segunda-feira, 16 de abril de 2018

Marcelo Caetano, Ministro das Colónias, e o destino (2)

 
 


 
 
3.     Atrás de um programa: modernizar sem reformar
Além da prática dos actos de gestão corrente – agravada pelas sequelas da guerra e, em especial, pelas dificuldades de comunicações –, logo em 7 de Outubro comunicou a Salazar a sua intenção de alterar a Carta Orgânica do Império Colonial[1]. Mas a sua primeira medida legislativa fora a extensão da Mocidade Portuguesa a todas as colónias, o que, além do mais, implicava passar a pertencer aos governadores e comissários coloniais a competência ministerial e a do Comissariado Nacional, constantes do diploma que instituíra a Mocidade Portuguesa na Metrópole[2].
Aproveitou a presidência da sessão plenária do Conselho do Império Colonial, em 23 de Outubro, para apresentar publicamente as linhas gerais do seu programa político. O Ministro seria «um servidor da política definida pelo Acto Colonial e pelos diplomas que o completam»[3]. Os dois termos fundamentais de tal política decorriam do artigo 2.º do Acto Colonial: colonizar, civilizar. Para civilizar as populações indígenas, havia que «continuar a proteger, desenvolver e multiplicar a obra das missões religiosas»; além delas, o Governo continuaria a insistir em «serviços de assistência sanitária adequados, autoridades compenetradas do seu papel de protecção aos indígenas, nomeadamente como fiscais rigorosos do regime legal de trabalho»[4]. Quanto à função de colonizar, inclinava-se para a “colonização livre”: o Estado devia «sobretudo criar as condições da colonização, cuidando da formação dos quadros técnicos, orientadores e dirigentes, e do apetrechamento económico das colónias». Por isso, as condições indispensáveis ao fomento da colonização eram, em seu entender, várias: «desenvolvimento dos serviços de saúde, de obras públicas, de agricultura e de pecuária, o aperfeiçoamento das redes de comunicações internas das grandes colónias com o exterior, a multiplicação de escolas para educar os filhos dos colonos»[5]  
 Em finais de 1944 começou a ser publicada a vasta legislação entretanto preparada no Ministério, fruto da nova “dinâmica” que o Ministro pretendia, «exigindo informações dos serviços, procurando resolver dificuldades e inquirir de queixas apresentadas»[6]. A 2 de Novembro, o Decreto n.º 34.076 reorganizou os serviços de correios, telégrafos e telefones de todo o Império Colonial Português. A 13 de Novembro, o Decreto n.º 34.107 estabeleceu as condições a observar na prestação contratual de serviço ao Estado nas colónias. A 6 de Dezembro foram publicados, de uma assentada, dez diplomas que, além de várias alterações à legislação administrativa e fiscal, criaram novos serviços, entre os quais os serviços de saúde (Decreto n.º 34.172), o Gabinete de Urbanização Colonial (Decreto n.º 34.173) e os serviços meteorológicos de Cabo Verde (Decreto n.º 34.174).
Outra das preocupações imediatas foi a abertura de um serviço noticioso permanente e exclusivo, na Metrópole e em cada colónia, para o que promoveu a criação da agência noticiosa Lusitânia, subsidiada pelo Estado. Solenemente inaugurada em 30 de Dezembro de 1944 – antecedida por um processo pouco transparente se não “conspirativo” (sobretudo contra o rebaptizado Secretariado Nacional de Informação, dirigido por António Ferro), e por Salazar não ter concedido «as duas palavras pedidas» para a transmissão inaugural [7] –, beneficiava do estatuto de serviço de iniciativa privada que estaria, nas palavras do seu director e proprietário Luís Caldeira Lupi, «exclusivamente devotada aos interesses da nação inteira» e apenas dependente do Ministro das Colónias, que a acolhia e “alentava”[8].
Defensor da “colonização livre regulada” – que reservasse aos brancos a função de enquadrar e dirigir a mão-de-obra indígena e destinasse aos negros um mero papel de produção –, Marcelo Caetano era de opinião que o povoamento das colónias não deveria ser livre, em grande escala e financiado pelo Estado, mas sim regulamentado, feito com colonos especializados e associado ao conhecimento científico do meio colonial que permitisse o estabelecimento de medidas de assistência sanitária e técnicas adequadas[9]. Para tal, já durante o primeiro semestre de 1945, em 21 de Fevereiro, o Decreto n.º 34.417 reorganizou os serviços de saúde em todo o Império e, em 27 de Março, o Decreto-Lei n.º 34.464 (com um relatório que enunciava claramente a política de colonização pretendida) atribuiu uma dotação extraordinária a fim de fomentar o povoamento das colónias e estreitar as relações espirituais destas com a metrópole (o chamado “Fundo de Povoamento”). Depois, em 3 de Abril, o Decreto-Lei n.º 34.478 organizou as missões antropológicas e etnológicas para o estudo das populações do ponto de vista bio-étnico; em 1 de Maio, o Decreto n.º 34.562 regulou a indústria de seguros no ultramar; em 16 de Maio, o Decreto n.º 34.611 criou a Missão de Estudo e Combate da Doença do Sono na Guiné; em 28 de Maio, o Decreto n.º 34.633 criou um Fundo de crédito rural em Moçambique; em 8 de Junho, o Decreto n.º 34.657 isentou de direitos de importação os livros de carácter científico, literário, artístico e pedagógico; e, em 21 de Junho, o Decreto-Lei nº 34.682 criou a missão hidrográfica de Cabo Verde.
 
4.     Remodelação dos Governadores
Ainda em meados de Dezembro de 1944, Marcelo Caetano começara a tratar – «com o máximo escrúpulo»[10] e de concerto com Salazar – da nomeação de novos Governadores para a Guiné e para S. Tomé e Príncipe.
A Guiné apresentava várias vantagens geo-estratégicas e pretendia-se fazer dela uma “colónia-modelo”. Marcelo Caetano procurava uma equipa que saneasse a Guiné «do ambiente de depressão e intriga em que constantemente se debatia», cujos trabalhos começariam «por um exaustivo conhecimento científico das possibilidades da terra e da gente» e prosseguissem através de uma «completa ocupação sanitária, educacional e política». Apontando o perfil desejável para «um oficial da Marinha de Guerra, corporação com tradições tão ligadas à colónia»[11], Marcelo Caetano escolheu o capitão-tenente Sarmento Rodrigues, apesar de tido politicamente como «um dos representantes da tendência conservadora-liberal e maçónica que apoiou o Estado Novo» [12], e não o conhecer pessoalmente, apenas através das crónicas jornalísticas publicadas no Diário de Lisboa[13]. Apresentado a Salazar, em carta de 20 de Dezembro de 1944, e designado pelo Conselho de Ministros, de 5 de Fevereiro de 1945, Sarmento Rodrigues, nos três anos e três meses de exercício efectivo de funções na Guiné, privilegiou quatro áreas: a)- o desenvolvimento e consolidação da administração colonial; b)- a promoção dos “assimilados”, o tratamento “paternal” dos indígenas e a manutenção das alianças com as etnias muçulmanas; c)- o conhecimento científico, histórico e cultural da Guiné e dos seus povos; e d)- a construção da rede de infra-estruturas indispensáveis a uma política de desenvolvimento económico-social[14]. Será, de seguida, Ministro das Colónias e do Ultramar, de 2-8-1950 a 7-7-1955, e tornar-se-á um arauto do luso-tropicalismo.
Quanto a S. Tomé e Príncipe, o processo de designação do Governador foi semelhante. Marcelo Caetano decidiu, primeiro, não reconduzir o anterior Governador (Amadeu Gomes de Figueiredo) e elaborou, para aprovação pelo Conselho de Ministros, uma lista com três nomes[15]. Foi escolhido o major Carlos de Sousa Gorgulho, por – além de considerado capaz de desenvolver a desejada política de limitação da prepotência e abusos dos roceiros, incentivar a mão-de-obra local, realizar obras públicas e sociais, e melhorar as desumanas condições de vida dos trabalhadores nativos – ser «enérgico, honesto e extraordinariamente trabalhador»[16]. O seu primeiro mandato (1945-1949) mereceu nota positiva e recondução – que terminaria muito mal, em 1953, com o “massacre de Batepá”[17].
Em Maio de 1945 propôs a Salazar para Governador da Índia o então Secretário-Geral do Ministério, José Ferreira Bossa, anterior Ministro das Colónias, que no II Congresso da União Nacional, em Maio de 1944, apresentara uma tese de reorganização do Império, eliminando a terminologia “imperial”, e que, no seu entender, preenchia as condições de «homem experiente, com prestígio […], arreigados sentimentos patrióticos e religiosos, formação jurídica […] e compreensão do meio e da gente»[18]. Ferreira Bossa irá ensaiar uma reorganização administrativa que, na conjuntura complexa da independência próxima da Índia, visava consolidar a soberania portuguesa e fazer intervir os goeses na gestão da colónia. Escreveu a Gandhi e, acreditando numa votação favorável à manutenção portuguesa, defendeu mesmo a realização de um plebiscito para a população do Estado da Índia decidir do seu futuro. Como também entrara em conflito com algumas elites goesas, foi sumariamente demitido, em 1947, pelo novo Ministro das Colónias, Teófilo Duarte[19].
Manteve, porém, os Governadores nomeados pelo anterior Ministro Vieira Machado para Angola (comandante Vasco Lopes Alves), Moçambique (general Tristão de Bettencourt, apesar de o achar «muito autoritário» e «de trato difícil», ser maçon e ter a «mentalidade mais colonialista» que conheceu[20]), e Cabo Verde (capitão-de-fragata João de Figueiredo, apadrinhado pelo Ministro da Marinha, Ortins de Bettencourt).
 
António Duarte Silva
 






[1] Ver as Cartas (enviadas ao Presidente do Conselho de Ministros) em 13 de Setembro, 27 de Setembro, 29 de Setembro e 7 de Outubro apud José Freire Antunes, op. cit., pp. 123 a 126.


[2] Portaria n.º 10.746, de 21 de Setembro de 1944.


[3] Marcelo Caetano, “Discurso de S. Exª O Ministro das Colónias”, in Boletim da Agência Geral das Colónias, n.º 232, Outubro de 1944, p. 5.


[4] Ibidem, pp. 6/7.


[5]Ibidem, p. 8.


[6] Idem, Minhas Memórias…, cit., pp. 191 e segs.


[7] Idem, Carta de 29 de Dezembro de 1994, apud José Freire Antunes, op. cit., p. 141.


[8] Luís C. Lupi, Memórias, Vol. II, Lisboa, 1971, e Wilton Fonseca, À Sombra do Poder – A história da Lusitânia, 1944-1974, Lisboa, Memória do tempo, 1995, pp. 70/71. Há uma extensa reportagem, intitulada “Inauguração do serviço noticioso para o Ultramar”, in Boletim da Agência Geral das Colónias, n.º 235, Janeiro de 1945, pp. 276/283.


[9] Idem, Minhas Memórias…, cit., pp. 193/197, e Cláudia Castelo, Passagens para África – o Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (1920-1974), Porto, Edições Afrontamento, 2007, pp. 125 e segs.


[10] Marcello Caetano, Minhas Memórias…, cit., p. 205.


[11] Ibidem.


[12] Luís Farinha, "Rodrigues, Manuel Maria Sarmento (1899-1979)", in Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito (dir.), Dicionário da História do Estado Novo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, p. 851, e Nuno de Sotto-Mayor Q. M. Ferrão, Aspectos da Vida e Obra do Almirante Sarmento Rodrigues (1899-1979), Edição da Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, 1999, p.  216.


[13] Marcello Caetano, Minhas Memórias..., cit., p. 205.


[14] António E. Duarte Silva, Invenção e Construção da Guiné-Bissau, Coimbra, Almedina, 2010, p. 39.


[15] Carta a Salazar, de 20 de Dezembro de 1944 apud José Freire Antunes, op. cit., p. 139.


[16] Marcello Caetano, Minhas Memórias…, cit., p. 206.


[17] Ver “Carlos de Sousa Gorgulho (tenente-coronel de artilharia; Governador da Província de S. Tomé e Príncipe)”, apud Arquivo Histórico da Presidência da República e Gerard Seibert, Camaradas, Clientes e Compadres, Lisboa, Veja, 2001, pp. 76 e segs.


[18] Carta a Salazar, de 17 de Maio de 1945, apud José Freire Antunes, op. cit., p. 161.


[19] Sobre a “evicção” de José Ferreira Bossa, Sandrine Bégue, La Fin de Goa et l’Estado da Índia: Décolonisation et Guerre Froide dans le Sous-Continent Indien (1945-1962), Volume I, Lisboa, Instituto Diplomático/MNE, 2007, pp. 175/178.


[20] Marcelo Caetano, Minhas Memórias…, p. 215.

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