Infelizmente, mas a culpa é minha,
encontrei poucas informações sobre Max Wery, embaixador belga em Lisboa desde o
marcelismo até um período já bem adiantado da nossa democracia. Socorro-me,
pois, do prefácio que José Medeiros Ferreira escreveu para a obra daquele
diplomata, E Assim Murcharam os Cravos,
publicada entre nós pela Editorial Fragmentos, em 1994, com tradução de Regina
Louro. Antigo resistente na 2ª Guerra, após a libertação da Bélgica Max Wery
ocupará, com dois colegas, o edifício do Ministério dos Assuntos Exteriores, na
rue de la Loi, em Bruxelas, em 3 de Setembro de 1945. Antes estivera nesse
Ministério de 1936 a 1940, tendo pertencido ao gabinete do ministro socialista Paul-Henri
Spaak. No final da carreira, a colocação em Lisboa afigurava-se o prenúncio de
uma reforma tranquila. Mas, subitamente, uma revolução eclode em Lisboa. Max Wery
acompanha-a de perto, ou tão perto quanto as circunstâncias do tempo – e a sua qualidade
de representante diplomático de um país estrangeiro – deixaram. O seu livro
estende-se pelo período revolucionário e vai mais adiante, até à presidência de
Ramalho Eanes e aos primeiros passos da adesão às Comunidades. Escolheu-se um
trecho anterior ao 25 de Abril pelo que ele nos apresenta, desde logo, como
«retrato turístico» de Lisboa. Em quase todos os testemunhos de estrangeiros
sobre Portugal repetem-se os mesmos clichés
e lugares-comuns, quase se podendo dizer que existe uma espécie de vulgata de impressões e sensações
despertadas pelo cheiro a sardinha ou a contemplação dos Jerónimos. Porém, o
olhar de Wery é mais fino e penetrante. Dá-nos uma visão assaz curiosa do que
era o Portugal na agonia do regime. Concorde-se ou não com o teor das
observações do embaixador da Bélgica, não se pode negar que tentou compreender
o país onde estava – e isso, por si só, justificaria a publicação deste
extracto de E Assim Murcharam os Cravos.
Cheguei
à capital portuguesa em Novembro de 1972. Nesse ano, o mês de Dezembro foi
excepcionalmente inclemente e, para nosso grande desapontamento, fomos, minha
mulher e eu, acolhidos por violentas rajadas de vento selvagem que, soprando do
mar, arrastavam furiosamente nuvens escuras e densas que desabavam em chuvas
torrenciais. Estávamos um pouco surpreendidos com o mau tempo, fora do
habitual, é verdade, e compreendemos então o sentido de uma frase tantas vezes
ouvida durante as emissões de televisão: “Um anticiclone, proveniente dos
Açores, determina o tempo nestas regiões.” Custava-nos acreditar que, passadas
umas semanas, as amendoeiras e as mimosas estariam em plena floração. Decerto o
clima de Portugal não é rigoroso, longe disso; é bem conhecido o seu céu azul,
sob um sol generoso. Pode fazer calor, muito calor, até, mas com uma
particularidade importante e feliz: o vento que, pela canícula, refresca, ao
fim da tarde, a atmosfera sufocante do dia.
Como Roma, Lisboa foi construída sobre
sete colinas cujas ruas e ruelas se conciliaram ao relevo. Neste aspecto, a
cidade é cansativa, pois todas as artérias são a subir e a descer, o que torna
difíceis os passeios pedestres, tanto mais que o piso se encontra em mau
estado, tornando-se intransitável; os pavimentos estão distribuídos muito
desigualmente e não oferecem, tal como os passeios, uma superfície uniforme
sobre a qual, outra nota pitoresca, se movimentam a custo as carruagens
rangentes e ofegantes de um eléctrico de outra era e rolam autocarros de
imperial, vindos de Londres, demasiado altos para a estreiteza das ruas. E,
contudo, que estranho encanto esta cidade emana! Quer a olhemos de cima, a
bordo de um avião ou das muralhas do Castelo de S. Jorge, quer a contemplemos
de baixo, das margens do Tejo, a cidade, harmoniosamente disposta em andares,
apresenta um aspecto colorido, pontuado pelas tonalidades multicolores das
casas, literalmente agarradas aos flancos das encostas. O encanto cativa-nos
desde a descoberta, ao acaso das caminhadas, das vielas e becos da cidade
antiga; prende-nos quando visitamos os bairros populares do Rossio ou de
Alfama, sobre os quais flutua o cheiro delicioso da sardinha assada e paira a
sombra imensa de Santo António de Pádua, menino querido de Lisboa e deste
bairro onde nasceu. Nas ruelas estreitas, as casas, desde as varandas e janelas
até quase aos telhados, enfeitam-se, quase todos os dias, em todos os andares,
de roupa acabada de lavar, a balouçar ao vento, como estandartes multicolores
cujos tons claros contrastam intensamente com os matizes desbotados das
fachadas que o tempo e a falta de manutenção sujaram irremediavelmente. As
lavadeiras de Portugal ainda não pertencem à lenda. Maravilha, também, errar
por certas ruas, bordejadas de buganvílias de tom malva, vermelho ou laranja,
muralhas que escondem e protegem ciosamente dos olhares indiscretos velhas casa
de estilo árabe e velhos palácios austeros e imponentes, vestígios de um
passado que teve a sua grandeza. Pois o encanto indefinível de Lisboa vem
também – diria mesmo que vem, sobretudo – do seu passado. A cidade recorda-se
de ter sido, durante vários séculos, o centro e a capital de um imenso império,
que não esqueceu no seu entorpecimento posterior e de que conserva uma profunda
nostalgia.
Este sentimento de grandeza e de
saudade melancólica do passado perpetua-se até aos dias de hoje. Deambulem à
beira do Tejo, ali onde se ergue a Torre de Belém: de pés na água, ela parece
continuar a espreitar o regresso das pesadas caravelas, sobrecarregadas de seda
e especiarias, fontes de riqueza e opulência para Lisboa. Tal abundância
encontra-se materializada e comprovada no Mosteiro dos Jerónimos, com o seu
claustro e a sua igreja, situado quase em frente da Torre de Belém e que
provoca a admiração pelo carácter tipicamente português, a arte manuelina, cuja
pureza e delicadeza envolvem quer as âncoras e cordames – coisas do mar – como as
cruzes de Cristo e as flores, de ornatos artisticamente cinzelados. Quanto à
Praça do Comércio, uma das mais belas praças do mundo, oferece aos olhos
maravilhados a vastidão da sua superfície, a unidade de estilo dos palácios que
a rodeiam e a harmonia perfeita das suas proporções.
Trégua de romantismo obsoleto. Voltemos
à realidade. Como encontrei Lisboa no final do ano de 1972?
A cidade estava limpa, ordenada e viva.
A vida quotidiana desenrolava-se normalmente. As lojas estavam bem abastecidas;
era possível encontrar, a preços normais, toda a gama de produtos importados.
As pessoas ocupavam-se tranquilamente das suas tarefas habituais. Em resumo,
ainda se vivia com conforto. Só o preço das rendas de imóveis e de apartamentos
era exorbitante. A construção de uma casa individual ou de um edifício de
vários andares ficava muito cara, apesar dos salários módicos dos operários e
dos preços absolutamente normais dos materiais de construção. Era o indicador
certo de uma especulação anormal sobre os terrenos para construção, nas mãos de
promotores cúpidos.
Para um país em guerra, via-se muito
poucos soldados em uniforme nas ruas. Quanto ao aparelho policial, não era mais
visível que o dos nossos países democráticos. É verdade que os polícias à
paisana, muito numerosos, não podiam ser detectados. Mas saltava à vista que os
polícias fardados pareciam mais arrogantes do que noutros lugares. Os abusos de
poder eram moeda corrente, a corrupção grassava. Na realidade, a corporação
policial encontrava-se acima da lei, para grande fúria da gente do povo, cuja
única arma de defesa era a manha, a astúcia, a desobediência e a fuga. Na vida
de todos os dias, no cabeleireiro, nas ruas, os clientes e passantes
desconfiavam nitidamente uns dos outros e os Portugueses, apesar de dados à
zombaria e dotados de um humor feroz, abstinham-se de falar diante de
desconhecidos e que certamente comportava mais riscos, mas que, segundo a
opinião da gente do povo, habilmente sustentada pela propaganda oficial, não era
tão perigosa como diziam os opositores ao regime. De facto, o soldo de guerra
dos recrutas era relativamente satisfatório; o miliciano só recebia uma parte,
sendo a outra metade paga ao chefe de família em Portugal. Estas remessas, num
país pobre, eram bem-vindas e permitiam a numerosas famílias humildes enfrentar
as necessidades mais elementares. Portanto, era essencialmente uma razão
económica e social que explicava a ausência de oposição do povo aos dissabores
da guerra africana. Um sobrinho de um dos meus criados tinha sido mobilizado e
devia juntar-se à sua unidade em Moçambique. O criado estava, sem dúvida,
desgostoso pela partida do seu familiar, mas não se sentia tão ansioso assim
quanto aos perigos que o sobrinho ia correr. A este respeito, deu-me uma
explicação que anotei imediatamente: “Nem todos os mobilizados para África –
longe disso – vão para a linha de fogo. Geralmente, são as nossas tropas negras
africanas que apanham os piores bocados. Grande parte das nossas tropas
metropolitanas é encarregada de missões de guarda e fica estacionada em campos
fortificados ou nas cidades. Aliás, em 12 anos, só temos a lamentar a perda de
11 mil pessoas, ou seja, 916 mortos por ano, três por dia. É muito menos que o
número de vítimas causadas por acidentes de viação em todo o país”. Onde e de
quem tinha o meu interlocutor recolhido esta explicação? Fiquei embasbacado.
No aspecto humano, a que ligo tão
grande importância, fiquei encantado com a espontaneidade do acolhimento, com a
gentileza e com a prestabilidade das pessoas do povo, quer pertencessem ao
campesinato ou ao mundo operário.
O acesso aos meios da elite intelectual
e daquilo a que geralmente se chama “a sociedade” pareceu-me mais difícil. O
valor desses intelectuais era incontestável: encontrei juristas brilhantes,
médicos ilustres, académicos eruditos, banqueiros e industriais competentes,
mas apercebi-me imediatamente de que esta elite, na maioria, era habitada por
uma susceptibilidade extraordinária e animada de um complexo de superioridade,
talvez inconsciente, mas real, que por vezes deixava transparecer um
pretensiosismo e um orgulho surpreendentes, raiando em certas alturas um
sentimento de xenofobia. Convinha ficar de sobreaviso e mostrar-me cauteloso,
nas conversas mais banais e anódinas, para evitar melindrar os interlocutores,
apesar de dotados de um humor original, acerbo, não desprovido de vivacidade na
resposta pronta.
Era uma elite incontestavelmente
instruída no aspecto do saber. No entanto, privada de contactos prolongados com
os países estrangeiros, permanecera à margem da evolução das ideias. Não tinha
sido influenciada pelos efeitos das diferentes ideologias propagadas durante e
após uma guerra mundial a que Portugal teve o privilégio de escapar. Era
visível que o regime político a isolara perigosamente. Mantivera-se estranha às
correntes políticas, económicas e sociais que, a seguir ao conflito de 1939-45,
impeliram os outros povos a adaptarem-se às novas transformações, Além disso, e
nada de mais natural, aqueles meios intelectuais e de negócios tinham-se
habituado a viver confortavelmente, em vaso fechado, no seio da família
portuguesa, célula social especialmente fechada e tirânica; tinham confiança no
seu país, no seu regime, neles mesmos; pareciam pouco preocupados com o amanhã,
tanto mais que se haviam deixado adormecer um pouco à sombra de um regime que durava
havia mais de quarenta anos e que, há que reconhecê-lo, lhes tinha dado,
durante todo esse tempo, não só ordem e estabilidade, mas também posições,
vantagens e, até, privilégios não negligenciáveis. Neste entorpecimento calmo e
benéfico, a elite conservara-se fiel a concepções estatísticas que dificilmente
encontravam espaço no mundo moderno. A fé na perenidade do império português
era absoluta. Os investidores e homens de negócios desdenhavam colocar capitais
em países estrangeiros, reservando-os, prioritariamente, para as províncias de
além-mar, Angola e Moçambique.
A verdade obriga-me a reconhecer que as
minhas primeiras impressões sobre os meios intelectuais e sobre a sociedade
portuguesa rapidamente se matizaram. Uma vez transposto o fosso das
conveniências e das convenções e uma vez estabelecidas relações humanas, verifiquei
que o que tomara por arrogância e orgulho, não passava, o mais das vezes, de
reserva e pudor. Hoje orgulho-me de ter travado com as pessoas do país amizades
sólidas e sinceras que resistiram à prova do tempo e da separação.
Não os entreterei com as apreciações
que na altura fazia sobre aquilo a que se designa por classe média. Este grupo
social era, como em toda a parte, heterogéneo; não desempenhava, apesar da
existência de um regime corporativo legal, qualquer papel activo,
contentando-se com seguir os conselhos e as injunções do regime. Os seus
membros pareciam-me, acima de tudo, imbuídos da sua pequena pessoa e desejosos
de manter um standing social, frequentemente superior aos seus recursos. Assim,
conservavam um pessoal doméstico que exploravam descaradamente; era um drama
pungente no dia em que tinham de privar-se de alguém, geralmente uma mulher
para todo o serviço, na sua casa.
No conjunto, era uma população
imobilizada. Duas características, todavia: por um lado, um orgulho e uma
fidelidade comoventes pelo passado glorioso; por outro, a existência de um
anticomunismo fóbico, quase visceral, herança do Dr. Salazar. As lavagens ao
cérebro e os constantes e repetidos esforços da propaganda oficial tinham dado
abundantemente os seus frutos. O comunismo era a encarnação do diabo na Terra,
e qualquer pessoa que se permitisse criticar minimamente o regime, além das
perseguições policiais imediatas, via-se classificada, sem qualquer matiz, de “comunista”,
o que constituía a suprema injúria.
Eu sabia que existia uma oposição real,
larvar, clandestina, mas, acabado de chegar, ainda não tivera ocasião de a
descobrir.
A política não ocupava um lugar preponderante
na vida do país. Existia, é certo, uma assembleia nacional e uma câmara
corporativa, mas os seus membros não se apresentavam nessa qualidade oficial. O
facto de se ser deputado não classificava um homem; constituía somente um sinal
tangível de pertença ao regime. Havia entre os deputados e os membros das
câmaras corporativas personalidades de primeira categoria, mas eu só me
aproximava deles no exercício das suas actividades profissionais e mundanas.
Eles próprios não se vangloriavam de o ser. Assim, conheci bastantes advogados,
juristas, presidentes de conselhos de administração e presidentes de
associações diversas (como o Rotary) enquanto ignorava completamente as suas
qualidades de representantes da nação. De facto, o mundo político limitava-se
aos membros do executivo, quer dizer, à Presidência do Conselho e seus
ministros.
Quanto ao papel da imprensa, era pouco
importante. O controlo pelo regime das informações internas, maneira púdica de
designar a censura, entravava o trabalho dos jornalistas, embora alguns, mais
astutos, conseguissem insinuar, nos seus artigos, o relato de alguns factos ou
a publicação de elementos pouco ortodoxos.
[…]
Conservei a recordação de um almoço,
afinal divertido, durante o qual a anfitriã, autêntica marquesa, com 16 quartos
de nobreza indiscutíveis, me perguntou com a maior seriedade do mundo, e para
minha grande estupefacção, se era verdade que os comunistas e os seus aliados
socialistas e os sociais-democratas eram incapazes de se portar correctamente à
mesa e de se servir de um garfo! Esta pergunta, na sua ingenuidade e na sua
estupidez, era reveladora de um estado de espírito absolutamente falseado pela
campanha de intoxicação anticomunista do regime, do qual já tive ocasião de
falar.
Max
Wery
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