A porta do federalismo colonial: manobras dispersas
A originalidade ou
precedência de invocação de uma via federalista como solução para a questão
colonial coube na Oposição, por via editorial, a Cunha Leal e a Jorge de Sena e
foi sustentada, como programa político com repercussões internacionais, por
Henrique Galvão e Humberto Delgado.
Em 1957, aproveitando a
abertura proporcionada pela campanha eleitoral para as eleições legislativas (a
que a Oposição não concorreria), Cunha Leal criticara frontalmente a concepção
situacionista considerando que o princípio da unidade política «decretada do alto do poder», haveria, a prazo
mais ou menos dilatado, de esbarrar contra realidades adversas e inelutáveis.
Aconselhava o livre desenvolvimento de cada uma das parcelas do Império, mesmo
que dele pudesse resultar a independência, e propugnava uma “confederação de
Estados autónomos”[1]. O artigo originou uma
polémica envolvendo a União Nacional e o então comodoro Sarmento Rodrigues.
Este último, em réplica, criticou Cunha Leal por pôr em causa «a própria
essência da nossa existência como Nação», reafirmando que, nas colónias, o
objectivo pretendido era «generosamente […] moldar um povo à maneira e
semelhança do povo original» e não admitindo, de maneira alguma, «como solução,
por mais longínqua que fosse, a ideia de federação ou confederação, se ela
significar menor coesão que o sistema actual»[2]. De
imediato, Cunha Leal redigiu uma tréplica, apoiando o processo inglês por
conduzir a uma estrutura comunitária de Estados independentes[3].
No princípio dos anos
sessenta, reflectindo especialmente sobre o conceito de Pátria – e, para tal,
desenvolvendo o significado quer da «gesta portuguesa dos Descobrimentos e da
Colonização», quer «o avizinhar da tempestade», quer, finalmente, o «valor
duvidoso» dos argumentos usados pelo Governo – Cunha Leal elaborou um plano
(datado de 3 de Dezembro de 1960) para a defesa dos domínios coloniais, assente
na criação de uma Comunidade de Estados, «formados através de um colonialismo
bem entendido, que não se envergonhe de si mesmo». Tal futura associação
poderia revestir-se de uma das seguintes gradações: 1) a mais íntima, ou seja a
integração; 2) a intermédia, ou seja a federação; 3) a mais frouxa, ou seja, a
confederação[4]. Em 1961, publicou novas
reflexões sobre os problemas euro-africanos, abordando especialmente «a
tragédia de Angola» e o problema colonial dos restantes domínios ultramarinos
portugueses[5]. Em 1962 – tendo-se adensado
e amplificado «as nuvens negras e pressagas, que impendem sobre a Pátria
portuguesa» e perante uma orientação governativa imóvel e impermeável a
influências exteriores –, Cunha Leal propugnava por uma «autodeterminação
preparada, conscientemente», conducente ao estado federal, à independência e,
até, à formação de uma Comunidade Luso-Afro-Brasileira – que «venha a
representar para nós nos anos vindouros uma tábua de salvação»[6]. Esta defesa de uma solução
negociada dos espaços coloniais africanos prosseguiu em mais dois volumes,
publicados em 1963 e 1964[7].
Todos mais ou menos clandestinos e apreendidos pela censura.
Por sua vez, Jorge de
Sena (intelectual independente) reivindicou a primazia da proposta de uma
Comunidade de Estados Portugueses e de uma transição pacífica, que passara a
sustentar desde finais dos anos 50. Tal Comunidade – de «formação urgentíssima»
e garantida pelo Exército – assentaria, mediante estabelecimento das liberdades
e estruturação democrática, por via eleitoral, na agregação de estados
soberanos apenas limitados, no exercício da sua soberania, pelos interesses do
conjunto (portanto, do tipo Commonwealth).
A sugestão, esboçada no texto “Memória sobre o futuro do Ultramar Português”,
de 3 de Maio de 1959, inédito, foi posteriormente apresentada, de uma forma
bastante desenvolvida, através de 9 pontos prévios e 27 bases para criação e
organização de «uma sólida estrutura constitucional», num artigo publicado pelo
jornal brasileiro Portugal Democrático
(jornal da oposição portuguesa no Brasil e para onde Jorge de Sena tinha
emigrado), em Agosto de 1960[8]. Teve
vasta repercussão. Em Portugal (onde, todavia, «as oposições não se
manifestaram») foi vivamente criticado pelos «acólitos dos grupos dirigentes»;
também desagradou aos nacionalistas africanos e originou diversas reações entre
a “colónia portuguesa” no Brasil[9]. Em
especial, as contradições e antagonismo dos diferentes sectores da Oposição
quanto à questão colonial ficaram evidentes com as declarações polémicas de
Miguel Urbano Rodrigues, militante do PCP influente no mesmo jornal, que
desqualificou a proposta de Jorge de Sena, em termos vigorosos, nomeadamente
acusando-a de «ranço neocolonialista, aliás presente na linguagem»[10].
A constituição de um
Estado Federal, abrangendo Portugal e as suas colónias, também tinha sido
publicamente defendida em 1961 por Henrique Galvão e Humberto Delgado, exilados
no Brasil. Humberto Delgado – segundo anunciou no “Plano Colonial da Oposição”,
apresentado em nome do Movimento Nacional Independente, que dirigia – e na
sequência de uma argumentação desenvolvida em 10 considerandos, propunha a
fundação de uma República Federal dos Estados Unidos de Portugal (n.º 11),
constituída pela federação de povos sob a protecção da bandeira portuguesa e
aos quais seria reconhecido o direito de autodeterminação (n.º 12), exarada
numa Constituição da República Federal a aprovar, bem como as Constituições de
cada um dos estados individuais, mediante plebiscito (n.º 13)[11]. Por
seu lado, Henrique Galvão, além da sua participação na feitura desse Plano
Colonial da Oposição, sustentou em variadas e polémicas intervenções políticas,
no início dos anos sessenta, sobretudo numa atribulada exposição na ONU, ser
«conveniente e perfeitamente adaptável às realidades sociais e económicas, que
a preparação para o exercício do direito à autodeterminação se praticasse,
desde o início, em regime transitório de Federação ou União de Estados
Autónomos, coordenada superiormente pelo Estado federal [...]»[12].
Nem o “Programa para a
Democratização da República”, de 1961 (que se limitava a reivindicar um reforço
da política de descentralização administrativa), nem a “Exposição entregue a
sua Excelência o Senhor Presidente da República em 30 de Agosto de 1962”,
subscrita por dezenas de individualidades (sendo os seus primeiros signatários
Mendes Cabeçadas, Cunha Leal, Mário Azevedo Gomes e Hélder Ribeiro) que
insistia na necessidade de o país modificar a política colonial e aderir ao
«princípio basilar da autodeterminação» (até então tema tabu para a oposição
não comunista) se pronunciaram sobre a questão.
Devem, no entanto,
referir-se duas outras intervenções, estas saídas dos meios do regime.
Primeiro, o livro de
Manuel José Homem de Mello, significativamente prefaciado pelo ex-Presidente da
República Craveiro Lopes, onde se propunha uma via autonomista, mantendo,
provisoriamente, o cargo de Governador-Geral, de nomeação governamental, e
prevendo a eleição directa de Assembleias Regionais, às quais seriam atribuídos
extensos poderes legislativos e de fiscalização política, «excepto nas matérias
que seriam da competência da Comunidade (defesa, negócios estrangeiros,
coordenação económica e poucas mais)»[13].
Por seu lado, o
Governador-Geral de Angola, Venâncio Deslandes, em carta a Salazar, datada de Luanda,
8 de Fevereiro de 1962, defendera reformas na estrutura administrativa
nacional, mediante dois patamares governativos, a criar: a)- um governo e
órgãos de soberania nacionais, onde a metrópole e as duas maiores colónias
estivessem representadas em pé de igualdade e tivessem as mesmas
responsabilidades de decisão; b)- governos regionais para a metrópole e para
Angola e Moçambique, que administrassem directamente os respectivos territórios
no que fosse do seu exclusivo interesse. Deslandes considerava ainda que só a
autonomização das colónias podia afastar o perigo da população branca se
conluiar com os nacionalistas africanos, o que poderia ser fatal para o domínio
português em Angola[14].
Adriano Moreira, então Ministro do Ultramar e já em divergências várias com o
Governador-Geral de Angola, declara que só tomou conhecimento desta carta muito
depois do “25 de Abril de 1974”, e que estas diligências de Deslandes teriam
sido uma das causas das perplexidades em que Salazar passara a ficar mergulhado[15].
Mas a porta foi
definitivamente encerrada na sequência da “falhada” reunião extraordinária do
Conselho Ultramarino, em Outubro de 1962 – onde, de resto, a via federal nem
sequer chegou a ser apreciada[16]. Apesar
de ter sido, no princípio da década de sessenta um ponto comum entre alguns
sectores reformistas do regime e a ala não comunista da Oposição, o federalismo
colonial teve uma projecção pública bastante limitada e há quem considere não
ter sido sequer uma “hesitação”[17].
António
Duarte Silva
[1] Cunha Leal, “Considerações de um abstencionista sobre
os problemas nacionais. Licet?”, in Diário de Lisboa, de 23 de Outubro de
1957. Desenvolvidamente, João Madeira, “A Oposição e as eleições presidenciais
de 1958”, in Iva Delgado, Carlos Pacheco, Telmo Faria (org.), Humberto Delgado – as eleições de 1958,
Lisboa, Vega, 1998, pp. 32/33, e Luís Farinha, Francisco Pinto da Cunha
Leal Intelectual e Político : Um estudo biográfico (1888-1970), IHC,
FCSH/UNL, Lisboa, 2003, pp. 590 e segs.
[2] Sarmento Rodrigues, “O patriotismo dos Portugueses do
Ultramar não sofre que sobre ele se formulem reservas”, in Diário de Lisboa, de 26 de Outubro de 1957.
[3] Cunha Leal, “A
tout seigneur tout honneur – Tréplica do Eng. Cunha Leal à réplica do
comodoro Sarmento Rodrigues”, in Diário
de Lisboa, de 27 de Outubro de 1957.
[4] Cunha Leal, O
colonialismo dos anticolonialistas, 3.ª edição, Lisboa, Livraria Petrony,
pp. 24/26.
[7] Ver Luís Farinha, Francisco Pinto da Cunha
Leal Intelectual e Político : Um estudo biográfico (1888-1970), cit.,
p. 616.
[8] A organização e apresentação dos vários textos sobre
a matéria (em especial a documentação relativa ao artigo em causa, “A
Comunidade de Estados Portugueses”, pp. 95 e segs.) é feita por Jorge Fazenda
Lourenço in Jorge de Sena, Rever Portugal
– Textos Políticos e Afins, Obras Completas, Vol. V, Lisboa,
Guimarães/Babel, 2011.
[9] Cfr. Jorge de Sena, “A organização da democracia
portuguesa” e “A Comunidade de Estados Portugueses (III))”, ibidem, pp. 19 e 403, respectivamente.
[10] Miguel Urbano
Rodrigues, O tempo e o espaço em que vivi,
Tomo I, Porto, Campo das Letras, 2002, p. 191, e Douglas Mansur da Silva, A oposição ao Estado Novo no exílio
brasileiro, 1956-1974, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006, pp. 97 e
segs.
[11] Este “Plano Colonial da Oposição”, encontra-se
reproduzido apud Iva Delgado e António de Figueiredo (coord.), Memórias de Humberto Delgado, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1991, pp. 188/189.
[12] Henrique Galvão, Da
minha luta contra o salazarismo e o comunismo em Portugal, Lisboa, Arcádia,
1976 (1.ª edição em Portugal; a edição original, no Brasil, data de 1965), p.
154.
[13] Manuel José Homem de Mello, Portugal, o Ultramar e o Futuro, Edição do Autor, 1962, pp. 119 e
120.
[14] Fernando Tavares Pimenta, Angola, os Brancos e a Independência, Porto, Afrontamento, 2008, p.
289.
[15] Adriano Moreira, A
Espuma do Tempo – Memórias do Tempo de Vésperas, Coimbra, Almedina, 2008,
p. 242.
[16] Ver, a propósito, os “posts”, aqui
publicados, O “Memorial” de Marcelo Caetano (1962), de 23 de Fevereiro de 2016, e Adriano Moreira e o Parecer do Conselho Ultramarino (1962), de 5 de
Março de 2016.
[17] Isabel Castro Henriques, “Hesitações federalistas em
África”, in Ernesto Castro Leal (coord.), O
federalismo europeu – história, política e utopia, Lisboa, Colibri, 2011,
pp. 182 e segs., não faz qualquer referência ao caso português. Ver, também,
Hermínio Martins, “O federalismo no pensamento político português”, in Penélope, n.º 18, Edições Cosmos, 1998,
pp. 34/24.
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