domingo, 17 de maio de 2015

Yula.

 
 
 

 

 
Se pesquisar a palavra «svalka» no Google, a primeira coisa que lhe aparecerá é uma gama de copos da Ikea. Copos de vinho branco, copos de vinho tinto e, para ocasiões festivas, flûtes de champanhe e copos para snaps. A 0,69€ euros a unidade.
 
http://www.ikea.com/pt/pt/catalog/products/20286898/
 
 
 
 
         Além de uma produtora de música nórdica, a outra coisa que lhe aparecerá, se pesquisar a palavra «svalka» no Google, será uma loja de roupa em Moscovo, no nº 27 da Profsoyuznaya. Em Moscovo também há (ou, pelo menos, houve) um clube nocturno com esse nome, onde tocavam bandas heavy metal, todas com nomes sinistros e satânicos.
Moscovo é a cidade que, segundo a revista Forbes, possui o maior número de milionários por metro quadrado do mundo. Talvez por causa disso, porque os muitos ricos geralmente fazem muito lixo, a capital da Rússia acumula uma quantidade incomensurável de detritos. E um lixo, naturalmente, vai para a lixeira – a svalka. A svalka é a maior lixeira a céu aberto de toda a Europa.
 
 
 
         Um dia, com calma e vagar, gostaria de falar aqui de Alexander Gronsky. As suas fotografias sobre os subúrbios de Moscovo, reunidas no livro Pastoral, são fabulosas, ainda que desoladoras. Mas Gronsky nem foi à svalka. Poucos lá vão. A polícia, corrompida pelas máfias, não deixa que os jornalistas entrem na lixeira que se agiganta a céu aberto a poucos quilómetros da Praça Vermelha. Ou seja, não muito longe das casas faustosas dos oligarcas, onde escorre o champanhe em flûtes que certamente não serão da marca Ikea. A Ikea é uma marca vulgar, para o Ocidente massificado e democrático. Ali, em Moscovo, quem pode só consome luxo; quem não pode, sobrevive no lixo. A svalka fica na radial de Moscovo e só lá entram os camiões que vão depositar mais e mais lixo.
 
 


 

 
A polícia não deixa ninguém entrar na svalka, nem jornalistas, nem assistentes sociais. Por uma razão simples: a svalka é um território controlado pelas máfias, que dominam o trabalho escravo dos recolectores de lixo. Na svalka, a moeda em circulação não é o rublo ou o dólar, é a vodca. E aí vivem centenas de pessoas, de todas as idades, esmagadoramente crianças ou adolescentes. Não há médicos que lá entrem. Na svalka nascem crianças e morrem pessoas sem qualquer assistência médica. Há quem corte os próprios dedos, quando congelam, para evitar a progressão da gangrena.
         Quem quiser mudar de vida, trabalhar para outro patrão, trocar de amo e senhor, fugir dali, arrisca-se a ser espancado até à morte. Tudo isto não se passa na Índia ou no Rio de Janeiro. A svalka está na Europa. A lixeira colossal, cercada por arame farpado e cães ferozes, fica a 20 quilómetros de distância da sede do poder da Rússia, o Kremlin de Putin.
         Como pouco sei da svalka, limito-me a seguir a sinopse do documentário da realizadora polaca Hanna Polak intitulado em inglês Something Better to Come, também chamado Yula’s Dream. O filme é uma produção dinamarquesa que retrata o quotidiano de uma jovem adolescente, Yula. O título baseia-se numa frase de Gorki: «Todos vivem à espera que algo melhor aconteça». Yula sonha com mudar de vida. Hanna Polak, que em 2005 já havia sido nomeada para os Óscares pelo filme The Children of Leningradsky, anda há muito em combate pela causa das crianças de rua (o filme foi feito em parceria com a Active Child Aid). Durante muito tempo, acompanhou o quotidiano de Yula, as suas grandes esperanças. O filme segue-lhe as pisadas desde os 11 anos até à sua idade actual, 25 anos, quando Yula conseguiu libertar-se da svalka e do seu abraço pestífero. Uma odisseia que durou mais de uma década. Apesar de viver ali, rodeada pela gangrena impura, Yula riu, chorou, partilhou pedaços de pão com os seus companheiros de destino, enamorou-se, engravidou, foi mãe.
 

 

 
 
Na svalka, quando o documentário foi feito, viviam cerca de 1000 pessoas, em barracas periclitantes onde grassavam a violência e as violações, na mais absoluta miséria. De acordo com as estatísticas oficiais – repete-se: as estatísticas oficiais – das autoridades russas, 13% da população vive abaixo do limiar da pobreza extrema. Qualquer coisa como 18 milhões de pessoas, a maioria das quais crianças.
 
 
Obrigado, Teresa.
 
 
 

 

4 comentários:

  1. não consegui perceber como é que se consegue ter acesso ao documentário completo. Alguém faz ideia?

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    1. O filme ainda não está no «circuito comercial». Foi exibido a semana passada no festival de cinema documental de Varsóvia, possivelmente será exibido cá daqui a uns tempos.

      Sabe o que achei mais impressionante (e nem sequer contei) ? Muitas das crianças que aparecem morreram durante os anos de rodagem deste documentário.

      Cordialmente,

      António Araújo

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  2. Estas é que são as coisas que eu gostaria de não ver. Enão por ignorância, mas por não haver tal miséria...

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