Álvaro de Barros Lins (1912-1970), advogado, jornalista, crítico literário (actividade
em que, ó deuses!, maltratou a grandiosa Clarice Lispector), foi um empenhado apoiante
da candidatura presidencial de Juscelino Kubitschek, que lhe retribuiria
fazendo-o chefe da sua Casa Civil, em 1956, e, no ano seguinte, embaixador em
Lisboa. Nessa qualidade, iniciou a escrita, em Janeiro de 1959, de um
interessantíssimo diário, publicado com o título Missão em Portugal (1960). Ainda que sobejamente conhecida, a obra
encontra-se apenas em alfarrabistas, na edição portuguesa realizada em 1974 pelo
Centro do Livro Brasileiro. É um volumoso livro, com trechos muito curiosos sobre
Portugal, sendo ainda uma fonte essencial, imprescindível, para conhecer de
perto o incidente gerado pela concessão de asilo político a Humberto Delgado. Diversas
biografias de Delgado contam o episódio em pormenor e, para um enquadramento
mais genérico, pode consultar-se O
Realismo da Fraternidade. Brasil-Portugal. Do Tratado de Amizade ao caso
Delgado, de Wiliams da Silva Gonçalves (Lisboa, Imprensa de Ciências
Sociais, 2003). De Missão em Portugal escolheram-se
as primeiras «entradas», relativas a Janeiro de 1959, quando ainda não se dera
o «caso Delgado». São páginas muito eloquentes sobre a vida diplomática na
Lisboa da época, que suscitava em Álvaro Lins sentimentos melancólicos, anotados
no seu diário. Um livro que, à semelhança de muitos outros aqui falados, bem
merecia uma reedição.
Lisboa, 1 de Janeiro de 1959
Parecem
ter passado de vez os ventos e chuvas do mês de dezembro. Um belo dia de sol
este primeiro dia do ano. Está frio, mas muito agradável. E isto faz-me lembrar
uma expressão do Eça, que surge e ressurge, espaçadamente, nos seus romances de
Lisboa, sobretudo em Os Maias: “o sol
frio de janeiro”.
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Não haverá hoje a cerimónia oficial de Ano Novo: a do círculo diplomático no
Palácio de Belém, para a apresentação de cumprimentos pessoais dos Chefes de
Missão ao Presidente da República. O Almirante Tomás suprimiu-a este ano sob a
alegação de que, praticamente, já se realizara anteontem, por ocasião do
banquete que ele ofereceu no Palácio da Ajuda ao Núncio Apostólico, com a
presença de todos os Embaixadores e Ministros Plenipotenciários. Um amigo
íntimo do Almirante Tomás, o Comandante Tenreiro, referiu-me ontem, quando me
telefonou para desejar-me os clássicos “bons anos”, que salvar-se de uma
cerimónia oficial, sobretudo com o Corpo Diplomático, constitui uma espécie de
felicidade para o novo Presidente: ele é muito tímido, acanhado, sente-se gauche nessas ocasiões. Representa para
ele um suplício toda a parte social da Presidência. Suponho que aquele – “sobretudo
com o Corpo Diplomático” – se refere ao péssimo francês do Almirante Tomás.
Pois chega a ser pior do que o do General Craveiro Lopes. Lembro-me, a propósito
da primeira cerimónia dessa espécie, na qual tomei parte, em 1957: o Núncio fez
um pequeno discurso em francês: e num mau francês; a resposta do Presidente
Craveiro Lopes foi também em francês: e num francês igualmente mau. Como o meu
não é grande coisa – isto me consola de certo modo.
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São 4 da tarde: aproveitando o tom do dia, que parece chamar as pessoas para as
ruas, vou sair com Heloísa para darmos um passeio de automóvel pela linha das
praias até o Estoril e Cascais.
Lisboa, 2 de Janeiro de 1959
Ontem,
antes de ir ao Estoril e Cascais, compareci com minha mulher ao Palácio de
Belém para assinarmos o livro de cumprimentos ao Presidente da República e à
Senhora Américo Tomás. Embora suprimida a cerimónia oficial dos cumprimentos do
Corpo Diplomático no 1º de janeiro, achei que seria correcto este acto de
cortesia ao Presidente. Em seguida, passámos também na residência do Presidente
do Conselho a fim de deixar, pessoalmente, cartões de cumprimentos para Salazar,
como tenho feito sempre nesse dia. E este ano, ainda com mais obrigação, dada a
gentileza com que me distinguiu no dia 30 no Palácio da Ajuda. Íamos fazer uma
visita pessoal ao Cardeal Cerejeira, mas os jardins e ante-salas do seu Palácio
estavam tão cheios de gente – logo desistimos.
[…]
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Procuro ver a minha agenda com os compromissos e convites para esta primeira
quinzena de janeiro. São quase todos para jantares, recepções, cocktails; e assim continuará em cada
ano, como no anterior, a monotonia, a espécie de rotina dessas coisas mundanas
em estufas de salões. Sim, tenho-me recordado algumas vezes, ultimamente, de
certa frase de Oscar Wilde, numa das suas peças de teatro, e cujo significado,
não no momento em que a li, porém, só agora, posso compreender por inteiro: “Ah,
a vida mundana da sociedade – que tragédia para quem se sente posto do lado de
fora, mas que comédia para quem se acha do lado de dentro!”
Não
obstante, tudo isto faz parte do ofício diplomático e há que cumprir tais
programas da melhor maneira, como quem executa um serviço de Estado, Pois
grande parte dos deveres de um diplomata consiste em vestir de noite um smoking ou uma casaca – como os garções
de hotel e os prestidigitadores de circo. # Em compensação
encontro na agenda dois compromissos que me põem num estado de euforia juvenil:
uma visita a Nazaré (na quinta-feira dia 8) e outra a Évora (na quarta-feira
dia 14).
Álvaro Lins
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