impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 64 - LEE MORGAN
A mulher entrou no clube cerca da
meia-noite, no intervalo da sessão, e sentou-se na mesa reservada aos músicos.
Não estava muita gente. Embora fosse Sábado, o Slugs Saloon localizava-se na
Alphabet City, que em 1972, durante a época gloriosa do crime desorganizado em
Nova Iorque, era uma cratera urbana. De súbito rebenta uma altercação entre a
mulher e o trompetista. Ele toma-lhe o braço e arrasta-a para a rua. Momentos
depois a mulher volta a entrar, estava calma e empunhava uma arma. O músico
avança para ela – ouvem-se tiros – o homem cai. Um nevão de Fevereiro havia
tornado as ruas quase intransitáveis. A ambulância demorou uma eternidade, ou o
suficiente para Lee Morgan se esvair até à morte.
Aos quinze anos, Lee Morgan acendia
cigarros, não para os fumar mas para dar-se ares de boémio; também caminhava
com um passo ensaiado, como via fazer aos figurinos do estilo cool que desejava emular. Com o
pedantismo da adolescência, ainda mal dedilhava o trompete, desafiou um
complacente Sonny Stitt para uma jam session em torno do intrincadíssimo tema
“Cherokee” – foi, obviamente esmagado. Lição do veterano: o estilo sem técnica
não vale um caracol. E técnica, rapaz, é trabalho.
A impertinência juvenil não está,
porém, isenta de qualidades. O arrojo e a tenacidade de Lee Morgan
impulsionaram-no até à Big Band de Dizzy Gillespie, onde arribou aos 18 anos de
idade e donde saiu à data da sua dissolução. Aqui teve suficiente exposição
para que a Blue Note lhe oferecesse um contrato. Durante o ano de 1957 entrou e
saiu dos estúdios vezes suficientes para manufacturar seis álbuns, liderando
companhia de respeito. Numa época particularmente inovadora, saturada e
competitiva da história do jazz, Lee Morgan não abalou as placas tectónicas,
mas apareceu no radar, o que não era insignificante.
Em 1959 – annus mirabilis – eis Lee Morgan a prestar provas de doutoramento
na universidade do jazz. Traduzindo a gíria da corporação: integrou os Jazz
Messengers de Art Blakey. Segredam as más-línguas, nem sempre mentirosas, que
nesta academia Morgan também se iniciou em narcóticos e inebriantes.
The Sidewinder
1963 (2004)
Blue Note - 9008
Lee Morgan
(trompete), Joe Henderson (saxofone tenor), Barry Harris (piano), Bob Cranshaw
(contrabaixo), Billy Higgins (bateria)
Até que em 1963 inesperadamente
aconteceu “The Sidewinder”.
Com Don Cherry e Freddie Hubard,
numa direcção, e Chet Baker, noutra, a moverem-se, e cada vez mais embrenhados,
em geografias vernáculas e remotas do jazz, por esta altura almejava-se que no
espaço livre entre Dizzy Gillespie e Miles Davis irrompesse “qualquer coisa” de
diferente no trompete; algo que não aparecia desde a morte prematura de
Clifford Brown. “The Sidewinder” veio, assim, saciar esse apetite, trepando até
à vigésima quinta posição na tabela de vendas da revista Billboard – proeza
deveras invulgar para um disco de jazz.
“The Sidewinder” abre com o tema
homónimo, uma peça melódica, potente e desafiante, que se tornou um clássico
instantâneo. Dos restantes originais seria injusto não destacar “Totem Pole”,
também rapidamente convertido em standard, e “Hocus Pocus”, o último tema do
disco, concludente daquilo que até ele se fora percebendo: o saxofonista Joe
Henderson carburava o motor de Lee Morgan; esticando a metáfora
automobilística, diga-se que o baterista Billy Higgins é uma infalível caixa de
velocidades. Todas as peças de “The Sidewinder” ressumam melodia, potência e um
ferrão que as torna intrigantes. No estilo e na escola demonstram swing, blues,
funky, soul e velocidade. Ora se tem penas como um pato, se voa como um pato e
se grasna como um pato, então “The Sidewinder” deve ser aquilo a que se
começava a chamar de hard bop.
O que se seguiu? Seguiu-se que o êxito
atingiu Lee Morgan muito cedo e com demasiada unanimidade. A pequena fortuna
ganha em “The Sidewinder” dissipou-se no tempo que demorou a consumi-la em
heroína. Quando tinha disposição física ou mental para tocar, Morgan mostrou-se
repetitivo e formulário. Um dia apeteceu-lhe tocar à mesa de um café; o dono
invectivou-o: “Quem é que julgas que és? Miles Davis?” “Não, parvalhão, sou Lee
Morgan” O homem sacudiu os ombros, sabia lá com quem estava a falar…
A mulher que assassinou Lee Morgan
chamava-se Helen Moore, mas conheciam-na por “Morgan”, pois adoptara-lhe o
apelido desde que começara a viver com ele – diziam-se casados. Em 1967 recolhera-o
literalmente da rua, descalço e esfomeado. Entregou-se a ele e reabilitou a sua
carreira; foi companheira, mãe, agente, financeira e espectadora de óculos
escuros na primeira fila nas suas actuações. Mas o inevitável enfado
matrimonial sobreveio e desde 1971 que Lee Morgan namoriscava com outras,
dormia esporadicamente fora de casa e reincidia na heroína.
Décadas depois do crime ela
confessaria a sua incerteza: teria verdadeiramente amado o trompetista ou
confundira o amor com um exacerbado sentimento de posse? Afinal Lee Morgan fora
o melhor feito da sua vida, um empreendimento em que investira dedicação plena
e sem prazo – “I’ve bought you back, you belong to me.” Assim é o timbre das
paixões funestas: o amor de salvação coalha em amor de perdição.
José Navarro de Andrade
Sempre que fala destes artistas e suas malogradas vidas lembro que o citado Clifford Brown que era um "exemplo "de bom comportamento acabaria por morrer em estúpido desastre de carro como diz muito precocemente.Ironia dos Deuses que não cessam de brincar com os matrequilhos aqui em baixo.
ResponderEliminarEste disco faz parte de uma série da Blue Note de um grafismo irrepreensível e que se nota a milhas.
ResponderEliminarDaqui a bocadinho no sítio do costume.
Imperdível.
Tendo estado fora só agora posso vir aqui agradecer a vossa amizade
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