Leio um texto de Zhuang
Zhou [1],
mestre taoísta que viveu no séc. IV antes da nossa era;
“Zhuang Zhou sonhou uma
vez que era uma borboleta que esvoaçava livremente, uma borboleta feliz por ser
quem era e fazendo o que lhe apetecia. Ela não sabia que na verdade era Zhuang
Zhou. De repente, este acordou e ali estava ele, um Zhuang Zi indiscutível e
maciço, mas sem saber se era Zhuang Zhou que tinha sonhado ser uma borboleta ou
uma borboleta que sonhara que seria Zhuang Zhou. Entre Zhuang Zhou e uma
borboleta devia haver de facto uma diferença qualquer! E já não sabia se era
Zhuang que se sonhava borboleta ou borboleta que se sonhava Zhuang Zhou! Entre
Zhuang Zhou e um borboleta devia haver decerto alguma diferença!”
Em suma, somos nós que
sonhamos ou somos sonhados? “Eu sonho
que sonho” é igual a “eu penso o que penso”. Deste modo procedia o mestre
taoista a uma espécie de mise en abîme
que seria um desdobramento que é ele mesmo posto em causa: “sonharei que sonho
que sonho?” A distinção entre o imaginário (o imaginado) e o real desfaz-se
nesta parábola taoísta, já que o sonho da borboleta elimina dialecticamente a
distinção entre o imaginário e o real como valores que, afinal, se podem
inverter mutuamente, que se podem transformar um no outro. Dito de outra
maneira, os mundos que tomamos como representações nossas, fabricadas pelo
nosso espírito, não passam de mundos igualmente possíveis, havendo tanta ou
nenhuma realidade neles como nos sonhos que são vividos por nós como realidade.
Tal como os sonhos que sonhamos, a vida acordada de quem desperta é irreal,
construída pelo homem. Somos então sonhadores ou sonhados? Mas o sonho pode
também ser vivido como realidade. Em suma, no sonho somos introduzidos num lugar
onde as coisas são indecisas, no qual o princípio do terceiro excluído – ou sou quem sonha ou sou aquilo que sonho? – é anulado, até porque posso sonhar
que sonho, de modo que não podemos dizer a verdade nem nos enganarmos.
Jorge Luis Borges
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Este sonho de Zhuang Zhou
teve uma longa sucessão de adaptações na literatura ocidental, passando pelo
norte-americano H. P. Lovecrafat (no conto Polaris, 1918), sendo mencionado pelo romancista
francês Raymond Queneau, em
Les Fleurs bleues, “o célebre apólogo chinês” do
mestre taoísta [2], pelo russo Victor Pelevine (nasc. em 1962, O Dedo Mindinho de Buda) e por Jorge Luis
Borges. Num ensaio intitulado “Nova refutação do tempo”, incluído no volume 2
das Obras Completas de Jorge Luis
Borges (Barcelona,1996), o vertiginoso argentino transpõe o sonho da borboleta
do mestre taoísta para a problemática da refutação da noção do tempo,
interessando-se pela parábola do sonho de Zhuang Zhou (que ele grafa como Chuang
Tzu), escrevendo:
“Este, há uns vinte
séculos, sonhou que era uma borboleta e não sabia, ao despertar, se era um
homem que sonhara que era uma borboleta ou uma borboleta que sonhara que era um
homem.” E cita dum modo demasiado sucinto o texto antigo do taoísmo: “Sonhei
que era uma borboleta que andava pelo ar e que nada sabia de Zhuang Zhou”,
desenvolvendo, depois, através de Berkeley e Hume, o problema do homem que vira
num jardim um triângulo amarelo que parecia voar, e que sem dúvida era ele.
Borges sublinha que, nesta estória não devemos considerar propriamente o
momento do despertar, mas o momento em si mesmo do sonho, aquele em que Zhuang sonhava com
uma borboleta que nada sabia do sonhador que a sonhava, sublinhando que para a
filosofia do idealismo, como a de Berkeley, verdadeiramente houve um sonhar,
mas não um sonhador, nem sequer um sonho. E referindo a questão da data desse
sonho, já que na China o sonho de Zhuang Tzu é proverbial, Borges acrescenta,
muito à sua maneira, uma hipótese na qual se sente o invulgar pendor talmudista
do autor do Aleph:
“Imaginemos que por
acaso, não impossível, este sonho repete pontualmente o que o mestre sonhou.
Postulada esta igualdade, cabe perguntar: esses instantes que coincidem não
serão o mesmo? Não basta um só termo repetido para destruir e confundir a
história do mundo, para denunciar que não há uma história?” Adiante, pondo fim
ao seu desconcertante ensaio sobre a refutação do tempo, remata com, alguma
melancolia; “O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que
me destrói, mas eu sou o tigre: é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O
mundo, desgraçadamente, é real; eu, desgraçadamente, sou Borges.”
João Medina
[1] O
nome deste mestre chinês, que terá vivido c. 369-286 a .C., é transcrito de
várias maneiras em português, inglês e francês : como Zhuang Zhou (cf. Ester
Bianchi, Taoísmo - I, Lisboa , 2011, pp. 48 e 72; nesta obra resume-se
o famoso sonho da borboleta: o mestre sonhara um dia que era uma borboleta e, ao acordar de
repente, foi incapaz de compreender se tinha sonhado que era uma borboleta ou
tinha sido ao contrário, sendo a borboleta que sonhara que era Zhuang Zhou),
parábola que pretendia mostrar que entre o sono e a vigília não há diferença: a
isto se chama “transformação dos seres” no livro taoísta Zhuangzi. Em inglês grafa-se
Chuang-tzu: ver Robert S. Ellwood e Gregory D. Allkes, The Encyclopedia of World Religion, Nova Iorque, 1988, pp.76, 208
e 337. Em espanhol, J.L.Borges escreve Chuang Tzu (vide
infra). Isabelle Robinet, no seu livro Comprendre
le Tao (Paris, 2002) ortografa
Zhuang Zhou (a parábola da baorboleta é contada na p.45 e o seu pensamento
explicado nas pp.32-52. Recorde-se que o livro
Zhuangzi (“mestre Zhuang”), uma
das obras mais famosas do pensamento taoísta, foi escrito nos secs.IV-III a.C.,
sendo o núcleo desta obra atribuído a Zhuang Zhou.
[2] No
romance de Raymond Queneau Les Fleurs
bleues (1965), o nome do citado mestre chinês, aqui grafado em francês
(Tchouang-tseu,), surge nas primeiras linhas como aquele que “sonha que é uma
borboleta, mas não é antes a borboleta que sonha que é Tchouang-tseu?” (o que
lembra a longa vida do herói deste livro, o duque d’Auge ou Cidrolin, que viveu
desde a Idade Média até 1964, passando pela Revolução Francesa…).
Há uma pequena gralha em Lovecraft (e não Lovecrafat).
ResponderEliminarMuito obrigado por esta belíssima evocação, que me toca pessoalmente porque Borges e Queneau são autores que me acompanham desde sempre. De facto, este tema é central para ambos e aparece inúmeras vezes nas suas obras (pense-se no discurso de Gabriel junto da torre Eiffel : « Paris n’est qu’un songe, Gabriel n’est qu’un rêve (charmant), Zazie le songe d’un rêve (ou d’un cauchemar) et toute cette histoire le songe d’un songe, le rêve d’un rêve, à peine plus qu’un délire tapé à la machine par un romancier idiot (oh! pardon) »).
Mas toca-me também por uma razão especial. Como diz o post, o paradoxo teve milhares de avatares e encontrou eco em todas as épocas. Na faculdade, lembro-me de ter tido que trabalhar sobre o tema numa cadeira de história da filosofia em que estudávamos Diderot. Tratei-o recorrendo a Borges e, apesar de ter apimentado/disfarçado a coisa com citações de autores do século XVIII, recordo muito bem que a conclusão era completamente construída a partir do seguinte excerto da novela A escrita de Deus tirada do Aleph, que surge como um contraponto aos textos citados no post :
“Um dia ou uma noite – entre os meus dias e as minhas noites, qual é a diferença ? – sonhei que havia um grão de areia no chão do meu cárcere. Voltei a adormecer, indiferente. Sonhei então que acordava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir. Sonhei que os grãos de areia eram três. Desta forma, foram se multiplicando até encher o cárcere e eu morria enterrado de baixo deste hemisfério de areia. Compreendi então que estava a sonhar, com um grande esforço acordei. Mas o acordar foi inútil : sufocava debaixo da areia infindável. Alguém me disse : Não acordaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Este sonho está dentro de outro sonho, e assim até ao infinito, que é o número de grãos de areia. O caminho que terás de desandar é infindável e morrerás antes de ter acordado realmente.
Senti-me perdido. A areia rompia-me a boca, mas gritei : Uma areia sonhada não pode matar-me, nem há sonhos dentro de sonhos. Um relâmpago acordou-me. Na treva superior avistei um círculo de luz. Vi as mãos e a cara do carcereiro, a roldana, a corda, a carne e os cântaros.”
E, para terminar, uma história irresistível contada por Gabriel Garcia Marquez numa entrevista publicada numa revista dos anos 70, que ainda deve andar lá por casa. Um dia, Jorge Luis Borges preparava-se para atravessar a rua, quando alguém lhe pega no braço e diz : “Mas o Senhor é o Borges !”. Resposta conformada : “Por vezes...”.
Bravo!
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