Erich Maria Remarque (1898-1970)
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Pseudónimo de Erich Paul Remark
(1898-1970), o escritor Erich Maria Remarque tornou-se célebre pelo livro Im Westen nichts Neues, de 1929,
traduzido entre nós sob o título A Oeste
Nada de Novo, um relato da vida nas trincheiras da Grande Guerra, que o
autor conhecera enquanto soldado do exército alemão. Die Nacht von Lissabon/Uma Noite em Lisboa é também, em certa
medida, autobiográfico, já que Erich Maria Remarque, à semelhança da personagem
do romance, fugiu também da Europa para os Estados Unidos, viajando da Alemanha
natal para a Suíça em 1931 e daí para a América, em 1939. Não sendo uma
obra-prima, Uma Noite em Lisboa (1962)
é um livro poderoso, que marcou gerações de leitores em Portugal, entre os quais me
incluo, que o li há muitos anos, numa tarde de Verão quase tão quente como
aquela em que hoje escrevo. O livro, publicado pela Europa-América com tradução
de Maria da Luz Mota Veiga, foi reeditado há poucos anos pela Saída de Emergência. Dificilmente haveria nome mais apropriado para descrever a trama desta novela, que ilustra o desespero dos refugiados que, na Lisboa dos anos
1940, aguardavam uma passagem para a América, rumo à liberdade.
Estúdio Horácio Novais
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Uma
noite em Lisboa
Tinha
os olhos pregados no navio. Fundeado no Tejo, a alguma distância do cais,
iluminava-o um clarão vivíssimo. Se bem que estivesse já havia uma semana em
Lisboa, ainda me não habituara à luminosidade extravagante da cidade. Nas
terras donde eu vinha, a noite fazia da cidade negros blocos de carvão, onde o
foco de uma lanterna representava mais perigo do que a peste na Idade Média. Eu
vinha da Europa do século XX.
O
navio de passageiros ali atracado recebia carga, e eu sabia que a partida
estava marcada para a tarde do dia seguinte. À luz crua de uma fiada de
lâmpadas eléctricas, iam-se acumulando fardos de carne, peixe, conservas, pão e
legumes, os carregadores arrastavam para bordo caixotes imensos e um guindaste
içava volumes e fardos com a despreocupada indiferença de quem não lhes sente o
peso.
O
navio preparava-se para a partida, qual arca em tempo de dilúvio. E era de
facto uma arca de Noé. Qualquer navio que naquele ano de 1942 abandonasse a
Europa assemelhava-se a uma arca de salvação. A América era o monte Ararat e o
dilúvio ia crescendo sempre. A enchente engolira há muito a Alemanha e a
Áustria, atingindo proporções gigantescas na Polónia e em Praga. Amsterdão,
Bruxelas, Copenhaga, Oslo e Paris estavam também submersas, as cidades da Itália
ruíam e a própria Espanha deixara de ser segura. A costa de Portugal ficara
sendo o último refúgio para os emigrantes que acima da pátria e da própria vida
colocavam os seus ideais de liberdade, justiça e tolerância. Quem a partir daí
não conseguisse alcançar a terra bendita da América estava perdido. Ficaria
condenado a uma morte lenta no labirinto de documentos sempre recusados, de
impossíveis licenças de trabalho e autorização de permanência no país, de
campos de internamento; envolvido nos complicados meandros da burocracia;
reduzido à solidão irremediável de desconhecido em terra alheia e à indiferença
geral e criminosa com que era olhado o destino de cada homem, consequência inevitável
da guerra, do medo e da necessidade. Naquela altura o homem não valia nada: um
passaporte válido era tudo.
Passara
a tarde a jogar no Casino do Estoril. Tinha um fato ainda em bom estado, e por
isso me deixaram entrar. Fora uma última e desesperada tentativa de subornar o
destino. A licença que nos permitia residir em Portugal caducava dentro de
poucos dias e nem Ruth nem eu possuíamos quaisquer outros documentos. O navio
fundeado no Tejo era o último com o qual, ainda em França, acalentáramos a
esperança de chegar a Nova Iorque; a lotação esgotara-se, porém, com meses de
antecedência, e, além do visto americano, faltavam-nos para cima de trezentos
dólares. Tinha tentado arranjar pelo menos o dinheiro e fizera-o pelo único
processo ao meu alcance – o jogo. Uma tentativa absurda, bem sei, visto que,
ainda que tivesse ganho, só por milagre conseguiríamos entrar a bordo. Vivendo
paredes meias com o desespero e o perigo, aprendera a acreditar em milagres.
Sem isso não poderia sobreviver. Dos sessenta dólares que ainda me restavam,
perdi nessa tarde cinquenta e seis.
[…]
Um
táxi rondava solitário. Ele chamou-o e olhou para mim.
−
Vamos! – disse eu.
Entrámos
para o carro e ele indicou ao motorista uma direcção. Pensei que deveria avisar
Ruth de que passava a noite fora, mas, no momento em que me acomodava no táxi
escuro e bafiento, apoderou-se de mim uma esperança louca, de tal forma
torturante que quase cambaleei. E se tudo fosse verdade? Talvez não
estivéssemos ainda perdidos, talvez o impossível se realizasse. Seria a
salvação! Não podia, nem por um segundo, arriscar-me a perder de vista o desconhecido.
Contornámos
as arcadas da Praça do Comércio e não tardou que nos perdêssemos no labirinto
de escadas e vielas que galgam a encosta. Eu não conhecia ainda aqueles bairros
de Lisboa. Como em todas as cidades por onde andara, também ali o que eu
conhecia eram as igrejas e os museus – não tanto porque me animasse um
desvairado amor a Deus ou à arte, mas muito simplesmente porque nas igrejas e
museus ninguém nos exigia documentos. Frente ao Crucificado ou aos grandes
mestres da arte nós continuávamos a ser homens… não indivíduos de identidade
duvidosa.
Deixámos
o táxi e seguimos a pé por escadas e ruelas angulosas. Misturava-se no ar o
cheiro a peixe, a alho e a madressilva, a que vinha juntar-se o suave perfume
do sono e de um Sol já morto. O Castelo de S. Jorge crescia na noite enluarada
e a luz ia descendo em cascata pelos inúmeros degraus.
Parei
a olhar o cais. Lá em baixo, o rio simbolizava simultaneamente liberdade e
vida, e o rio corria para o mar, que por sua vez significava a América.
Erich Maria Remarque
(y)
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