Jorge Amado (1912-2001)
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A
ligação de Jorge Amado (1912-2001) a Portugal foi de tal forma intensa que mereceu até um
livro. De Álvaro Salema, Jorge Amado. O Homem e a Obra. Presença em Portugal (Publicações Europa-América, 1981). A
presença do autor de Gabriela entre
nós, bem como de sua mulher, Zélia Gattai, é várias vezes assinalada nas
memórias de Jorge e de Zélia. Jorge Amado refere amiúde Portugal – e Lisboa, em
particular – em Navegação de Cabotagem.
Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei (Publicações Europa-América, 1992), evocando as
pessoas e os lugares da sua eleição: Alçada Baptista, o editor Lyon de Castro,
a actriz Beatriz Costa, o Hotel Tivoli e o Parque Mayer. Escolheu-se um breve
apontamento de um tempo em que Lisboa era ainda uma cidade inacessível por uma
noite, o qual, não sei porquê, faz lembrar Uma
Noite em Lisboa, de Erich Maria Remarque, de que já aqui se falou.
Gérard Castello Lopes
Lisboa, 1957
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Lisboa,
1957 – a cidade proibida
Retorno de viagem a Moscovo, em 1957,
em Copenhaga tomo o avião da SAS para o Rio, escalas em Zurique, Lisboa, Dakar,
Recife – aviões a hélices, vinte e seis horas de horas de sofrimento. O
trajecto de Zurique a Lisboa durava quatro horas, nunca menos. Ora, aconteceu
que com apenas três horas e pouco de voo o aparelho começa a descer, conheço os
telhados de Lisboa: sem direito de entrar em Portugal tudo o que eu conhecia de
Lisboa eram os telhados. Durante a escala, reduzido à sala de trânsito, sonhava
com as ruas, as ladeiras, os cafés, fanático de Eça de Queiroz, por ele sabia a
cidade.
Interrogo a aeromoça, me explica que
daí a uma hora começaria a greve dos pilotos da SAS, antes que comece os aviões
descerão no aeroporto mais próximo. Para não criar maiores transtornos aos
passageiros, o comandante resolvera abreviar o tempo de voo para Lisboa, onde
com facilidade poderíamos encontrar lugares para a América do Sul em aeronaves
de outras companhias. Acrescentou que seguiríamos viagem pela Swissair, no dia
seguinte pela manhã, primeiro voo previsto.
Levaram nossos passaportes, na sala de
trânsito aguardámos até que nos conduziram primeiro à polícia, em seguida à
alfândega. No guichet da polícia recebemos de volta os passaportes com visto válido
por vinte e quatro horas. Observado pelos olhos curiosos da polícia, recebi o
meu, lá estava o visto, quase não acreditei, andei para a alfândega, os funcionários
revistavam a bagagem de mão de cada um. Era o fim de uma tarde de Inverno.
Somos levados de ônibus a um hotel do
centro no qual a companhia já tinha reservado apartamentos. Ao entregar o
passaporte na recepção enxerguei um tipo de olhos postos em mim, envergava
chapéu e gabardina, o polícia clássico: o secreta menos secreto do mundo. De
posse da chave e de convite da SAS para jantar numa casa de fados com os demais
passageiros, subi ao quarto, além dos fados eu tinha outra opção: minha amiga
Beatriz Costa exibia graça e talento num teatro do Parque Mayer, conforme eu
lera num jornal enquanto aguardava na sala de trânsito a decisão das
autoridades. Nem a nostalgia dos fados, nem a picardia de Beatriz: eu tinha
finalmente Lisboa ao meu alcance pelo tempo limitado daquela noite, a cidade
sonhada e proibida, ia percorrê-la, andar nas ruas.
Desci à portaria, cambiei um pouco de
dinheiro, perguntei como chegar ao Rossio, sob as vistas e os ouvidos atentos
dum policial: levantara-se de uma cadeira onde estivera sentado durante minha
breve ausência. Saí na direcção indicada, em busca do Rossio, alguns passos
atrás o tira, fechara a gola da gabardina, fazia frio.
Noite sem história. Eu andava
lentamente, tentando receber tudo quanto Lisboa tinha a me dar: os perfumes, as
cores, os ruídos, casas, rostos, vozes, risos, tanta coisa. Meu coração pulsava
acelerado e eu decerto sorria, os olhos húmidos pois palmilhava as calçadas de
Lisboa. Parava em frente às montras, fitava as pessoas, lia tabuletas, nomes de
travessas, de tascas, de cafés. Demorei-me diante de vitrina da Livraria do Diário de Notícias, vislumbrei uma
edição portuguesa de Degelo, de Ilya
Eremburg. Eu lhe entregara em Moscovo uma semana antes a edição brasileira do
mesmo romance, a livraria estava aberta, entrei, comprei um exemplar – quando
tivesse ocasião o enviaria a Ilya – e uma bela edição d’O Livro de Cesário Verde. Demorei-me no vício de folhear livros,
seria a presença ostensiva do policial que despertara a curiosidade do
balconista? Olhava-me como a adivinhar minha identidade, uma pergunta nos
lábios, não se atreveu a fazê-la. Quando saí, ele cochichou com a moça da
caixa. Lá fomos nós, eu e meu acompanhante, em direcção à Praça do Comércio.
De volta ao Rossio sentei-me a um café,
feliz da vida, o secreta encostou-se a um poste, suspendeu a gola da capa, o
frio aumentara, ri para dentro. Informei-me com o garçon sobre Alfama e Mouraria e para lá seguimos os dois: eu era
na época andarilho competente, por vezes o secreta via-se obrigado a apressar o
passo para não me perder de vista. Por casualidade assisti meus companheiros de
avião desembarcarem do ônibus diante da casa de fados mas não os acompanhei ao
bacalhau à Gomes de Sá, contentei-me com a leitura da ementa fixada à porta,
preferi a noite perfumada e friorenta de Lisboa, as ruas calmas, algumas
desertas, aquele encontro de amor.
Começara a cair uma chuva fina, bem
agasalhado no Couraçado Potemkim, meu casaco russo, perambulei sem destino até
altas horas, ria sozinho pensando no tira sob a chuva e o frio, passava da uma
da madrugada quando regressei ao hotel cansado e exultante. Da portaria, ao
receber a chave, avistei o homem da gabardina parado na estrada, à espera de
ver-me tomar o elevador. Quase lhe acenei adeus pensando que não mais o
encontraria, engano: na manhã seguinte quando me dirigi ao ônibus que levaria
os passageiros de volta ao aeroporto, lá estava ele na calçada. Ocupou um lugar
no fundo do veículo, acompanhou-me até à sala de trânsito, não sei se fora
dormir em casa ou se passara a noite no hall
do hotel, mal sentado na cadeira incómoda. No ônibus espirrava, ossos do
ofício.
Assim decorreu aquela noite quando o
acaso decretou a greve dos tripulantes da SAS para que as portas da cidade me
fossem abertas e eu pudesse sentir a atmosfera, o hálito, entrever a beleza,
tocar o mistério e a vida de Lisboa. Com a mesma emoção com que se toca pela
primeira vez corpo de mulher desejada e proibida.
Jorge
Amado
Continuo a gostar muito desta série...
ResponderEliminarMaria Teresa Mónica
Obrigado, Teresa, pelas suas palavras sempre simpáticas!
ResponderEliminarCom amizade,
António