48.
A imagem de Hokusai suscita a questão,
óbvia e irrecusável, de saber que destino terão os tripulantes dos oshiokuri-bune logo que a grande onda
desabar em seu redor.
O rosto fechado e inexpressivo dos
marinheiros levaria a crer que estão prestes a morrer, mantendo todavia a
fleuma sacrificial e o empenho em chegar ao seu destino, cumprindo a missão de entregar
a sua carga de peixe no mercado de Edo.
A dimensão da onda, de dez a doze
metros, e o efeito visual criado por Hokusai para a tornar ainda maior (cf.
Notas sobre a Grande Onda – 45), favorecem a impressão de uma morte iminente,
quase suicidária.
Theodore Géricault, La Radeau de la Méduse, 1819
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Seria tentador, perante isso, fazer
analogias com outras obras de arte produzidas pela mesma altura, como La Radeau de la Méduse, que Théodore
Géricault pintou entre 1818 e 1819, ou seja, não muito antes de Hokusai iniciar
a série Trinta e Seis Vistas do Monte
Fuji.
Poder-se-ia, no mesmo sentido, convocar
as considerações do filósofo alemão Hans Blumenberg em Naufrágio com Espectador. Paradigma
de uma metáfora da existência (tradução portuguesa, Lisboa, Vega, 1990), as
quais assentam apenas em referências ocidentais no que à representação do mar diz
respeito – ainda assim, o carácter potencialmente universalizável de algumas
dessas referências faz com que o ensaio de Blumenberg seja tratado numa próxima
Nota.
A impressão de uma morte iminente permitiria,
de igual modo, traçar um ponto de contacto com as imagens jornalísticas de
pessoas about to die, para usar o
título do ensaio de Barbie Zelizer (About
to Die. How News Images Move the Public, Oxford, Oxford University Press,
2010). Entre as dezenas de exemplos apresentados por Zelizer, escolhe-se um
relacionado com a realidade japonesa: o homicídio em 1960 de Inejiro Asanuma,
líder do Partido Socialista do Japão, morto a golpes de sabre durante um debate
televisivo por Otoya Yamaguchi, um estudante nacionalista de extrema-direita, de
dezassete anos, imagem captada por Yasushi Nagoa, repórter do diário de Tóquio Mainichi e difundida pela UPI por todo o
mundo (cf. Barbie Zelizer, ob. cit.,
pp. 183ss).
Simplesmente, há razões para crer que,
pese o dramatismo da cena retratada, os marinheiros de A Grande Onda não se encontram na iminência de morrer (ou não se
encontram necessariamente na
iminência de morrer). O perigo está presente, como é óbvio, e o risco de morte
também. Aliás, é muito mais na instauração da dúvida do que na assunção
definitiva da morte iminente que reside um dos grandes tópicos narrativos da
xilogravura de Katsushika Hokusai.
Quanto
ao mais, ela corresponde à ilustração de uma jornada de trabalho no mar,
reconhecível pelos potenciais compradores da gravura que aspiravam tê-la como
ornamento nos seus lares. Esta conclusão decorre, com bastante fluidez e
segurança, de outras figurações marítimas feitas por Hokusai, em que os
vestígios do perigo são muito menores. Pese as dimensões das ondas, o modo como
são apresentadas afasta do espectador qualquer dúvida sobre um desfecho fatal
para os tripulantes dos navios que, bem ou mal, parecem adaptar-se ao
gigantismo das vagas.
Katsuhika Hokusai, Chōsi na província de Shōshū (da série Mil Retratos do Mar, 1833)
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Katsushika Hokusai, Oshiokuri hatō tsūtsen no zu, 1804-1806
Museu da Cidade de Nagoya
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Os
exemplos mais ilustrativos são Chōsi na
província de Shōshū (da série Mil
Retratos do Mar, Chie no umie, de
1833), posterior à Grande Onda, mas
também duas gravuras anteriores a ela: Oshiokuri
hatō tsūtsen no zu, de 1804-1806, e Kanagawa
oki Honmoku no zu, de 1807-1809.
Há
ainda um exemplo merecedor de realce pela sua grande afinidade com A Grande Onda. Trata-se de um desenho de
1835-1838 destinado à impressão de uma xilogravura da série Cem Poemas por Cem Poetas, Explicados pela
Nutriz. Conservado no Victoria and Albert Museum, de Londres, o desenho
evoca o poeta Fujiwara no Tadamichi (1096-1164) e também ele mostra um navio
que tenta libertar-se das garras ou tentáculos ameaçadores de uma onda de
grandes proporções. Uma vez mais, e como acontecia no modo de representação
japonês, a leitura deve ser feita da direita para a esquerda, sendo deste lado
que surgem os elementos novos que dão entrada em cena.
Desenho «Poeta Fujiwara no Tadamichi» (da série Cem Poemas por Cem Poetas, Explicados pela Nutriz, 1835-1838)
Victoria and Albert Museum, E.3716-1910
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É
possível sustentar, assim, que A Grande
Onda surge como um prolongamento ou está na linha dessas figurações,
aditando-lhe tão-só elementos que reforçam a noção de risco ou possível
tragédia, com uma evocação possível da proximidade da morte, mas sem que esta
se possa considerar central para a dinâmica da representação.
Quando
muito, suscita-se no observador a inquietação sobre o destino final dos
navegantes após a rebentação da onda, mas não é possível afirmar, de modo
algum, que A Grande Onda é o retrato inequívoco
da morte prestes a acontecer.
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