1. O nome de Elena Ferrante tornou-se-me familiar há
pouco mais de um ano. Chamou-me a atenção para ele uma recensão publicada pela revista
The
Economist numa das suas edições de Junho ou julho de 2015 que dava notícia de
alguns factos susceptíveis de despertar
a curiosidade dos mais distraídos. O
êxito de vendas, recente, súbito e assinalável que os romances da autoria da
dita Ferrante estavam a ter nos Estados Unidos era coisa
por demais interessante, um vez que se resumiam
a uma tetralogia contada em (quatro) livros escritos originariamente em
italiano entre 2012 e 2014. O âmbito paroquial das historias que aí se contavam
tornava estranho o grande interesse que por elas teria o leitor
norte-americano: a tetralogia de Ferrante passava-se toda em torno da vida de
duas amigas que tinham nascido num bairro pobre de Nápoles ainda durante a
segunda guerra mundial, pelo que, pelo menos à primeira vista, se não percebia
de imediato que razão explicaria tanta
paixão por parte de leitores/compradores nos EUA. A tudo isto acrescia mais um
enigma, visto que ninguém sabia quem seria ao certo a dita Ferrante. O nome
corresponderia a um pseudónimo, e quem o usava recusara-se até então a revelar
por que meio fosse a sua identidade. Finalmente, pormenor mais picante entre
todos. A obra – Economist dixit – tinha em geral tom feminista. Apesar disso, não
se excluía a possibilidade de Elena Ferrante ser, afinal, um homem.
Como não sou menos sensível do que as
outras pessoas ao encanto de todos estes mistérios quando acabei de ler a
recensão já o nome se me tinha ficado na memória. Por isso, mal ele chegou,
meses depois, aos escaparates das livrarias portuguesas, já rodeado de uma
certa aura de best-seller que
prometia êxito de vendas também deste lado do Atlântico, apressei-me a comprar
(também eu) a tetralogia napolitana. Comecei a lê-la e não consegui parar.
2. A obra de Ferrante tem riqueza
suficiente para que dela se possa falar a propósito de múltiplos temas. Mas, a
mim, abalou-me a narrativa do que acontece às duas meninas nascidas no bairro
pobre de Nápoles em Agosto de 1944 pelo retrato impiedoso, que nela se contém,
das relações de poder que são constituídas numa comunidade humana pobre, isolada
e entregue a si própria. No bairro, quem lá nascia dificilmente conseguia ir
morar para outro lado, ter um modo de vida diferente do que aquele que tinha
sido o dos seus pais ou avós, ou simplesmente furtar-se à tirania
constantemente exercida por quem mais podia em relação aos mais frágeis. Isto
era assim em todas as dimensões da existência. Por isso, o contrato básico no
qual assentava a vida social do bairro era simples porque se resumia a uma
única cláusula: obediência a troco de
proteção. Quem não podia devia obediência, por regra incondicional, a quem
podia. E, em troca, quem podia assegurava a necessária protecção – face às
agressões dos outros ou face aos desvarios do destino – de quem não podia.
Todas as relações, fossem elas entre adultos e crianças, homens e mulheres,
ricos e pobres, assentavam nesta cláusula básica porque sem ela a ordem do
bairro se desmonoraria. A atmosfera geral em que todas elas decorriam era sempre perpassada pelo medo: medo que as
crianças tinham dos adultos, que as mulheres tinham dos homens, que os pobres
tinham dos ricos. Muito importante era também a condição social destes últimos.
Como, no bairro, a riqueza se concentrava nas mãos de muito poucos (de uma ou
duas famílias) que viviam do florescimento de negócios obscuros e sempre
marginais ( nunca por nunca se pagavam impostos), ninguém sabia ao certo como é
que ela se poderia alcançar por outra via que não fosse a da subserviência de
momento aos senhores dos negócios existentes. De modo que a todos parecia que o
tempo tinha parado e que a vida estava traçada. Fora do bairro não havia
existência; dentro dele, a existência era aquela ou nenhuma outra.
3. A história que Ferrante nos conta é a
de uma heroína – uma das duas amigas que estão no centro do enredo – que consegue, graças a uma férrea disciplina
e a um quase desumano comportamento de estudante “marrão”, ultrapassar a
barreira da escola primária, ir estudar para outro lugar e assim escapar ao
destino do bairro, construindo para si própria uma vida diversa daquela que
experimentara no seu universo de infância. Por razões múltiplas e nem todas
racionalmente compreensíveis, a sua grande amiga (o seu alter-ego) apesar de genial, vem a sofrer o destino oposto. Nunca
chega a sair do lugar onde nasceu e nunca chega a libertar-se dos códigos de
comportamento do bairro, aos quais em geral obedece até ao seu desparecimento
aos 66 anos.
A narrativa, que acompanha portanto toda a
segunda metade do século XX e termina na primeira década do século XXI (1944 – 2010) é de tal modo
rica que resumi-la a uma fábula política seria ridículo. O que a tornou tão
popular foi a sua capacidade para falar do que em geral interessa à alma
humana: o amor e a traição, a amizade e a rivalidade, a generosidade e o ciúme,
a coragem e a vileza. Mas como os problemas de organização da vida colectiva
não são menos humanos do que todos estes outros, a tetralogia de Ferrante é também uma fábula política, que nos
revela um mundo que, apesar de nos ser contemporâneo, se pauta por normas e
práticas que o nosso sentido comum de decência instintivamente repudia. O segredo
da popularidade da obra estará também na surpresa desta revelação. A
tetralogia escrita por Elena Ferrante expõe-nos cruamente um modo de
organização da vida colectiva (política)
que nos choca e nos causa repugnância porque o não consideramos decente.
4. Antes do mais, não consideramos decente
que uma comunidade se organize em torno
de uma divisão básica entre quem tudo pode e quem, por nada poder, a tudo
obedece. Fomos, pelo contrário, habituados a acreditar que, devendo todos ser
tratados por todos com igual consideração e respeito, quem “pode” (quem dirige)
fá-lo em mandato dado por todos, no qual o voto de cada um, qualquer que seja a
sua condição existencial – seja rico ou pobre, velho ou novo, homem ou mulher –
tem exatamente a mesma valia e o mesmo peso do que o voto de qualquer outro. Do
mesmo modo, causa-nos repugnância que a segurança de cada um dependa da
obediência incondicional a quem “pode” garanti-la. Na vida que consideramos
decente, a organização da segurança não é favor que se dispense em troca de
obediência; é dever que se exerce, e que se exerce por aqueles a quem demos o
nosso voto e dos quais esperamos contas. Causa-nos também repugnância uma ordem
colectiva em que não haja possibilidade de discussão sobre o que é, ou não é, uma
vida bem vivida, ou em que todos sejam condicionados a viver de acordo com
parâmetros únicos não escolhidos; em que
não haja sanção para quem acumula riqueza de forma obscura sem a correspondente
contribuição para a comunidade; em que
não haja outro destino possível senão aquele que por azar ou sorte a cada um
calhou quando nasceu; ou em que o medo impere na modelação de todas as
relações.
Habituámo-nos
a pensar de acordo com estes padrões gerais de decência porque somos herdeiros de práticas e instituições que
foram desenhadas – depois de um longo desenvolvimento histórico - nos dois lados dos Atlântico, no mundo
europeu e no mundo americano, nos finais do século XVIII; e que, depois de
terem sido aniquiladas pelos fenómenos totalitários do século XX, voltaram a
reafirmar-se, expandindo-se um pouco por todo o globo, a partir da segunda guerra mundial. Democracia é o nome que em geral lhes
atribuímos.
Que a democracia é coisa frágil,
imperfeita e sempre difícil de definir (não pretendo que os exemplos de
decência que acabei de enumerar sejam dela a definição exaustiva) demonstra-o a
história escrita por Ferrante. Nápoles, onde a mesma história se passa, é uma
cidade italiana; e ninguém duvidará que a Itália da segunda metade do século XX
(durante a qual decorre toda a trama) procurava reger-se por critérios
democráticos. Mas nem isso impediu e existência do bairro em que uma outra
ordem, diversa e nefasta, imperava.
Voltamos agora, na segunda década do
século XXI, a sentir bem as imperfeições da democracia, ou, pelo menos, a
compreender quão difícil é garantir que os seus ideais se concretizem.
As
ideias circulam hoje a uma velocidade nunca antes vista. O destino da
tetralogia napolitana é disso um bom exemplo: uma obra literária celebrada pelo
seu sucesso nos Estados Unidos no verão de 2015 é oferecida ao público
português, na sua própria língua, poucos meses depois. Mas a rápida circulação
das ideias é acompanhada pela não menos rápida circulação dos dinheiros, dos
bens e do convite global ao seu consumo ( como posso ter eu a certeza de
que o mistério quanto à verdadeira identidade de Ferrante, tão propalado, não é senão um hábil
instrumento de marketing destinado a aumentar
as vendas do seu livro?). A globalização das ideias, da informação, da
economia, dos hábitos de vida e de consumo traz um “estreitamento” do mundo
que, por um lado, nos deixa cheios de esperança. É bom saber-se que cada vez
mais pessoas em cada vez mais pontos do globo se revêem nas mesmas obras e
apreciam as mesmas coisas. Mas o que aumenta em nós o sentimento de pertença
comum a um cada vez mais vasto universo humano, se traz esperança, também traz
medo, incerteza, insegurança. Não é preciso explicar por que razão tal acontece.
Será ainda possível, nos dias de hoje, que só o afinco no estudo e na escola
permita a quem quer que seja escapar – como o permitiu à heroína da história contada por Ferrante – ao destino
fatal de um mundo opressivo? É legítimo que nos perguntemos. Mas a legitimidade da pergunta não anula a
repugnância instintiva que todos sentimos perante os destinos fatais dos mundos
opressivos, quaisquer que eles sejam. Por isso, discutir a democracia que hoje
temos é a melhor forma de a homenagear.
Maria Lúcia Amaral
Nem de propósito, este fim de semana estourou a bomba da suposta descoberta da identidade desta escritora ;)
ResponderEliminarJá li todos e adorei, o ultimo volume foi um soco no estômago do qual nunca recuperei!!! Agora tenho de ver a série!!!
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