domingo, 3 de maio de 2015

As cartas de Libertas.

 
 
 
Libertas Schulze-Boysen (1913-1942)
 
 
         Nas primeiras semanas de Setembro de 1942, Libertas Schultze-Boysen, uma jovem de 29 anos, aguardava ansiosamente a chegada do seu marido, funcionário do Ministério da Aviação em Berlim. Durante algum tempo, ela e o seu marido juntaram-se a um grupo de opositores ao nazismo, formando a famosa «Orquestra Vermelha» (Rote Kapelle), que transmitiu informações secretas aos soviéticos. Essas informações davam conta de que Hitler se preparava para invadir a União Soviética e, se Estaline as tivesse levado a sério, poderiam ter poupado milhões de vidas humanas.
         Uma semana depois da prisão do seu marido, a Gestapo veio buscar Libertas a casa. Levaram-na para a sede da polícia política do III Reich, o edifício que antes tinha sido a Escola de Artes e Ofícios de Berlim, de que o pai de Libertas, um dos mais conhecidos costureiros berlinenses, era reitor. Ao entrar no nº 8 da Prinz Albertstrasse, Libertas deu uma gargalhada, rindo-se dessa ironia da História. Não esteve muito tempo presa. Em 19 de Dezembro de 1942, um tribunal marcial condenou-a à morte. Três dias depois, seria guilhotinada.
         Na prisão, escreveu algumas cartas à sua mãe, que se encontram reunidas num livro extraordinário, Dying We Live. Letters written by prisoners in Germany on the eve of execution, organizado por Hellmut Gollwitzrer, Käyje Kuhn e Reinhold Schneider. Com base na edição inglesa, traduzimos as duas cartas que escreveu à mãe no dia da sua morte. Porque hoje é o Dia da Mãe.
         Na primeira carta, Libertas pedia à mãe que o seu corpo fosse enterrado no campo, num lugar belo, iluminado pelo sol. Nem essa dádiva lhe concederam. Como refere Heather Pringle aqui, um artigo publicado por Sabine Hildebrandt na revista Clinical Anatomy, em 2013, identificou o cadáver de Libertas como um dos corpos que foram entregues como «material de estudo» a Hermann Stieve, director do departamento de anatomia da Universidade de Berlim (aqui).
         Os médicos anatomistas alemães, como refere Heather Pringle, que aqui seguimos de perto, sempre se debateram com falta de cadáveres para as suas aulas ou investigações. Com a subida ao poder dos nazis, o problema foi resolvido: entre 1933 e 1945, os tribunais do Reich condenaram à morte 16.000 civis alemães. Os cadáveres de 174 mulheres, pelo menos, foram transportados para os gabinetes de dissecação de Hermann Stieve. Entre eles, o de Libertas. E, no mínimo, cerca de dez institutos de investigação da Alemanha receberam 3228 corpos de presos políticos condenados à morte. Após a guerra, muitos anatomistas reconheceram que, a partir de certa altura, deixaram de perguntar de onde vinham os corpos, deixaram de se questionar sobre o horror que os cercava – e de que, ao contrário de Libertas, foram cúmplices e beneficiários. Como disseram recentemente dois anatomistas de Viena, numa entrevista, «se ninguém se preocupava como aquilo, porque é que teríamos de ser nós a preocupar-nos?»
         Podendo acomodar-se ao nazismo e fazer valer as suas origens aristocráticas (era neta do príncipe de Eulenburg e tia-avó da actual princesa do Lichenstein), Libertas preocupou-se. Acabou condenada à morte, e executada na guilhotina. Estas são as duas cartas que, no dia em que foi executada, escreveu à sua mãe. 
 
 
***
 
 
         Carta escrita no dia da sua morte
 
         22 de Dezembro de 1942
 
 
         Minha querida Mamã,
        
         Dado que estou já a viver um sonho do qual, afortunadamente, nunca terei de despertar para me confrontar com uma realidade horrível, é difícil exprimir-me através de palavras. Estás comigo no meu coração. Oh, se pudesse tomar-te em mim completamente, poupando-te ao sofrimento que já superei…
         Tudo surgiu repentina e inesperadamente, mas as horas anteriores ao julgamento, e mesmo as que vivo agora, são tão grandiosas que senti que nada poderá ser mais grandioso.
         «Ó graça, amadurecer num corpo jovem» − encontrarás este poema nas minhas coisas e então sentirás a sua absoluta verdade.
         A cada momento, sinto-me ascender em direcção ao céu…
         Quando sei que sorris, cheia de fé, tudo está bem. Deixei já de sofrer, e tudo me parece aprazível, sem uma réstia de terror… Todas as correntes da minha vida tormentosa confluíram, todos os meus desejos se realizaram: serei sempre jovem na memória de todos vós… E não terei de sofrer mais.
Permitiram-me que morresse como Cristo morreu – por toda a Humanidade.
         Permitiram-me que passasse por tudo o que os seres humanos são capazes de passar.
         E, uma vez que ninguém morre antes de cumprir a sua missão, devido ao conflito inscrito na minha natureza somente esta morte tornou possível que realizasse algo grandioso.
         Minha querida, continuaremos juntas. Encontrámo-nos uma à outra na Luz, e agora posso trazer-te em direcção ao alto, da mesma maneira que tu me puxaste para cima nas últimas semanas no convento.
         Amo o mundo, não carrego ódio algum, tenho comigo a Primavera eterna.
         Não lamentes que as coisas poderiam ter acontecido doutra maneira, não te queixes disto ou daquilo – o destino ordenou a minha morte. Eu própria a desejei…
         Como último desejo, pedi que a minha “substância” te fosse entregue. Se possível, enterra-a num lugar belo, num campo iluminado pelo sol.
         Agora, minha querida, a hora soa.
                  Em infinita proximidade e alegria,
                   Toda a força e toda a luz…
         A tua menina
 
***
 
 
 
         Segunda carta de despedida (*)
 
         Sim, minha Querida, minha forte e minha única Mamushka: aquilo que pude passar nestes dias foi tão belo e maravilhoso que as palavras dificilmente conseguem descrevê-lo…
         Agora conheço as últimas verdades da fé, e sei que és forte e feliz por teres consciência da nossa união eterna.
         O teu anjo a trespassar Maligno com a sua lança (que me mandaste no meu aniversário) encontra-se diante de mim. Se posso pedir-te alguma coisa, peço que fales de mim a toda a gente; a toda gente. A nossa morte tem de ser um farol para os outros.
         Em todos vós, na minha pequena irmã, no meu pequeno irmão, nas crianças – vocês são tão próximos –, em todos vós eu vivo; e digo-vos com toda a gravidade que marca esta hora:
         Encontrei o meu desígnio, a minha própria morte; jamais me poderia ter sido concedida graça maior do que esta. E não me tornem a vida difícil “desse lado” com lágrimas. Juntem-se à minha alegria.
 
Está tudo bem comigo.
A tua menina         
 
 
         (*) Escrita nas últimas horas da sua vida, quando Libertas não tinha a certeza se o tribunal iria enviar a primeira carta que escrevera. Através de canais clandestinos, esta segunda carta acabaria por chegar à sua mãe.
 

5 comentários:

  1. Penso que a morte, para quem sofre o mundo, há-de ser mais ou menos isso: uma coisa difícil mas de que felizmente não se acorda.

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  2. Faltam-me as palavras para descrever o turbilhão que senti ao ler este post.
    Obrigada.

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  3. É terrivel mas em qualquer regime repito qualquer regime espiar para o inimigo em tempo de guerra é alta traição e punida com pena de morte com mais ou menos julgamento.Foram mortos em tempo de paz com e sem julgamento dezenas de espiões que sabem o risco que correm.
    Claro que vão argumentar que neste caso havia uma justificação ideológica.Claro que sim e em muitos outros.Não muda a natureza do crime.Podemos ler cartas semelhantes de jovens que resolveram combater o grande satã ocidental em nome do Islão só para dar um exemplo recente.

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  4. Há também um belíssimo livro "Cartas de Fuzilados" Campo de Letras ISBN 972-8146-47-7 referente a fuzilamentos durante a ocupação nazi da França.

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  5. Ora aqui temos uma situação totalmente oposta.A ação mais ou menos violenta destas pessoas esta legitimada pela resistencia a um invasor.
    Ha um identico sobre cartas de fuzilados republicanos durante a guerra civil espanhola.Embora esta(circunstancia) ja levante mais polemica,não deixa de ser uma resistencia de um regime legal.

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