sexta-feira, 6 de março de 2015

Subsídios para a história do futebol em Braga na década de 1950.




 
 
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdão de 20 de Março de 1957
Processo nº 29.584 (*)
 
 
 Acordam na Secção Criminal:
 
No segundo Juízo da comarca de Braga foram acusados pelo Ministério Público e pelo assistente Joaquim Reis Santos os réus:
  1. Júlio Fernando Teixeira Fernandes e
  2. António Fernandes, ambos identificados nos autos por incursos na sanção do art. 360º, nº 4º, do Código Penal, visto se mostrar que, no 1 de Novembro de 1953, nas dependências do Estádio Nacional de Braga, após um desafio de futebol, agrediram voluntária e corporalmente o respectivo árbitro e assistente Reis Santos, causando-lhe ferimentos e lesões que determinaram 75 dias de doença com impossibilidade de trabalhar.
Procedendo-se ao julgamento e tendo-se como provada a acusação, por sentença de 5 de Março de 1956, foram os réus condenados em 90 dias de prisão e 30 dias de multa a 15$00 por dia quanto ao réu Júlio Fernando e a 10$00 quanto ao António, sendo as penas suspensas por dois anos nos termos do artº 88º do mesmo Código, sob condição de o réu Júlio pagar ao ofendido a indemnização de 6.000$00, no prazo de três meses.
Da sentença recorreu o digníssimo agente do Ministério Público para a Relação do Porto que, por seu acórdão de fls. 340, a alterou quanto à medida da pena pois, entendendo que o valor das atenuantes não era de molde a atingir a redução e a suspensão operadas, condenou o réu Júlio em 20 meses de prisão e 13 meses de multa e o réu António em 21 meses de prisão e 14 meses de multa, para ambos à razão de 10$00 por dia, ficando ambos solidariamente condenados no pagamento da indemnização de 13.000$00 ao assistente.
Deste acórdão sobe agora o presente recurso, interposto por ambos os réus tendo ficado sem efeito o pedido o pelo réu António por falta de pagamento do preparo devido, nos termos do artº 154º do Código das Custas.
Por isso só o réu Júlio apresentou a sua minuta de fls. 371, com as conclusões de que:
  1. O acórdão recorrido não ponderou devidamente as circunstâncias do ambiente e da paixão doentia pelo futebol, contrariando a jurisprudência estabelecida no acórdão do Supremo, de 22 de Março de 1950, no processo 27.466;
  2. O estado psíquico do réu esbate e reduz o valor de algumas das agravantes;
  3. A pouca intensidade do dolo e a motivação do crime diminuem a gravidade deste e isto, a par de o réu ser delinquente primário e elemento social útil, aconselha a alteração da pena do acórdão e restauração da constante da sentença.
Contraminutou o Ministério Público a fls. 375 em sustentação das conclusões do acórdão e, neste tribunal, entende o ilustre Ajudante do Procurador-Geral que o acórdão deve ser confirmado por fazer justa apreciação dos factos e correcta aplicação de lei.
 
Tudo visto, cumpre decidir, conhecendo do recurso em relação aos dois réus nos termos do art. 663º do Código de Processo Penal, atenta a conexão das suas condutas delituosas:
Em matéria de facto que este Tribunal tem de aceitar e acatar, tiveram as instâncias, concordantemente, como provado o seguinte:
  1. Que os réus no dia e local referidos, após o desafio e quando já toda a assistência composta de milhares de pessoas e os próprios empregados do Estádio, haviam retirado, se mantiveram ainda ali cerca de um hora, não na parte reservada ao público, mas numa dependência contígua ao balneário dos jogadores e dele separada por uma parede, ali se conservando em conversa um com o outro e em voz baixa;
  2. Que, então, saíram de um outro balneário o árbitro ofendido com os dois fiscais de linha, Raul Nunes e Vítor Correia que se dirigiram para perto dos réus e aparecendo ali também o empregado João da Costa, abrindo-se entre todos uma conversa sobre a forma de sair daquele recinto visto o portão que dá saída para o Parque ter sido fechado, ignorando-se por quem;
  3. Que esse empregado disse ao ofendido que não tinha a chave do portão mas que lhe podia dar saída para o Campo de Jogos que tinham passagem aberta para o Parque;
f) Que, levando-o consigo, bem como os dois fiscais de linha, para o ginásio que fica próximo e seguindo com eles os dois réus encostou uma escada de mão que ali estava contra uma parede de cerca de 3 metros de altura e convidou em seguida o ofendido para subir;
g) Que o réu António, em vez de deixar subir o ofendido, insistiu e conseguiu subir primeiramente e uma vez no alto e já da escada disse ao ofendido que subisse e quando este se encontrava nos penúltimos degraus da escada, deu nesta, voluntariamente , um empurrão, deslocando-a e fazendo assim com que o ofendido, desequilibrando-se, viesse cair desamparado e bruscamente sobre o pavimento de cimento do ginásio;
h) Que o réu Júlio, mostrando-se indignado com a atitude agressiva do réu António e, a pretexto de o ir agarrar, logo subiu a mesma escada e, quando já no alto, convidou o ofendido a subir e quando este já ia a meio da escada, deu-lhe por sua vez, com um guarda-chuva na cabeça, empurrando em seguida a escada e fugindo depois;
  1. Que desta agressão com o guarda-chuva e da queda provocada pelo réu António, em que houve unidade de intenção e em que cada um dos réus praticou actos tendentes à produção do crime, resultou para aquele ofendido, Reis Santos, um ferimento na cabeça e a fractura das apófises transversais da primeira vértebra lombar o que, motivou doença com impossibilidade de trabalhar por espaço de 75 dias.
    Esta matéria de facto, estabelecida pelas instâncias , configura e integra o crime de ofensas corporais voluntárias previsto e punível pelo artº 360º, nº 4º, do Código Penal, mostrando-se os réus incursos, como co-autores, na respectiva sanção cuja medida se discute agora em face das circunstâncias ambienciais envolventes e em face das agravantes e atenuantes concorrentes.
    Quanto a agravantes têm as instâncias como provado que os réus combinaram e pactuaram a agressão que foi levada a efeito por duas pessoas, com surpresa, traição e       aleivosia, atenta a confiança que o assistente neles depositou.
    Ainda, quanto ao réu António, consideram provada e agravante de ser empregado do Estádio, cabendo-lhe a obrigação de não praticar e até de obstar à agressão.
    No sector das atenuantes, prova-se a favor dos réus a confissão e, anda quanto ao réu Júlio, o seu bom comportamento anterior, sendo aquele um doente pulmonar de condição grave a ponto de o próprio ofendido pedir para ele a possível benevolência como diz a sentença.
    Há uma circunstância discutida no processo e com evidente projecção na apreciação da conduta dos réus.
    É a do súbito arrebatamento causado pela defeituosa arbitragem do ofendido que se teria mostrado acentuadamente parcial em favor do grupo de Lisboa e em prejuízo do grupo local.
    Diz a sentença que o ambiente de desgosto, excitação e protesto pelo trabalho parcial do árbitro motivou um estado de indignação e revolta de grande parte da multidão a que pertenciam os réus que agiram sob a influência desse ambiente, configurando-se, assim, a atenuante do súbito arrebatamento despertado por justa causa, referida no nº 14º do art. 39º do Código Penal.
    Diz, porém, a Relação, apreciando o mesmo facto, que não pode aceitar-se tal atenuante.
    E tem razão porque não se verificam os fundamentos de uma justa indignação popular.
    O clubismo e a paixão partidária, levadas ao excesso, assentam arraiais nos campos de futebol, num antagonismo desvairado e relutante.
    E quando estala o conflito é difícil descortinar de que lado está a razão, porquanto a justa causa para a indignação de uns, traduz uma injustiça para outros tantos.
    E basta a divergência de critérios e de razões de excitação para prejudicar o conceito de justa causa que há-de assentar na vibração uníssona de uma consciência colectiva de boa formação moral e que  se manifeste no sentido de atingir, sem divergências e sem imagens  deformadas, um elevado fim de interesse social e geral.
    Ora, vê-se e sente-se que o conflito que explodiu no campo de jogos, se repercutiu cá fora e não só em Braga como em outras localidades, fomentando discussões e polémicas jornalísticas, tudo a denunciar divergências de opiniões e critérios opostos sobre a actuação do árbitro ofendido.
    Perante a paixão desconcertante, é de atender à influência do clima ambiencial da competição mas não é de colocar a hipótese de súbito arrebatamento provocado por justa causa.
    E arredada esta atenuante, sobressaem mais vivas e mais intensas aquelas agravantes da pactuação, comparticipação de duas pessoas e, especialmente, a da traição e aleivosia, imprimindo carácter de indignidade à actuação dos réus e repetindo, terminantemente, a possibilidade de suspensão da pena, medida que antes de tudo exige a verificação de bons sentimentos morais que, no caso ficam completamente prejudicados.
    E até aqui, perante as agravantes e as atenuantes que ficam concorrendo, é manifesto o predomínio daquelas que, se mais nada houvesse que ponderar, obrigaria, de direito, a aplicar a pena do art. 360º, nº 4º, do Código Penal para cima do seu mínimo legal.
    Mas há uma realidade viva e humana, chocante mas iniludível que importa focar e ponderar.
    É a do ambiente doentio e psicologicamente deformado em que estas manifestações se produzem, tão ajustadamente descrito e retratado no acórdão deste Tribunal, de 22 de Março de 1950, proferido no processo nº 27.466.
    Ali se escreveu: «verifica-se (...) que o delito se deu em circunstâncias excepcionais, pois é bem notória a paixão doentia pelo jogo do pontapé na bola e ao que o entusiasmo e a paixão bairrista conduzem os adeptos de qualquer grupo, nivelando os manifestantes que perdem a sua personalidade,  por mais educados e pacatos que sejam, para formarem um todo psicológico que se abastarda sem rumo e sem noção das suas responsabilidades e dos seus actos-processos do futebol». Não se adaptam ao caso dos autos, porém, as conclusões do referenciado acórdão quanto à suspensão das penas.
    Diversos são os graus de culpabilidade e diversas as circunstâncias em que  se cometeu o crime que não passou da prolação de expressões violentas e subversivas de ordem pública.
    No entanto, é o quadro descritivo aplicável ao caso, no sentido de mostrar que tal ambiente de excitação e de emoção forte é susceptível de diminuir e prejudicar o autodomínio individual dos clubistas, transformando pessoas correctas, educadas e até palacianas em verdadeiros energúmenos, bradando incontidamente a sua paixão.
    Foi o caso dos autos e o próprio acórdão e constata a fls. 364, reconhecendo a realidade mas não a valorizando devidamente na sua projecção.
    Realmente, terminado embora o desafio, ainda a multidão e os réus que a ela pertenciam estavam sob o domínio daquela excitação e daquela paixão destemperada que, sem os privar do uso da razão, todavia lhes prejudicava um perfeito raciocínio, conduzindo-as a atitudes desconcertantes e agressivas, reflexo, por contágio, de atitudes censuráveis de tantos e tantos que esqueceram o respeito que deviam a si próprios, à sociedade e até às nobres da nobre e leal cidade onde tão lamentáveis factos se passaram.
    De todo este conjunto de circunstâncias resultou pelo menos uma situação de imputabilidade diminuída que,  proveniente de uma excitação desaforada mas tolerada, se projectou na prática da agressão ao ofendido.
    Tal situação é de incluir no nº 23º do artº 39 do Código Penal como atenuante valiosa e capaz de contribuir, a par de outras verificadas, para que possa operar a doutrina do assento de 22 de Janeiro de 1935 que permite baixar o limite mínimo da pena do art. 360º, do Código Penal quando, par tanto, concorram  atenuantes de valor.
    Por fim e quanto à indemnização, não a discute directamente o recorrente.
    Mas sugerindo a manutenção da sentença que a fixou em 6.000$00, implicitamente discorda do acórdão que a fixou em 13.000$00.
    Ainda neste campo, é de entender que melhor critério se seguiu no acórdão recorrido que atendendo às despesas feitas e documentadas e ainda às consequências de agressão, a fixou em  13.000$00, quantitativo de manter, tanto mais que não são de arredar danos morais resultantes do desprestígio e da diminuição de consideração de entidades que têm de impor a sua força moral aos jogadores e ao  público.
    Nestes termos e conclusivamente decidindo, se concede em parte provimento ao recurso, alterando-se em parte a decisão recorrida, quanto a ambos os réus por forma que ficam os dois condenados em um ano de prisão e em 240 dias de multa a 10$00 quanto ao réu António e a 15$00 quanto ao réu Júlio e também ambos solidariamente condenados no pagamento da indemnização de 13.000$00 ao ofendido e assistente, com o mínimo da procuradoria e com 600$00 a cargo do réu Júlio, com isenção para o outro réu por força do § 1º  do art. 663º do Código de Processo Penal.
    Lisboa, 20 de Março de 1957.
    Horta e Vale (Relator) – Sousa Carvalho – Amaral Cabral.
 
 
 





* In Boletim do Ministério da Justiça, nº 65, Abril de 1957, pp. 358-363.

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