Seis semanas de reportagem numa Angola proibida
Regresso a um palimpsesto da memória
1.
O corredor do primeiro andar do
palacete na Rua de São Domingos à Lapa dava para as salas da
redacção, da direcção e dos técnicos dos despachos da Agência Notícias de
Portugal. Foi no corredor que o director adjunto de informação, Wilton Fonseca,
me perguntou se eu estava disposto a viajar para as zonas controladas pela
UNITA. Na altura, não estranhei que a conversa decorresse no corredor. Nem
imaginava que, depois de aceitar a proposta, estaria seis semanas em Angola. Na
altura, ninguém mo disse — nem eu perguntei. Só no meu regresso percebi que
Fonseca agira sem o conhecimento do director de Informação, Ápio Sottomayor. Ao
voltar à agência um mês e meio depois, fui recebido, não como um camarada que
passara por uma situação difícil, mas como um miserável envolvido numa qualquer
conspiração interna. Sottomayor disse-mo e, sendo uma pessoa de extrema
amabilidade, a sua relação comigo ficou marcada pelo episódio enquanto esteve
na agência. Alguns camaradas de trabalho também me olharam de lado, lembro-me
de um que virou a cara, e, alguns desprezaram-me porque eu tinha feito um
trabalho jornalístico do “lado errado” da guerra angolana. Esta recepção crítica
e gelada deixou-me de rastos. Não só eu estava a leste da ignorância do
director de Informação sobre a viagem como achava que fazer jornalismo não é conhecer
apenas o “lado certo” do que quer que seja, neste caso, o governo de Luanda. Em
1983, a UNITA dominava e actuava em grande parte da metade interior da antiga
colónia e não se vislumbrava uma resolução do problema angolano sem tomá-la em
conta.
Pouco tempo depois do desafio do
director adjunto da NP, parti em Novembro num voo comercial para Kinshasa, via
Paris. Antes, conheci o delegado da UNITA em Lisboa, Wilson dos Santos, um
angolano de excelente porte, afável, com um discurso consistente.
Seria anos depois assassinado barbaramente num auto-de-fé tribal ordenado por
Savimbi. Eu era uma escolha pensada para visitar a UNITA, porque, ainda antes
de ser jornalista, tinha escrito um artigo de teor académico sobre o conflito
angolano, com o título “Angola: Um Beco com Saída?”, publicado no princípio de
1983, e diversos artigos de imprensa sobre o conflito, nomeadamente na minha
coluna de opinião no Diário de Notícias. Wilson dos Santos, e também
Jonas Savimbi, como vim a saber depois, conheciam aquele trabalho.
Há 30 anos, o jornalismo
português não estava preparado como hoje para reportagens de guerra. A leviandade
com que parti para esta aventura jornalística revela a minha ingenuidade e
irresponsabilidade, mas também as de quem dirigia a agência NP. Levei um saco
com roupa de Verão e meia dúzia de coisas mais. A máquina fotográfica que levei
era a minha, uma boa Voigtländer dos anos 70, que comprei com 14 anos, mas que
não aguentou a trepidação dos carros tipo Unimog nas picadas. Semanas depois, a
UNITA disponibilizou-me uma máquina russa apropriada numa acção militar.
O aeroporto de Kinshasa foi o meu primeiro
contacto com África. Era de noite e fazia um calor húmido e
intenso que eu desconhecia. Andámos por zonas estranhas do aeroporto, porque
esta viagem não seguia trâmites normais. Foi ali que encontrei os dois outros
europeus que seriam meus companheiros nas seis semanas seguintes: um repórter
de The Scotsman, que conhecia bem o problema angolano, e um operador de
câmara, também escocês. O seu objectivo era fazer um documentário de televisão
e artigos de imprensa. Poucos anos depois, o repórter da imprensa escrita
assinou um texto que desagradou a Savimbi e a UNITA denunciou que ele tinha
recebido quaisquer quantias para qualquer coisa, não me recordo bem. Nunca
apurei a verdade, pois já não tinha contacto com o jornalista nem com nada que
se relacionasse com Angola.
O transbordo em Kinshasa era uma
informação
proibida. Fez parte do acordo que não poderíamos divulgar o acesso à Angola da
UNITA através do então Zaire. Durante anos perguntaram-se se tínhamos entrado
pela África do Sul, como se fosse a única possibilidade, dado o apoio de Pretória
à UNITA.
Do avião de grande
porte, passámos para um pequeno jacto com uns dez lugares, pilotado por um
português. O voo nocturno amedrontou-me. Lá do alto, via relâmpagos constantes,
e julgava que era guerra. Não era. Aterrámos já de manhã numa pista de terra
batida, a alguns quilómetros da “capital” da UNITA, a Jamba. Antes de mim,
tinha lá estado um único jornalista português, do semanário Tempo, por
uns dias. Eu fui o primeiro que ali permaneceu durante semanas e assistiu a um
acto de guerra. Depois, começou o que, num artigo no diário A Tarde, em
1986, chamei as “Jamba Tours”:
jornalistas e políticos em grupos foram visitar as “terras libertadas” da
UNITA. Quando regressei, em Dezembro, cruzei-me na mesma pista aérea com José Manuel
Barata-Feio, da RTP, acabado de chegar.
O primeiro contacto com Angola foi ali.
No percurso de jipe para a Jamba, senti a paisagem do Cuando Cubango, quase
junto à
Namíbia, com entusiasmo inebriante: a savana vizinha do deserto, os insectos
gigantes, o Sol a pique. Na Jamba, uma primeira acção de propaganda: danças,
canções. Muitas acções de agitprop se seguiriam, com mais música e dança,
discursos, poesia, espíritos afastados
por soldados.
Espírito com máscara
numa acção de
agitprop.
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Soldado
afasta espírito com
um ramo.
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Grupo de canto e dança em sessão de
agitprop.
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Na chegada à
Jamba, “capital provisória” das “Terras Livres de Angola”, na província de
Cuando Cubango, um primeiro encontro, breve, com Jonas Savimbi. Era um soba.
Estatura normal, esperto e experiente, político que se mostra e que se esconde,
barriga proeminente, com ar de chefe, um carisma africano cultivado por ele e
pelos seguidores.
Nas semanas seguintes, fizemos a ronda
da Jamba, como se
estivéssemos
na Revolução Cultural de Mao no meio de nada. Não havia edifícios em tijolo e
cimento, todos eram em materiais efémeros. Levaram-nos à escola onde um
professor dos tempos coloniais ensinava a gramática desse tempo — e latim.
“Salve,
Dux Savimbi!”. Aula
de latim na Jamba.
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Passámos num “cruzamento” com um polícia sinaleiro.
Visitámos uma quinta de produção hortícola, o Gabinete de Operações, o “Hospital
Central”, a unidade de fabrico de fardas militares. Falámos com um padre, que
me entregou um texto seu intitulado “A Igreja de Angola na Hora do Holocausto”.
Vimos milícias de tropa regular da UNITA em parada e exibindo-se numa
trincheira como as da Primeira Guerra Mundial.
Soldado numa trincheira para treino.
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Soldado camuflado numa parada.
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Pedi para nos levarem às minas de diamantes que,
supostamente, a UNITA explorava, mas não me satisfizeram o pedido. Estivemos
com cerca de 20 prisioneiros checos, um encontro patético na savana entre
europeus dos dois lados da Cortina de Ferro. Entrevistei-os, bem como ao único
prisioneiro cubano em poder da UNITA. Assistimos ao encontro tipo “photo
opportunity” entre Savimbi e duas missionárias canadianas. Encontrámo-nos com
cinco prisioneiros, cinco pessoas cujo crime era não serem bem angolanos:
quatro portugueses, ou luso-angolanos, que viviam nas terras de ninguém por
escolha própria, e um cabo-verdiano. Tenho uma memória incerta sobre o episódio,
mas registo que Savimbi desprezava aqueles homens e não se fez fotografar com
eles. Os portugueses que ali se deixaram ficar depois da independência foram os
primeiros exemplares que conheci do que me diziam ser a “cafrealização”: viviam
como os negros, um deles dizia-se casado em Portugal, vivendo com uma negra, e,
como Oliveira da Figueira, era pequeno comerciante, cantineiro. Tentavam
desenfiar-se à sua maneira, entre o colonialismo e o pós-colonialismo, a mata e
a guerra.
Prisioneiros, um cabo-verdiano e quatro
portugueses.
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Houve um grande comício
na Jamba, preparado para os jornalistas verem. A escola de latim e de gramática
de pouco servia: os discursos foram falados em língua africana e traduzidos
para os visitantes. Savimbi era um bom orador de massas, mas não extraordinário.
Ou teriam as massas que o ouviam a sabedoria de aderir apenas o suficiente para
continuarem vivas?
(Continua)
Eduardo Cintra Torres
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