Libertas Schulze-Boysen (1913-1942)
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Nas primeiras semanas de Setembro de
1942, Libertas Schultze-Boysen, uma jovem de 29 anos, aguardava ansiosamente a
chegada do seu marido, funcionário do Ministério da Aviação em Berlim. Durante
algum tempo, ela e o seu marido juntaram-se a um grupo de opositores ao
nazismo, formando a famosa «Orquestra Vermelha» (Rote Kapelle), que transmitiu informações secretas aos soviéticos.
Essas informações davam conta de que Hitler se preparava para invadir a União
Soviética e, se Estaline as tivesse levado a sério, poderiam ter poupado
milhões de vidas humanas.
Uma semana depois da prisão do seu
marido, a Gestapo veio buscar Libertas a casa. Levaram-na para a sede da
polícia política do III Reich, o edifício que antes tinha sido a Escola de Artes e
Ofícios de Berlim, de que o pai de Libertas, um dos mais conhecidos costureiros berlinenses, era reitor. Ao entrar no nº 8 da Prinz Albertstrasse, Libertas deu uma
gargalhada, rindo-se dessa ironia da História. Não esteve muito tempo presa. Em
19 de Dezembro de 1942, um tribunal marcial condenou-a à morte. Três dias
depois, seria guilhotinada.
Na prisão, escreveu algumas cartas à
sua mãe, que se encontram reunidas num livro extraordinário, Dying We Live. Letters written by prisoners in Germany on the eve of execution, organizado por Hellmut Gollwitzrer,
Käyje Kuhn e Reinhold Schneider. Com base na edição inglesa, traduzimos as duas
cartas que escreveu à mãe no dia da sua morte. Porque hoje é o Dia da Mãe.
Na primeira carta, Libertas pedia à mãe
que o seu corpo fosse enterrado no campo, num lugar belo, iluminado pelo sol.
Nem essa dádiva lhe concederam. Como refere Heather Pringle aqui,
um artigo publicado por Sabine Hildebrandt na revista Clinical Anatomy, em 2013, identificou o cadáver de Libertas como um dos corpos que foram
entregues como «material de estudo» a Hermann Stieve, director do departamento
de anatomia da Universidade de Berlim (aqui).
Os médicos anatomistas alemães, como
refere Heather Pringle, que
aqui seguimos de perto, sempre se debateram com falta de cadáveres para as suas
aulas ou investigações. Com a subida ao poder dos nazis, o problema foi
resolvido: entre 1933 e 1945, os tribunais do Reich condenaram à morte 16.000
civis alemães. Os cadáveres de 174 mulheres, pelo menos, foram transportados
para os gabinetes de dissecação de Hermann Stieve. Entre eles, o de Libertas.
E, no mínimo, cerca de dez institutos de investigação da Alemanha receberam
3228 corpos de presos políticos condenados à morte. Após a guerra, muitos
anatomistas reconheceram que, a partir de certa altura, deixaram de perguntar
de onde vinham os corpos, deixaram de se questionar sobre o horror que os
cercava – e de que, ao contrário de Libertas, foram cúmplices e beneficiários.
Como disseram recentemente dois anatomistas de Viena, numa entrevista, «se
ninguém se preocupava como aquilo, porque é que teríamos de ser nós a
preocupar-nos?»
Podendo acomodar-se ao nazismo e fazer
valer as suas origens aristocráticas (era neta do príncipe de Eulenburg e
tia-avó da actual princesa do Lichenstein), Libertas preocupou-se. Acabou
condenada à morte, e executada na guilhotina. Estas são as duas cartas que, no dia em que
foi executada, escreveu à sua mãe.
***
Carta
escrita no dia da sua morte
22 de Dezembro de 1942
Minha querida Mamã,
Dado que estou já a viver um sonho do
qual, afortunadamente, nunca terei de despertar para me confrontar com uma
realidade horrível, é difícil exprimir-me através de palavras. Estás comigo no
meu coração. Oh, se pudesse tomar-te em mim completamente, poupando-te ao
sofrimento que já superei…
Tudo surgiu repentina e
inesperadamente, mas as horas anteriores ao julgamento, e mesmo as que vivo
agora, são tão grandiosas que senti que nada poderá ser mais grandioso.
«Ó graça, amadurecer num corpo jovem» −
encontrarás este poema nas minhas coisas e então sentirás a sua absoluta
verdade.
A cada momento, sinto-me ascender em
direcção ao céu…
Quando sei que sorris, cheia de fé,
tudo está bem. Deixei já de sofrer, e tudo me parece aprazível, sem uma réstia
de terror… Todas as correntes da minha vida tormentosa confluíram, todos os
meus desejos se realizaram: serei sempre jovem na memória de todos vós… E não
terei de sofrer mais.
Permitiram-me
que morresse como Cristo morreu – por toda a Humanidade.
Permitiram-me que passasse por tudo o
que os seres humanos são capazes de passar.
E, uma vez que ninguém morre antes de
cumprir a sua missão, devido ao conflito inscrito na minha natureza somente
esta morte tornou possível que realizasse algo grandioso.
Minha querida, continuaremos juntas.
Encontrámo-nos uma à outra na Luz, e agora posso trazer-te em direcção ao alto,
da mesma maneira que tu me puxaste para cima nas últimas semanas no convento.
Amo o mundo, não carrego ódio algum,
tenho comigo a Primavera eterna.
Não lamentes que as coisas poderiam ter
acontecido doutra maneira, não te queixes disto ou daquilo – o destino ordenou
a minha morte. Eu própria a desejei…
Como
último desejo, pedi que a minha “substância” te fosse entregue. Se possível,
enterra-a num lugar belo, num campo iluminado pelo sol.
Agora, minha querida, a hora soa.
Em infinita proximidade e alegria,
Toda
a força e toda a luz…
A tua menina
***
Segunda
carta de despedida (*)
Sim, minha Querida, minha forte e minha
única Mamushka: aquilo que pude passar nestes dias foi tão belo e maravilhoso
que as palavras dificilmente conseguem descrevê-lo…
Agora conheço as últimas verdades da
fé, e sei que és forte e feliz por teres consciência da nossa união eterna.
O teu anjo a trespassar Maligno com a
sua lança (que me mandaste no meu aniversário) encontra-se diante de mim. Se
posso pedir-te alguma coisa, peço que fales de mim a toda a gente; a toda
gente. A nossa morte tem de ser um farol para os outros.
Em todos vós, na minha pequena irmã, no
meu pequeno irmão, nas crianças – vocês são tão próximos –, em todos vós eu
vivo; e digo-vos com toda a gravidade que marca esta hora:
Encontrei o meu desígnio, a minha própria morte; jamais me poderia
ter sido concedida graça maior do que esta. E não me tornem a vida difícil
“desse lado” com lágrimas. Juntem-se à minha alegria.
Está tudo bem comigo.
A tua
menina
(*)
Escrita nas últimas horas da sua vida, quando Libertas não tinha a certeza se o
tribunal iria enviar a primeira carta que escrevera. Através de canais
clandestinos, esta segunda carta acabaria por chegar à sua mãe.
Penso que a morte, para quem sofre o mundo, há-de ser mais ou menos isso: uma coisa difícil mas de que felizmente não se acorda.
ResponderEliminarFaltam-me as palavras para descrever o turbilhão que senti ao ler este post.
ResponderEliminarObrigada.
É terrivel mas em qualquer regime repito qualquer regime espiar para o inimigo em tempo de guerra é alta traição e punida com pena de morte com mais ou menos julgamento.Foram mortos em tempo de paz com e sem julgamento dezenas de espiões que sabem o risco que correm.
ResponderEliminarClaro que vão argumentar que neste caso havia uma justificação ideológica.Claro que sim e em muitos outros.Não muda a natureza do crime.Podemos ler cartas semelhantes de jovens que resolveram combater o grande satã ocidental em nome do Islão só para dar um exemplo recente.
Há também um belíssimo livro "Cartas de Fuzilados" Campo de Letras ISBN 972-8146-47-7 referente a fuzilamentos durante a ocupação nazi da França.
ResponderEliminarOra aqui temos uma situação totalmente oposta.A ação mais ou menos violenta destas pessoas esta legitimada pela resistencia a um invasor.
ResponderEliminarHa um identico sobre cartas de fuzilados republicanos durante a guerra civil espanhola.Embora esta(circunstancia) ja levante mais polemica,não deixa de ser uma resistencia de um regime legal.