Soutelinho da Raia
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Soutelinho da Raia, Vidiferre e os Palavrões
No ano lectivo de 1968-69, que foi o ano de residência
relacionado com a obtenção do meu Ph.D. em Espanhol e Português, na
Universidade de Wisconsin, em Madison, vejo-me um dia abordado por um colega,
que dava pelo nome de Kenneth W. Rasmussen, conhecido entre nós por Ken. Que
tinha um favor muito especial para me pedir. E em que consistia esse “favor
muito especial”? Nada mais nada menos que em eu atirar para o ventre guloso e
libidinoso do gravador dele com todos os palavrões que soubesse. Que estava a
fazer uma tese de doutoramento, sob a orientação do Prof. Lloyd Kasten, o
especialista em filologia românica mais célebre do Departamento de Espanhol e
Português, sobre eufemismos portugueses, o que, em linguagem vernácula, quer
dizer palavrões ou asneiras, e que lhe constara que as pessoas mais desbocadas
de Portugal eram as da minha região, e muito particularmente as daquela zona
raiana em que eu nascera e me criara, em virtude, sobretudo, da influência da
língua galega, de que eram prova insofismável as Cantigas de Escárneo e Maldizer da Idade Média.
Perante um pedido tão insólito, fiquei boquiaberto,
aparvalhado, sem saber o que dizer. Refeito da surpresa e depois de uma breve
pausa, respondi-lhe mais ou menos nestes termos:
- Olhe, colega amigo: você e quem disso o informou têm
toda a razão para concluir que a minha região é tristemente famosa pela sua
ubérrima e inesgotável mina de palavrões, qual deles o mais colorido, mas, por
várias razões, eu sou a pessoa menos indicada para lhe servir de cobaia (que em
gíria académica se diz informante, como me ensina) nessa aventura de mau gosto,
em meu modesto entender: primeiro por ter sido criado no seio de uma família,
com cinco irmãos, pais e avós, de língua limpa e cristã, onde não se toleravam,
nem em anos bissextos, palavras feias nos lábios de qualquer membro do clã familiar:
nem sequer nos da minha avó materna, que era a pessoa que falava mais alto e
mais grosso em casa e que era a guarda-mor dos arcaismos e inventora
incomparável de provérbios; segundo, por ter passado mais de uma dezena de anos
a estudar no seminário, especificamente numa ordem religiosa, em que o aluno
que se atrevesse a dizer uma palavra menos apropriada era severamente punido
(como exemplo, informei o meu interlocutor, que uma vez tinha sido expulso de
uma partida de voleibol por ter proferido uma palavra tão inócua como lixar-se, dirigida a um parceiro de jogo
que não parava de me chatear); terceiro, porque, por hábito e por feitio, sou
alérgico a palavras feias, da mesma maneira que o sou ao fumo do tabaco e ao
cheiro da cera e a perfumes fortes.
Perante
estes meus argumentos, o meu colega não se deu logo por vencido. Que se tratava
de um projecto científico muito meritório; que o seu orientador, o Prof.
Kasten, estava deveras empenhado em ver realizado esse pioneiro projecto
linguístico e filológico por um doutorando seu. Que se fosse questão de eu não
me sentir à vontade para proferir esses palavrões diante dele, que me
emprestava o gravador e que os proferisse sozinho, longe dos ouvidos mórbidos
de qualquer mortal.
E depois de lhe ouvir não sei quantas razões para eu
colaborar com ele e com o Prof. Kasten (evocava o nome do velho e venerando
Mestre para maior efeito, sabendo da grande estima e admiração que eu nutria
por ele), disse-lhe mais ou menos estas palavras, para pôr ponto final no
assunto:
– Olhe, Ken: dizer que não conheço um número razoável de
palavrões ou asneiras seria mentir, pois ouvi-os de toda a cor e feitio durante
a minha meninice e adolescência, quando participava no desporto-rei de
Soutelinho da Raia – o jogo da pedrada contra os galegos de Vidiferre; ouvi-os
da língua viperina da Tia Peralta, uma vizinha minha que saía para a varanda a
mimosear publicamente com os nomes mais torpes o cagarolas do marido, conspícuo
membro da Confraria de São Cornélio; ouvi-os da boca impudica das regateiras;
ouvi-os da boca imaginosa dos ciganos, sobretudo por ocasião da ceifa do
centeio, quando, ao fim de um dia de trabalho duro, à torreira do sol,
enganavam o cansaço com o sumo fermentado da uva; ouvi-os da boca dos
ovelheiros, dos almocreves e de outros espécimes da fauna humana, e até os ouvi
dos lábios bentos do Padre Zé, oriundo da Galiza e pároco de Soutelinho,
sobretudo quando a égua o impedia de acertar com os grãos de chumbo na perdiz,
a que fazia pontaria a cavalo; e como, modéstia à parte, a Madre Natureza se
dignou dotar-me de uma memória relativamente fiel, ainda os não esqueci todos;
mas dizer que seria violentar a minha natureza e os meus princípios proferir
esse infindo e infando chorrido de palavrões na presença de uma pessoa ou de um
gravador é a pura verdade. Os mais castiços não me atreveria a dizê-los diante
de ninguém e os mais apimentados nem sequer conseguiria dizê-los diante de mim
próprio.
Com visível desilusão e relutância, o meu colega pareceu
ficar convencido com as minhas razões, mas, antes de mudar de assunto, ainda me
foi dizendo que esperava que eu pensasse bem no pedido que me tinha feito e
viesse a concluir que às vezes a ciência nos pede pequenos sacrifícios.
Quando, passados dias, contei este episódio ao meu
professor e orientador Jorge de Sena e ao meu professor de Literatura
Brasileira, História da Língua e Linguística, António Salles, filólogo mineiro,
superiormente dotado para a malícia e para o gozo... festivo e inofensivo do
próximo, eles encheram-se de rir e gargalhar, dizendo, entre outras graçolas
(in)dignas de registo nas páginas castas do meu Diário, que deveria ser um
espectáculo curioso e edificante as sessões em que o recluso e pudibundo Lloyd
Kasten estivesse a comentar com o seu doutorando Rasmussen os abundantíssimos e
picantíssimos eufemismos da língua portuguesa que não constam das Cantigas de Escárneo e Maldizer em que o
Prof. Kasten era perito exímio.
Passados meses, quase pelo final do ano lectivo, ao
entrar uma tarde no escritório de Jorge de Sena, na Bascom Hall, para uma breve
consulta acerca do meu paper
referente ao seminário anual sobre os romances de Eça de Queirós, notei que
estava em conferência com o António Salles. Como mandam as regras de cortesia,
apressei-me a pedir desculpa e a dizer que voltaria noutra ocasião. Que não
senhor – apressou-se a dizer Jorge de Sena: que o que estavam a discutir era de
interesse académico para mim; que estavam a preparar-se para arguir, no dia
seguinte, como membros do júri, a tese de doutoramento de um colega meu – o Ken
Rasmussen –, cujo orientador principal era o Prof. Lloyd Kasten. Que me
sentasse e que aprendesse. E eu sentei-me e aprendi. E que aprendi eu? Que,
entre outras novidades exóticas, peculiares e picarescas, que deixo à
imaginação pudica do leitor, em duas passagens do texto, o Rasmussen dizia que
o “amor platónico” era amor homossexual e que Platão era “amiguinho dele”
(Sócrates); e numa nota de rodapé definia Sócrates para os leitores e para a
posteridade com estas e únicas palavras textuais: “célebre homossexual da
antiguidade clássica.”
Jorge de Sena a acabar de ler esta nota e António Salles
a implorar-lhe que essa genial observação lha deixasse fazer a ele, Salles, na
cerimónia da defesa da tese. Com certeza que deixava, e com muito gosto: que no
texto havia tantos disparates que chegavam para todos.
E enquanto, na monda do texto da tese de doutoramento do
meu colega Rasmussen, deparavam com estes e outros tesouros do mesmo jaez, os
meus dois ilustres e saudosos professores e mestres gargalhavam a bandeiras
despregadas e o Cirurgião, por deferência, como lhe competia, apenas ria em
surdina ... recordava... e aprendia.
António Cirurgião
Reduzir Sócrates a um mero homossexual da antiguidade clássica, ainda que célebre, parece-me pior que o palavrão mais acintoso que tenha ouvido da varanda da sua vizinha.
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EliminarPrezado Sr. João Alves,
Provavelmente por distracção, o Sr. atribui ao memorialista, António Cirurgião, as palavras
escritas pelo autor da tese de doutoramento, Kenneth W. Rasmussen, palavras que o memorialista veemente condena, como
um leitor atento poderá claramente constatar. Sugiro que tenha a bondade de reler
o texto, para não ter que lhe dizer com Santo Agostinho: "Bene curris, sed extra viam."
Atentamente,
António Cirurgião,
Prezado Sr. António Cirurgião, lei-o sempre com muita atenção e gosto. O comentário não era referido a si. Culpa minha que assim fiz entender. Referia-me ao autor da tese que em busca de palavrões acabou por dizer um bem pior. Obrigado pelo reparo.
EliminarO palavrão, um eufemismo? Não será lapso? Não será antes um disfemismo?
ResponderEliminarE isso passou-se em que século, no tempo de Alcibíades?
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