, ao cabo e ao resto, um reflexo, mais um reflexo, da ocidentalização do
país iniciada no pós-2ª Guerra Mundial.
O conhecimento das condições materiais
de criação, produção e comercialização de A
Grande Onda não implica necessariamente retirar-lhe o seu carácter
«aurático» (Walter Benjamin), que é autónomo e se desenvolve independentemente
daquele específico circunstancialismo histórico.
Além disso, se em A Grande Onda podemos ver tão-só a representação de uma actividade laboral
corrente – a pesca e o transporte de peixe para o mercado de Tóquio –,
retratada para mais ao gosto popular e numa linguagem visual «fácil», não é
menos certo que nesta e noutras obras de Hokusai a marca da sua espiritualidade
é muito vincada, designadamente na figuração do Monte Fuji. Simplesmente, esses
dois aspectos – o comercial e o espiritual – não são, e sobretudo não eram no
Japão daquela época, antagónicos ou contraditórios, sobretudo
se tivermos presente que a espiritualidade do autor (e do editor, Nishimuraya
Yohachi) era uma religiosidade «popular» e compósita, que agregava diversos
elementos (v.g., o culto da Estrela do Norte) que de modo algum se excluíam
entre si, como observa Angus Lockyer no ensaio «Hokusai’s thought», in Timothy
Clark (ed.), Hokusai. Beyond the Great
Wave, Thames & Hudson-The British Museum, 2017, pp. 28ss.
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