Paul Bowles (1910-1999)
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Paul Bowles (1910-1999) é um grande escritor para as férias, e fora delas. Este Verão li de um
trago Memórias de um Nómada (Assírio
& Alvim, 2007), livro que nos deixa estonteados com tanta errância e
tanta inquietude de lugares e gente. Há algumas referências a vindas a Lisboa, onde Bowles chegou a
passar uma temporada primaveril que, ao que sei, ainda não foi devidamente
estudada. Encontrando-se no norte de África com a mulher doente, escreve: «A Jane ouvira dizer que havia bons médicos em Lisboa. Metemo-nos num avião e fomos até lá. Lisboa estava chuvosa, escura e cheio de ventos frios; passámos o tempo sentados, a tremer de frio, nas estranhas e pequenas pastelarias que aí abundavam. A determinada altura, metemo-nos num antigo navio da Royal Mail Line que ia para Buenos Aires e desembarcámos no Funchal, na Madeira. Ficámos cerca de um mês e podíamos ter ficado mais tempo apesar da chuva constante, pois gostámos.»
A dado passo das suas Memórias,
Bowles refere um artigo que, precisamente sobre a Madeira, escrevera para a mítica revista Holiday. Procurei-o por toda a parte,
até que voz amiga e culta me informou que o mesmo se encontrava publicado cá. Para mais,
num livro que eu tinha; e que até tinha folheado, saltitando a leitura com a indesculpável leveza do meu ser. É verdade: em Viagens. Compilação de Escritos, 1950-1993, publicado entre nós pela Quetzal, obra traduzida por Jorge Pereirinha Pires e prefaciada por Paul Theroux, lá
está o artigo sobre a ilha da Madeira, saído nas páginas da Holiday em Setembro de 1960. Publica-se
aqui um pequeno extracto, pois o texto é grande – e vale a pena. Como vale a
pena, já agora, o mais recente À Beira da Água, primeiro de dois volumes que reúnem praticamente todos os contos de
Bowles.
Vista da Quinta Vigia, 1960
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Madeira
Quando primeiramente pensei visitar a
Madeira, fui aconselhado pelos meus amigos ingleses a reconsiderar. – Vais
detestar aquilo – disseram-me eles. – Não tem carácter nenhum.
– Um sitiozinho horrendo, abafado.
– Ninguém lá vai a não ser as senhoras muito idosas.
– Madeira! Mas para quê?
– Eu tive uma tia-avó que costumava lá
ir religiosamente. Creio que a coitadinha acabou por lá morrer.
– É o término absoluto!
Esta unanimidade de opiniões adversas
poderia ter-me dissuadido, caso eu não estivesse já resolvido que iria lá de
todo o modo; além disso, dava-se sempre o caso de o meu interlocutor nunca ter
lá estado efectivamente, mas o exprimir uma opinião que hoje em dia prevalece
na Londres literária.
Sempre senti que deveria gostar da
Madeira, por isso vim até cá, e ainda bem que o fiz. Percebo agora que as
descrições deles são completamente irreais; avaliando o local nos termos dos
turistas britânicos, era como se eles houvessem insistido em que as ruas de
Nova Iorque não têm ninguém a não ser chineses, ou que a Califórnia consistia
somente em estúdios cinematográficos. A Madeira tem imenso carácter, muito
embora não seja exactamente o carácter que lhe é atribuído pelas brochuras
turísticas. «Clima ideal durante todo o ano.» «A Madeira ergue-se do Atlântico como
uma fantástica esmeralda brotando de uma incrível extensão de lápis-lazúli.»
(Creio que visões semelhantes não são invulgares com o peculiar narcótico mescalina,
mas duvido que exista um comprimido capaz de fazer com que o clima de Inverno
pareça ideal.)
É verdade que os penhascos se erguem
espectacularmente desde as profundezas do Atlântico. A Madeira é um território
com cerca de 750 quilómetros quadrados, que em bom rigor é um enorme rochedo
vulcânico rodeado pelo mar. O ar marítimo penetra em tudo; até nos pacatos
vales do interior se sente com frequência o inequívoco odor da água salgada.
Não se pode chegar à ilha senão de barco; ela está situada a 570 milhas a
sudoeste de Lisboa e 320 milhas a ocidente da costa de Marrocos. Não existe
nenhuma pista de aterragem, e o serviço de hidroaviões foi suspenso em 1960.
Há quatrocentos anos, Camões, o poeta
português, descreveu como sendo «do mundo a derradeira» (estando no fim do
mundo), e há agora ocasiões em que ela oferece a mesma impressão,
particularmente num dia de sol em que o rude Atlântico embata contra ele e os
cumes das falésias perpendiculares estejam encobertos por nuvens baixas. É um
território agreste, sem conforto, com um clima relativamente ameno e um robusto
povo híbrido. A população portuguesa original depressa foi reforçada por
colonos italianos, espanhóis e holandeses; mais tarde vieram refugiados
muçulmanos e judeus da Espanha cristã, e finalmente negros do continente
africano, que foram trazidos como escravos para trabalharem nas plantações de
açúcar. A presente população é uma amálgama indiferenciada destas várias
linhagens. Uma raça de homens intrépidos, acostumados a lidar com o vento e as
ondas, mas incapazes de compreenderem a mentalidade do século XX dos visitantes
que acham tal raça um fenómeno admirável. Eles não vêem qualquer vantagem na
sua extraordinária robustez – somente infortúnio nas condições que tornam
necessário que eles a desenvolvessem.
Uma pequena conversa que tive durante a
minha primeira visita permaneceu-me no espírito. Eu estava a manifestar a um
madeirense o meu entusiasmo acerca dos encantos do território. Observei-lhe que
ele não sabia a sorte que tinha por viver num sítio tão encantador, e ele disse
baixinho – Sim. Um pássaro pode pousar no pátio de uma prisão e levantar voo
outra vez sem sequer perceber onde esteve.
No parque da Quinta da Vigia, no
Funchal, há uns pequenos letreiros que dizem: RESPEITE AS PLANTAS. Seria
difícil não o fazer. A madeira é uma terra onde se tem muita consciência do
mundo vegetal que nos rodeia. As plantas crescem rapidamente no ar ameno e
húmido. Quando se viaja de carro pelos campos tem-se a sensação de que cada
hectare deve ter sido laboriosamente talhado a dada altura no passado; é
difícil acreditar que um tão vasto jardim rochoso pudesse ter passado a existir
sem planeamento humano.
Onde a terra está trabalhada, encostas
inteiras da montanha foram transformadas em socalcos. Muitas vezes cada nível
tem o seu próprio pequeno canal de água, alimentado pela levada mais próxima. As levadas
são uma complexa rede de canais de irrigação que conduzem a valiosa água da
chuva por ali abaixo, desde os picos até ao mar. A levada normal não tem mais de um metro de largura e setenta
centímetros de profundidade, mas a água dentro dela é tão transparente e fria
que somos tentados a bebê-la. O projecto dos canais foi iniciado em 1836 e
ainda está em curso; presentemente existem 650 quilómetros deles, e todas as
pedras foram talhadas e colocadas à mão.
Mas quando o dia acaba e o trabalhador
vai para casa, em vez de ler o jornal ele põe-se a arranhar o seu jardim. Não
há habitação, por mais miserável que não tenha os seus pequenos canteiros de
flores, as suas latadas e arvoredos. Todas as janelas têm os seus vasos floridos,
o mais pequeno pátio está coroado por palmeiras e filodendros, a barraca mais
arruinada posta-se entre vinhedos e bananeiras em floração. É frequente que as
bermas da estrada nas zonas mais remotas estejam plantadas com heras, ou
lírios, ou fetos. Por vezes as videiras alongam-se em latadas entre as árvores
por cima da estrada principal, de modo a que os viajantes possam caminhar
confortavelmente à sombra. No centro do Funchal há três ravinas profundas onde,
na estação chuvosa, tumultuosas torrentes se precipitam desde lá de cima, a
caminho do oceano. Essas ravinas foram transformadas em túneis através da
plantação de buganvílias e outros arbustos floridos que se estendem de uma
margem a outra, de modo a que desde as pontes, quando se olha para montante ou
jusante da ravina, nada se veja dela a não ser o tecto do túnel – um longo
panorama de sólidas flores. Seis metros abaixo, corre a água.
Quando os portugueses primeiramente
descobriram a Madeira, há mais de 600 anos, as encostas estavam inteiramente
cobertas de floresta virgem. Não havia qualquer sinal de que algum ser humano
jamais tivesse posto os pés ali. A densidade da vegetação era tal que os
colonos decidiram queimar tudo. Essa revelou-se uma má ideia, uma vez que o
holocausto daí resultante os obrigou a irem para o mar de novo. Diz-se que
decorreram sete anos até que o incêndio finalmente se extinguisse, e a floresta
primordial foi quase completamente destruída (ainda existem algumas partes dela
no lado norte da ilha). Mas durante os séculos seguintes o solo fértil e as
peculiares condições climáticas conseguiram produzir um impressionante
reflorestamento.
[…]
São Gonçalo, 1960
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Numa coisa os meus amigos de Londres
tinham razão: a maioria dos visitantes da ilha é britânica. Chegam ao Funchal
em navios britânicos e vão directamente para os grandes hotéis geridos por
ingleses nos subúrbios, onde permanecem uma semana ou duas – possivelmente três
– mas raras vezes mais, e onde, em teoria, passam o seu tempo jogando ténis ou
golfe, e nadando numa das grandes piscinas (já que as praias são inexistentes).
Mas só se tiverem sorte com o tempo, o que em geral não sucede, uma vez que a
maioria deles vem no Inverno, quando está a chover. O meu conselho aos
americanos que visitem a Madeira é a estação seca, que é o Verão, caso
contrário ficarão amargamente desapontados.
No entanto, as pessoas que vivem nas
Ilhas Britânicas apreciam a ocasional meia hora de sol ou mesmo um dia nublado
em que não caia chuva, e isso explica porque continuam a usar a ilha como
estância invernal.
[…]
As modas da bebida vão e vêm, tal como
as modas em tudo o resto; ao longo das últimas décadas os vinhos doces não têm
estado em grande favor. Eu, por exemplo, tinha bebido muito pouco vinho do
Porto antes de viver em Portugal; e raramente provara o da Madeira antes de vir
cá. Surpreendentemente, o bom sercial, que se pode tomar em qualquer taberna do
Funchal, é quase tão seco quanto o xerez seco. Não me lembro de alguma vez ter
tomado sercial nos Estados Unidos, mas julgo que poderia ter considerável
popularidade aí. A sua textura oferece uma indefinível impressão de luxo.
Todos os vinhos da Madeira têm essa
qualidade até certo ponto, mas o malvasia, o boal e até o verdelho são
demasiado doces para se adequarem ao meu gosto americano. O sercial tornou-se a
minha senha nos cafés e tabernas do Funchal. Mais tarde, em Lisboa, fiquei
indignado quando não consegui obtê-lo num bar vulgar e fui obrigado a
contentar-me com vinho verde. Agora estou uma vez mais no Funchal, e desta vez
aprecio o luxo de o encontrar na mais humilde banca de vinhos. Funchal.
A maneira mais simples de o visitante
ter uma ideia exacta da gama de bouquet
e de corpo nos vinhos da Madeira é ir visitar o armazém de uma das maiores
firmas exportadoras no Funchal. Aí poderá passar uma hora agradável sentado num
bar dentro de uma sala cheia de barris antigos, provando colheitas de há um
século enquanto lhe vai sendo descrita a técnica de preparar cada variedade por
um empregado de bar que não vai fazendo a soma, pois todas as bebidas são por
conta da casa.
Paul
Bowles
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