La mirada fuerte
Para os andaluzes, la mirada fuerte significa a maneira
intensa de olhar algo, o poder de ver fundo naquilo que nos rodeia, o exame
crítico da realidade circundante. E é na pintura que esta expressão melhor se
sente com os quadros que os artistas nos deixam como testemunhos fixos da sua
interpretação do mundo e da vida, do seu modo de os ver. Basta pensar nos óleos,
por exemplo, de El Greco, Rembrandt, Vermeer, Van Gogh, Mondrian, Klee ou
Picasso para nos darmos conta da força desse olhar que atravessa como um raio X
a espessura das aparências sensíveis e delas retém o instantâneo duma paisagem,
dum rosto, dum momento da vida que passa, duma cena de amor ou da visão dum
certo rosto. Ontem, ao ver um longo documentário sobre Picasso, entendi o
sentido profundo desta expressão andaluza aplicada à pintura: em todos os
momentos do instrumento poderoso de uma pupila que radiografava a vida e o seu
tempo, deixando depois desse cortejo de cenas e momentos que a sua mão plasmou
numa tela ou num papel, essa visão singular que nos comove ou arrebata. Ao
pintar Guernica, em 1937, Picasso
conseguia criar um ícone que, para todo o sempre, simbolizaria o horror da
tragédia da guerra de Espanha, associado ao atroz bombardeamento da aviação
hitleriana sobre a cidade basca e o sofrimento sem limites dum povo esmagado
pelo Behemoth da suástica. Todavia, para além da data e do facto trágico que
ele evocava em proporções tão grandiosas, a sua mirada fuerte deixava-nos, sobretudo, uma metáfora intemporal do sofrimento humano.
Leonardo da Vinci
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O pior mal
“Rien n’est jamais acquis à l’homme
Ni sa force,
ni sa faiblesse, ni son coeur.
Et quand il croit ouvrir ses bras
Son ombre est celle d’une croix,”
Louis Aragon
“Vê: um palmo
são os dias que me deste.
minha duração
é um nada frente a ti;
todo o homem
que se levanta é apenas um sopro,
apenas uma
sombra o homem que caminha. (…).
Os homens todos são apenas um sopro.”
Salmo 39, 6-7 e 12.
Inegavelmente, o pior mal
é ter nascido. Desse acidente cada um de nós involuntariamente é precipitado na
vida e, pelo mesmo acto, condenado a vir morrer um dia, amarrado sem
escapatória nenhuma a um corpo transitório, mortal, destinado a cair, mais
adiante, mais tarde, noutro poço sem fundo. A sua vida e o seu destino, desde
que tombámos do ventre materno, é sermos-para-a-morte, zum Tode sein, é uma condenação a desaparecermos depois duma
passagem efémera pelo mundo sublunar, intermédio ao qual se associa todo o
resto dum cortejo de males, maiores ou menores, que Hamlet, no seu monólogo na
esplanada do palácio de Elsenore, enuncia como o lote de sofrimentos, dores e
humilhações próprios da humana condição vivida sub specie temporis – todas essa chicotadas e mil pragas naturais
que nos afligem a carcaça e o coração enquanto nos arrastamos debaixo dum céu
indiferente e alheio aos erros dos que nos oprimem, às insolências que
recebemos dos grandes, às penas do nosso amor desprezado e aos desdéns que o
nosso espírito recebem dos nulos (Hamlet,
acto II, cena I). Neste condenado das aflições humanas, que o bardo inglês pôs
na boca do atormentado príncipe da Dinamarca, nada falta do rol de misérias que
atormentam a espécie humana desde que cada homem tombou da vulva materna,
anatomicamente situada entre as fezes e as ruínas, até que uma outra ferida da
terra nos absorva na sua cova onde dormirá eternamente disperso e nulo o “pó
levantado” que tínhamos sido. Todos os males de que sofremos desde que nascemos
até que o nosso coração pare de bater e o nosso sangue coagule nos vasos do
corpo, derivam afinal de um mal inicial, um mal maior, o mais determinante e
mais aleatório de todos – já que nenhum de nós teve a sua vontade implicada no
acto pelo qual foi criado, ou seja, o de termos nascido, esse mal inicial e
supremo do qual derivam todos os mais como cortejo de acidentes e acasos das
nossas vidas pequenas e vãs: o mal de termos nascido.
Lendo um texto taoísta
Num livro francês sobre o
Taoísmo, Comprendre de Tao, de
Isabelle Robinet, encontro estas passagens, que traduzo:
“Olhamos e não vemos
nada, a isto se chama o Invisível.
Ouvimos e nada se ouve, é
o que se chama o Inaudível.
Apalpamos e não tocamos
em nada, que é o que se chama Imperceptível.
Estas três coisas
inescrutáveis fundem-se na Unidade.
O seu topo não é
luminoso, o seu baixo não é tenebroso.
Desfiando-se sem fim, sem
nome, regressado à Sem-Coisa,
Isso chama-se a Forma do
Sem-Forma,
A Imagem do Sem-Coisa.
Isto chama-se o
Indistinto, o elusivo.
Indo ao seu encontro, não
lhe vemos a sua face.
Caminhando atrás dele,
não se vê o que fica no fim dele.”
O leite e o sangue ou como fui expulso do jardim do Éden
“The
art of losing isn’t hard to master;
So many things seem filled with the intent
to be lost that their loss in no disaster.
(...)
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
Some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.”
Elizabeth Bishop, “One art”.
Foi nesta data de hoje
que nasci, há 75 anos, em Moçambique, terra com a qual quase nada tenho a ver,
a não ser como memória longínqua de infância passada ali e na África do Sul. Na
antiga colónia portuguesa no Índico vivi poucos anos, já que os meus pais, pouco
tempo volvido depois do meu nascimento, foram para Joanesburgo, em 1942, onde
residi desde os três aos cinco anos, aprendendo a ler em inglês, fazendo os
estudos primários num colégio marista na Koch Street, cidade que recordo ainda
com uma nitidez fotográfica: o prédio onde vivíamos, o casal Cohen que era
nosso vizinho, o nosso bairro, o parque perto dele, a cara de um colega e até a
voz da minha professora inglesa, embora se tenha perdido o seu nome.
Esse jardim público perto
de casa era o meu paraíso e nele havia uma estátua do Peter Pan que eu estimava
com especial carinho, embora só muitos anos mais tarde viesse a conhecer as
suas aventuras na Terra do Nunca, estátua que uma vez apareceu decapitada, o
que deve ter sido a minha primeira impressão de absurdo e de violência na minha
vida. Foi também nesse jardim que tive a oportunidade de presenciar a primeira
cena que me chocou com horror e terror: uma mulher gorda, completamente ébria,
partiu numa garrafa de leite na cabeça do marido, e este ficou muito hirto e de
olhos abertos, com o líquido branco a escorrer pelos cabelos e pela cara,
misturado com o sangue abundante que manava da ferida no crânio. O mais
terrível do ocorrido estava, aliás, na aparente normalidade da cena, sem gritos
nem gestos alucinados, como se a garrafa quebrada, a ferida e a mistura do
leite e do sangue não passassem dum acaso sem significado nem qualquer
sentimento de culpa ou maldade na sua origem. E era esta absurda normalidade
aparente que mais angustiava a criança que eu então era, incapaz de dar um
sentido qualquer aquele gesto delirante. Voltando logo para nossa casa, na
companhia da minha irmã, após a absurda agressão da mulher embriagada, não
consegui que alguém me explicasse como é que no mundo, e sobretudo naquele jardim
aprazível cheio de araucárias, hibiscos, rosas e petúnias, podia ter-se passado
aquele incidente, como é que cenas tais podiam suceder. Biblicamente, eu
acabava de ser expulso do Éden, sem razão nem culpa, apenas porque o mundo era
habitado por gente que se embriagava e agredia outros seres, ou, ainda mais
estranho e incompreensível, decapitava estátuas de crianças, tudo isto sem
razão nem qualquer finalidade.
João Medina
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