sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Lisboa, 1957.

 
 
Jorge Amado (1912-2001)
 
 
 
 
           A ligação de Jorge Amado (1912-2001) a Portugal foi de tal forma intensa que mereceu até um livro. De Álvaro Salema, Jorge Amado. O Homem e a Obra. Presença em Portugal (Publicações Europa-América, 1981). A presença do autor de Gabriela entre nós, bem como de sua mulher, Zélia Gattai, é várias vezes assinalada nas memórias de Jorge e de Zélia. Jorge Amado refere amiúde Portugal – e Lisboa, em particular – em Navegação de Cabotagem. Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei (Publicações Europa-América, 1992), evocando as pessoas e os lugares da sua eleição: Alçada Baptista, o editor Lyon de Castro, a actriz Beatriz Costa, o Hotel Tivoli e o Parque Mayer. Escolheu-se um breve apontamento de um tempo em que Lisboa era ainda uma cidade inacessível por uma noite, o qual, não sei porquê, faz lembrar Uma Noite em Lisboa, de Erich Maria Remarque, de que já aqui se falou.
 
Gérard Castello Lopes
Lisboa, 1957
 
 
 
Lisboa, 1957 – a cidade proibida
 
         Retorno de viagem a Moscovo, em 1957, em Copenhaga tomo o avião da SAS para o Rio, escalas em Zurique, Lisboa, Dakar, Recife – aviões a hélices, vinte e seis horas de horas de sofrimento. O trajecto de Zurique a Lisboa durava quatro horas, nunca menos. Ora, aconteceu que com apenas três horas e pouco de voo o aparelho começa a descer, conheço os telhados de Lisboa: sem direito de entrar em Portugal tudo o que eu conhecia de Lisboa eram os telhados. Durante a escala, reduzido à sala de trânsito, sonhava com as ruas, as ladeiras, os cafés, fanático de Eça de Queiroz, por ele sabia a cidade.
         Interrogo a aeromoça, me explica que daí a uma hora começaria a greve dos pilotos da SAS, antes que comece os aviões descerão no aeroporto mais próximo. Para não criar maiores transtornos aos passageiros, o comandante resolvera abreviar o tempo de voo para Lisboa, onde com facilidade poderíamos encontrar lugares para a América do Sul em aeronaves de outras companhias. Acrescentou que seguiríamos viagem pela Swissair, no dia seguinte pela manhã, primeiro voo previsto.
         Levaram nossos passaportes, na sala de trânsito aguardámos até que nos conduziram primeiro à polícia, em seguida à alfândega. No guichet da polícia recebemos de volta os passaportes com visto válido por vinte e quatro horas. Observado pelos olhos curiosos da polícia, recebi o meu, lá estava o visto, quase não acreditei, andei para a alfândega, os funcionários revistavam a bagagem de mão de cada um. Era o fim de uma tarde de Inverno.
         Somos levados de ônibus a um hotel do centro no qual a companhia já tinha reservado apartamentos. Ao entregar o passaporte na recepção enxerguei um tipo de olhos postos em mim, envergava chapéu e gabardina, o polícia clássico: o secreta menos secreto do mundo. De posse da chave e de convite da SAS para jantar numa casa de fados com os demais passageiros, subi ao quarto, além dos fados eu tinha outra opção: minha amiga Beatriz Costa exibia graça e talento num teatro do Parque Mayer, conforme eu lera num jornal enquanto aguardava na sala de trânsito a decisão das autoridades. Nem a nostalgia dos fados, nem a picardia de Beatriz: eu tinha finalmente Lisboa ao meu alcance pelo tempo limitado daquela noite, a cidade sonhada e proibida, ia percorrê-la, andar nas ruas.
         Desci à portaria, cambiei um pouco de dinheiro, perguntei como chegar ao Rossio, sob as vistas e os ouvidos atentos dum policial: levantara-se de uma cadeira onde estivera sentado durante minha breve ausência. Saí na direcção indicada, em busca do Rossio, alguns passos atrás o tira, fechara a gola da gabardina, fazia frio.
         Noite sem história. Eu andava lentamente, tentando receber tudo quanto Lisboa tinha a me dar: os perfumes, as cores, os ruídos, casas, rostos, vozes, risos, tanta coisa. Meu coração pulsava acelerado e eu decerto sorria, os olhos húmidos pois palmilhava as calçadas de Lisboa. Parava em frente às montras, fitava as pessoas, lia tabuletas, nomes de travessas, de tascas, de cafés. Demorei-me diante de vitrina da Livraria do Diário de Notícias, vislumbrei uma edição portuguesa de Degelo, de Ilya Eremburg. Eu lhe entregara em Moscovo uma semana antes a edição brasileira do mesmo romance, a livraria estava aberta, entrei, comprei um exemplar – quando tivesse ocasião o enviaria a Ilya – e uma bela edição d’O Livro de Cesário Verde. Demorei-me no vício de folhear livros, seria a presença ostensiva do policial que despertara a curiosidade do balconista? Olhava-me como a adivinhar minha identidade, uma pergunta nos lábios, não se atreveu a fazê-la. Quando saí, ele cochichou com a moça da caixa. Lá fomos nós, eu e meu acompanhante, em direcção à Praça do Comércio.
         De volta ao Rossio sentei-me a um café, feliz da vida, o secreta encostou-se a um poste, suspendeu a gola da capa, o frio aumentara, ri para dentro. Informei-me com o garçon sobre Alfama e Mouraria e para lá seguimos os dois: eu era na época andarilho competente, por vezes o secreta via-se obrigado a apressar o passo para não me perder de vista. Por casualidade assisti meus companheiros de avião desembarcarem do ônibus diante da casa de fados mas não os acompanhei ao bacalhau à Gomes de Sá, contentei-me com a leitura da ementa fixada à porta, preferi a noite perfumada e friorenta de Lisboa, as ruas calmas, algumas desertas, aquele encontro de amor.
         Começara a cair uma chuva fina, bem agasalhado no Couraçado Potemkim, meu casaco russo, perambulei sem destino até altas horas, ria sozinho pensando no tira sob a chuva e o frio, passava da uma da madrugada quando regressei ao hotel cansado e exultante. Da portaria, ao receber a chave, avistei o homem da gabardina parado na estrada, à espera de ver-me tomar o elevador. Quase lhe acenei adeus pensando que não mais o encontraria, engano: na manhã seguinte quando me dirigi ao ônibus que levaria os passageiros de volta ao aeroporto, lá estava ele na calçada. Ocupou um lugar no fundo do veículo, acompanhou-me até à sala de trânsito, não sei se fora dormir em casa ou se passara a noite no hall do hotel, mal sentado na cadeira incómoda. No ônibus espirrava, ossos do ofício.
         Assim decorreu aquela noite quando o acaso decretou a greve dos tripulantes da SAS para que as portas da cidade me fossem abertas e eu pudesse sentir a atmosfera, o hálito, entrever a beleza, tocar o mistério e a vida de Lisboa. Com a mesma emoção com que se toca pela primeira vez corpo de mulher desejada e proibida.
 
Jorge Amado
 
 

 

2 comentários:

  1. Continuo a gostar muito desta série...
    Maria Teresa Mónica

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  2. Obrigado, Teresa, pelas suas palavras sempre simpáticas!
    Com amizade,
    António

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