Lisboa, 1996
Fotografia de Paulo Nozolino
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Não contente por ter publicado um livro
sobre Portugal, Richard Hewitt publicou dois. Uma Casa em Portugal, de 1996, e Regresso à Casa em Portugal, de 2005, ambos editados entre nós pela
Gradiva. Os livros de Hewitt não são propriamente obras-primas, mas não almejam
a tanto. Pretendem ser um retrato das aventuras e desventuras de um casal que,
a dado momento das suas vidas, decide instalar-se numa aldeia nos arredores de Lisboa.
Obviamente, o registo é «leve», busca o humor previsível, mas aqui e ali tem
observações interessantes, ainda que – uma vez mais – se repita uma certa visão
estereotipada de Lisboa, prenhe de lugares-comuns. Não foi possível determinar com certeza quando
ocorreu a estadia de Barbara e Richard em Lisboa, pelo que se apresenta a data
da edição anglo-saxónica do seu primeiro livro, publicado entre nós no ano seguinte, com tradução de Fernanda Pinto
Rodrigues.
Lisboa, 1996
Fotografia de José Maria Díaz Maroto
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Lisboa
era uma sinfonia. A sua localização perfeita atraíra os Fenícios há mais de
três mil anos. Eles tinham-lhe chamado Alis-Ubbo – a costa deleitosa – e o seu
porto natural fora sempre lucrativo. Construída em socalcos sobre sete colinas
sobranceiras à confluência do rio Tejo com o oceano Atlântico, era o que todas
as grandes cidades deveriam ser: um compêndio do moderno e um repositório do
antigo. Mas, como todas as capitais, Lisboa não estava imune às catástrofes. No
século XV, a cidade era a sede de um vasto e grandioso império; em 1755
mergulhou na obscuridade em consequência de um violento terramoto que a reduziu
a um montão de escombros fumegantes. Foi reconstruída, evidentemente, mas a
essência da tragédia persistiu. Recebendo ainda água por meio de vetustos
aquedutos abobadados, e turistas por um moderno aeroporto em expansão, Lisboa
fazia com êxito a ponte entre os séculos. Avançara devagar, olhando
constantemente por cima do ombro, com uma aura de maculada reverência. Não
sendo nem imponente nem aparatosa como outras capitais europeias, Lisboa era
mais prática. O que funcionava permanecia no lugar, o que não funcionava era
abandonado ao futuro.
Situada
como o bastião ocidental do continente europeu, com a África a dormitar a sul,
Lisboa tinha sido o último porto de paragem antes da partida para a descoberta do
vasto mar azul. Os marinheiros de Portugal tinham afrontado a viagem; os seus
exploradores haviam colonizado o Novo Mundo e regressado a Lisboa com as suas
riquezas. Mas o espírito outrora tão grandioso fora quebrado e os Portugueses
tinham ficado como que acondicionados a vácuo dentro das suas próprias
tradições. Foi este medo palpável do novo que abriu as portas a uma longa
ditadura. E foi a ditadura, rígida e conservadora, que preservou a essência de
décadas passadas, instilou formaldeído no sangue do povo e transformou Lisboa
numa redoma dos sentidos.
Para Barbara e para mim a cidade era
uma confusão de sensações. Os cafés, os museus, as galerias, tudo isso era um
bálsamo civilizado para a rusticidade crescente da nossa existência quotidiana.
Adorávamos passear nos vários jardins públicos de Lisboa, dando de comer aos
pombos ou saboreando um bolo à sombra das palmeiras e figueiras. Ou então
percorríamos as estreitas ruas empedradas da Baixa, onde as travessas tinham os
nomes dos ofícios noutros tempos exercidos nas lojas que ainda ladeavam os
passeios.
Se nos sentíamos com mais energia,
subíamos as colinas íngremes e maravilhávamo-nos com o panorama ecléctico de
telhados, pátios, castelos e o rio lodoso, de tonalidades douradas, que corria
em baixo. O barulho, o trânsito e os autocarros a vomitar fumo recordavam-nos
que o Novo Mundo estava a invadir demasiado depressa o velho. Aqui um agradável
estilo de vida – os curiosos carros eléctricos, as barbearias de uma só cadeira
e a sesta da tarde, entre outras tradições consagradas pelo tempo – estava a
dar relutantemente lugar a fatos de passeio e agendas, hotéis de muitos andares
e centros comerciais. Mas, se escolhêssemos bem, ainda podíamos pisar as
agulhas de pinheiro amolecidas de ontem, caminhar pelas ruas de degradados
bairros antigos, comprar gelados num jardim público umbroso ou beber café
sentados ao sol e a olhar para o mar.
Um ou dois dias por mês Barbara e eu
concedíamos a nós próprios o luxo de mergulhar os nossos espíritos no continuum eterno da cidade.
Levantávamo-nos cedo e visitávamos bibliotecas e lojas de novidades na cidade
durante a manhã; depois, ao princípio da tarde, descontraímo-nos com um almoço
prolongado, como faziam todos os residentes, depois de percorrermos o Bairro
Alto à procura da tasca perfeita. Procurávamos até encontrarmos um canto
sossegado e escuro num restaurante com poucas mesas, onde os empregados de mesa
ainda usavam aventais compridos e cada refeição era um pequeno festim. Depois,
entorpecidos por causa da comida pesada e com uma cálida sensação de
complacência, púnhamo-nos de novo a caminho para irmos ver obscuros filmes de
arte na Cinemateca ou no centro cultural de alguma embaixada. Completado o dia,
e cansados do tumulto da cidade, regressávamos ao apartamento da Mamã e à
tranquilidade do campo. Parecia uma mistura perfeita de cidade e província –
uma causava-nos sempre nostalgia da outra, e a outra nunca estava muito longe.
Richard
Hewitt
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