Annemarie Schwarzenbach (1908-1942)
|
Como referimos ontem, Annemarie
Schwarzenbach esteve duas vezes em Portugal: uma em 1941, outra em 1942. Na
série «Estrangeiros em Portugal», que tem vindo a ser publicada no Malomil, divulga-se
agora um texto de Schwarzenbach intitulado «Soalheiro e agreste Portugal»,
saído no Thurgauer Zeitung, em
11-VII-1942. Foi extraído do livro Annemarie Schwarzenbach em Portugal
(1941, 1942), que recolhe os artigos por si publicados aquando das duas
visitas que realizou a Portugal. Coordenada por Gonçalo Vilas-Boas (que também
assina uma excelente introdução), a colectânea desses textos, traduzidos por
Maria Antónia Amarante, foi editada pelo Centro Interuniversitário de Estudos
Germanísticos (Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra).
Soalheiro
e agreste Portugal
Dizes-me: canta, canta
Mas de canções nada sei
Que a Coimbra nunca fui
Por lá ainda não passei…
Quem
canta esta melodia popular, tal como qualquer camponês e qualquer criança,
conhece o nome da sua respeitável universidade que foi, no passado, um grande
centro de saber e da qual se diz hoje que é preciso ir a Coimbra para entender
o espírito do novo Portugal e do seu Governo. O Presidente do Conselho
português, Oliveira Salazar, foi professor em Coimbra e de lá deu início à sua
notável missão. O Cardeal Patriarca de Lisboa ocupou em tempos uma cátedra em
Coimbra. Governo de professores ou ditadura de intelectuais foi a designação
dada ao regime do Dr. Salazar, e ambos os títulos são honoríficos. Mas o cantor
desta melodia popular nunca passou às portas de Coimbra. Até há pouco tempo,
nunca ninguém lhe exigiu que aprendesse a ler e a escrever. É pobre e diz que
não sabe cantar. E, contudo, canta, e as suas canções são decerto tão antigas
como a Universidade de Coimbra. Pouca coisa mudou. A aspereza da Primavera, a
aspereza da vida e o amor melancólico de que falam as canções populares, são as
mesmas nos dias de hoje e encontram na alma portuguesa o mesmo eco que no
passado.
Porque
Portugal, esta varanda da Europa, mau grado a sua luz dourada e o seu grande
encanto, não é um país ameno. A vida em Portugal, que hoje acolhe e seduz os
estrangeiros – porque nesta bela faixa costeira ainda se concentra a variedade
quase exuberante e o conforto das formas de viver europeias – tem pouco a ver
com as fontes mais profundas de que se alimentou a alma viva do povo português
e que ele irá conservar não obstante os múltiplos temporais.
É
com temporais, que nas altitudes do extremo Norte transformam a neve em rosas,
que varrem, no Sul, os pastos escalvados do Algarve, agitam, no interior, as
copas dos pinheiros e no Tejo enfunam as velas nas barcas dos pescadores, que a
Primavera se faz anunciar em Portugal. No cimo do montes, os pequenos moinhos
de velas esperam pelo vento; nos campos avermelhados, os bois à frente da
charrua resistem-lhe com a larga fronte, como se o quisessem aprisionar na lira
dos seus chifres arqueados. O sol escalda e dardeja o seu brilho quase metálico
sobre as estradas brancas, mercados de rua, enseadas piscatórias, velhas
muralhas e portais de quintas nas aldeias e sobre a superfície cintilante do
Tejo e do mar. Mas o vento mete-se de permeio e brinca com as massas de nuvens
que se acastelam e, num abrir e fechar de olhos, ensombram o céu e a seguir
voltam a evaporar-se, convertendo-se em finos véus, através dos quais irrompe o
azul, aqui em tons pastel e mate, ali de um brilho diáfano, acolá intenso como
um manto de rei.
Esta
agitação do céu, este jogo arisco entre a luz e a sombras, a bonança e a
tormenta, a mudança brusca de um calor quase africano para um frio húmido e
glacial, funcionam como um alerta para que não nos deixemos seduzir – nem pela
areia branca e os canteiros de flores abrigados na Costa do Sol, nem pelos sons
das guitarras e as vozes suaves e saudosas dos fadistas. Grandes são os
contrastes em Portugal. Imediatamente atrás da baía da Riviera, no Estoril,
estende-se um campo agreste, fustigado pelo vento, onde reina a urze, as pedras
e uma erva rala; onde moços pastores, com uma manta de feltro esfarrapado às
costas e os pés envolvidos em palha e serapilheira, guardam ovelhas e porcos. E
por detrás da nostalgia dos fados, por detrás da palavra saudades, que significa, a um tempo, melancolia e remorso, dor da
distância, ternura e amor que é intraduzível esconde-se uma tristeza séria e
profunda, que faz parte da herança dos portugueses. Os viadutos romanos que
lhes atravessam os campos, as capelas e as muralhas de fortificações
visigóticas, as cidadelas árabes, as torres mouriscas e os sólidos palácios dos
seus primeiros reis, que vinham conquistando a partir do Norte e em demanda da
cidade de Lisboa, recordam que os portugueses provaram os destinos de múltiplos
povos, a torre de Belém, na foz do Tejo, dá testemunho da época grandiosa em
que daqui largaram os navegadores nas suas caravelas para dar a conhecer o
mundo aos europeus, e os belos palácios evocam esses tempos de grande riqueza e
de grande poder. Mas esses destinos eram transitórios e o país, tal como as
circunstâncias que enformaram a terra e as gentes, permanecem iguais a si
mesmos.
Às
vezes, ouve-se dizer que foram a riqueza e o poderio mundial que incutiram maus
hábitos à nação portuguesa e a debilitaram; que a perda desse poderio mundial a
teria levado à resignação e ao esgotamento. Esta interpretação é precipitada e
superficial. Lá fora, os homens do campo nunca tiveram parte em qualquer
riqueza que os debilitasse e vivem hoje, tal como antigamente, de parco
sustento e trabalho árduo, situação dificilmente comparável à de outro povo
europeu; a marca de uma gravidade respeitável, neles gravada por uma existência
agreste, associa-se a uma jovialidade profunda e genuína que provém da mesma
fonte. Basta assistir a uma tourada portuguesa, que já na época dos reis
visigóticos constituía um jogo cavaleiresco da nobreza e um motivo de diversão
para o povo, para reencontrar na mestria simultaneamente viril e donairosa dos
cavaleiros, no espantoso adestramento dos seus magníficos cavalos, a tradição
de uma nação cavaleiresca. Não é um espectáculo sangrento; na versão
portuguesa, o touro não é morto e os cavaleiros mais famosos são filhos de
famílias antigas que, no campo, criam cavalos e touros. Finalmente, era preciso
ter visto na manhã de temporal do 10 de Maio os pequenos veleiros, com três e
quatro mastros, dos pescadores de bacalhau, concentrados sobre o Tejo como um
rebanho, para receberem a bênção episcopal antes da largada para a Gronelândia;
com esta bênção da pátria levam consigo a agrestia dos seus ventos e o travo
agreste e grave da sua vida.
Annemarie
Schwarzenbach
"Lá fora, os homens do campo nunca tiveram parte em qualquer riqueza que os debilitasse..."
ResponderEliminarA profundidade e clarividência de quem não fez turismo em Lisboa e Estoril. Obrigado por mais este maravilhoso olhar sobre nós.