Seria
tentador dizer que o Hotel Ducor é uma metáfora de África. Não é. A ser uma
figura de estilo, o Ducor será uma onomatopeia, gritada em incredulidade e
espanto. Tendo sido construído em 1962, nos tempos coloniais, é obra de Neal Prince, um arquitecto especializado em conceber estes paquetes de grande porte.
No seu estilo luxuoso-impessoal, destinado a uma clientela esmagadoramente
branca, servia Monróvia, a capital da Libéria.
Pertencente
à cadeia Intercontinental, era um dos primeiros hotéis de luxo da Libéria e um
dos poucos hotéis de cinco estrelas que na época existiam em África, com 300
quartos, piscina vasta, vários courts
de ténis, um restaurante de culinária francesa e outras comodidades que a Wikipedia descreve melhor do que eu.
Do exterior, um caixote de betão
colocado no cimo de uma colina, dominando o Atlântico. No interior, toques
modernistas international style. A
escada, não sei porquê, fez-me lembrar a Casa de Vidro de Lina Bo Bardi, de que
um dia, com tempo e vagar, falarei aqui, assim haja paciência para lerem
estas pescadas.
Lina Bo Bardi
|
Hotel Ducor Palace
|
Na piscina, em tempos passados, chegou
a banhar-se Idi Amin, que nadava com uma pistola à cintura – asseveram
testemunhos locais.
O Ducor Palace Hotel fechou as suas
portas em 1989, quando a Libéria vivia mais um ciclo de instabilidade e
violência. Pouco depois de o Ducor encerrar ao público, Charles Taylor liderou
o golpe que levou à queda do presidente Samuel Doe. Começava a Primeira Guerra
Civil da Libéria, que se saldou em 200 mil mortos. Repetimos: 200 mil mortos.
Em Julho de 1990, as forças rebeldes leais a Taylor atacaram Mount Coffee, a
maior unidade energética do país. Mount Coffee foi saqueada, à semelhança do
Hotel Ducor – e Monróvia esteve sem abastecimento de electricidade até 2005.
Turbinas, condutas, tudo o que se podia tirar foi levado para o Gana,
comerciado às escondidas. Enquanto isso, a capital do país não tinha luz
eléctrica.
Mount Coffee
|
O Ducor foi seriamente danificado no
decurso dos combates. Mais tarde, seria saqueado e pilhado, e foi nessa altura
que muita gente, vinda dos bairros de lata de Monróvia, encontrou ali a sua
casa, o seu refúgio. Em 2007, começou a expulsão dos ocupantes e, no ano
seguinte, o governo liberiano assinou um acordo com a Líbia para a remoção do
lixo e dos detritos acumulados por anos de abandono. O projecto de limpeza, várias vezes adiado,
acabaria por não ser concluído. Monróvia rompeu relações diplomáticas com o
governo de Kadhafi. Agora, era a Líbia que entrara em guerra civil. As fontes divergem quanto ao número de mortes na Líbia, mas estas são muitíssimo inferiores às que ocorreram na Libéria.
Ao que sei, o Ducor continua
abandonado. Mas tem visitas. No Ocidente não faltam turistas do absurdo, gente que procura o estranho e o bizarro, seja
em África, seja na Coreia do Norte. Diz-se aqui que, apesar de fechado, por um
punhado de dólares é possível subornar os seguranças e ter acesso ao Ducor, para contemplar a miséria e
a destruição. Noutros casos, usa-se o edifício como palco de
exposição do inconcebível, que podemos apreciar confortavelmente instalados nas
nossas casas. Há filmes, há fotografias, há imagens em movimento, algumas
bastante interessantes, como esta de François Beaurain. Resta saber, todavia,
se tudo isto não constitui uma nova forma de colonialismo, não muito diferente
daquela que marcou o nascimento do Hotel Ducor, com a sua clientela branca
servida por negros obedientes.
Talvez não. Sem os que vão ao Ducor
para o filmar e fotografar jamais saberíamos da sua existência. Julgaríamos que
desaparecera, devorado como os 200 mil mortos da guerra civil.
Numa das
paredes do Ducor, alguém fez um grafito bíblico. Dizem, aliás, que o povo mantém a fé, apesar de todas as razões
para a perder. Ou talvez não. Talvez a fé seja um modo racional de ter
esperança no meio de tanta irracionalidade e maldade.
Numa das
paredes do Hotel Ducor, alguém rabiscou um trecho dos Livro dos Provérbios:
Não digas:
“vingar-me-ei do mal”; espera pelo Senhor e ele te livrará.
Talvez não haja Senhor nenhum, nem nada para livrar a Libéria do
seu mal. Mas, pelo menos, a mensagem dos Provérbios exorta a que não se
responda a esse mal com a vingança. É um bom começo.
Para o Tiago Cortes, que ontem fez 50 anos.
"Tendo sido construído em 1962, nos tempos coloniais,"
ResponderEliminar.....
"Resta saber, todavia, se tudo isto não constitui uma nova forma de colonialismo, não muito diferente daquela que marcou o nascimento do Hotel Ducor,"
Parece-me haver aí alguma confusão.
Caro Miguel Madeira,
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
Não compreendi se pretende discutir o facto de a Libéria ter declarado a independência em 1847. De qualquer modo, até meados dos anos 1980, o país esteve dominado pelos «americo-liberianos», definidos como uma minoria de colonizadores negros e sua descendência:
http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_Liberia
O que pretendo referir no texto é a eventual emergência de uma realidade «neocolonial», ou seja, como digo, «uma nova forma de colonialismo». Mais precisamente, enquanto até meados dos anos 1980 o Hotel Ducor era frequentado esmagadoramente por brancos (como, aliás, se vê na imagem), actualmente há um nova presença de visitantes brancos, que o visitam para ver a degradação em que se encontra.
Ou seja, após um período intermédio em que no hotel viviam negros, vindos dos bairros pobres, actualmente o Ducor é, de novo, um «destino de brancos»; já não os que aí pernoitam mas os que aí no âmbito daquilo que chamo «turismo do absurdo».
Pretendi apenas traçar uma analogia e fazer um paralelo entre o «antes» e o «agora» na existência do Hotel Ducor. Não sei se consegui esclarecer o que pretendi afirmar, espero que sim. Não é sequer uma «declaração política» mas apenas um paralelismo histórico ou, se quiser, «literário» (coloquei aspas pois o texto de «literário» tem pouco...)
Cordialmente,
António Araújo
Texto e imagens estão em perfeita harmonia e proporcionam um belo artigo.Ha que não ter medo das palavras nem percebo o porque de explicar se colonialismo ou neo colonialismo.É sempre uma relação de colonialismo a que afetou esta país e os outros.Como bem diz os escravos livres a primeira (talvez não a primeira)que fizeram ao se estabelecer na sua nova terra foi escravizar os locais.Quem descreve etes e outros episodios de uma forma extraordinaria é um polaco falecido ha um ou dois anos com o nome impronunciavel que costumam ter num livro de cronicas chamado Ebano e que vivamente aconselho.Tem varios sobre as suas passagens por africa inclusive um sobre Angola em 1975.Obrigado
ResponderEliminarFelizmente, os dois livros que refere, de Kapuscinski, estão publicados em Portugal: o «Ébano», pela Campo das Letras, e «Mais Um Dia de Vida. Angola 1975», pela Tinta da China. Infelizmente, dois grandes livros do mesmo autor, um sobre Haile Selassié («O Imperador») e outro sobre Reza Pahlevi («O Xá») não estão, ao que sei, traduzidos em Portugal.
EliminarFalando em autores com nomes impronunciáveis, permita-me o atrevimento de lhe sugerir a leitura de «Breviário do Mediterrâneo», de Predrag Matvejevitch, recentemente reeditado pela Quetzal. O autor tem também um «Epistolário Russo», que não gostei. Este, o «Breviário do Mediterrâneo», é dos melhores e mais belos livros que alguma vez li. Recomendo-lho vivamente.
Cordialmente,
António Araújo
Acrescento: o João Pedro George, sempre atento e amigo, lembrou-me que «O Imperador» está traduzido cá, pela Campo das Letras! E outros livros dele, mas o que importa é a correcção.
EliminarAntónio Araújo
Obrigado pela sugestão do livro.
EliminarSim o Kapuscinsky é viciante .Eu li esses e outros como o interessante A Guerra do Futebol que estão editados em Espanha.O primeiro aliás fo iAndanças com Herodoto creio e o último uma conferencias em Viena.Houve uma polemica em relação a uma eventual falsificação de entrevista mas como diria um conhecido farsante:Ninguem é perfeito...
Infelizmente há uma cultura do absurdo e não apenas um turismo. E julgo mesmo que esse absurdo de presenciar sinais de sofrimento ou o próprio em directo e a cores é hoje bastante estimulado. O prazer mórbido do sofrimento do outro é demasiado estúpido. Mas não deixa de ser uma vertente do carácter humano. Deploravelmente.
ResponderEliminarReceando estar a transformar esta caixa de comentários num petulante roteiro bibliográfico, creio que sobre esta matéria o livro de Susan Sontag, «Olhando o Sofrimento dos Outros», é inultrapassável. E há tradução portuguesa!
EliminarDo que não existe tradução portuguesa é doutro livro que conheci recentemente. Saiu uma edição em 1983, cfreio, e agora uma reedição mais completa, em 2009. Chama-se «Dying we live», organizado por Helmut Gollwitzer. É uma colectânea das últimas mensagens (e.g. cartas) deixadas pelos condenados à morte por oposição ao nazismo. Poderá dizer que a sua leitura também equivale a um prazer mórbido de olhar o sofrimento aleio. Em todo o caso, é um livro extraordinário.
Tenho um "semelhante" sobre cartas de presos republicanos galegos .Nunca o consegui passar da primeira.É muito dificil.Terei de o oferecer.
Eliminar