segunda-feira, 23 de março de 2015

Seis semanas de reportagem numa Angola proibida - 1


 
Seis semanas de reportagem numa Angola proibida
Regresso a um palimpsesto da memória
 
 
1.
 

         O corredor do primeiro andar do palacete na Rua de São Domingos à Lapa dava para as salas da redacção, da direcção e dos técnicos dos despachos da Agência Notícias de Portugal. Foi no corredor que o director adjunto de informação, Wilton Fonseca, me perguntou se eu estava disposto a viajar para as zonas controladas pela UNITA. Na altura, não estranhei que a conversa decorresse no corredor. Nem imaginava que, depois de aceitar a proposta, estaria seis semanas em Angola. Na altura, ninguém mo disse — nem eu perguntei. Só no meu regresso percebi que Fonseca agira sem o conhecimento do director de Informação, Ápio Sottomayor. Ao voltar à agência um mês e meio depois, fui recebido, não como um camarada que passara por uma situação difícil, mas como um miserável envolvido numa qualquer conspiração interna. Sottomayor disse-mo e, sendo uma pessoa de extrema amabilidade, a sua relação comigo ficou marcada pelo episódio enquanto esteve na agência. Alguns camaradas de trabalho também me olharam de lado, lembro-me de um que virou a cara, e, alguns desprezaram-me porque eu tinha feito um trabalho jornalístico do “lado errado” da guerra angolana. Esta recepção crítica e gelada deixou-me de rastos. Não só eu estava a leste da ignorância do director de Informação sobre a viagem como achava que fazer jornalismo não é conhecer apenas o “lado certo” do que quer que seja, neste caso, o governo de Luanda. Em 1983, a UNITA dominava e actuava em grande parte da metade interior da antiga colónia e não se vislumbrava uma resolução do problema angolano sem tomá-la em conta.
         Pouco tempo depois do desafio do director adjunto da NP, parti em Novembro num voo comercial para Kinshasa, via Paris. Antes, conheci o delegado da UNITA em Lisboa, Wilson dos Santos, um angolano de excelente porte, afável, com um discurso consistente. Seria anos depois assassinado barbaramente num auto-de-fé tribal ordenado por Savimbi. Eu era uma escolha pensada para visitar a UNITA, porque, ainda antes de ser jornalista, tinha escrito um artigo de teor académico sobre o conflito angolano, com o título “Angola: Um Beco com Saída?”, publicado no princípio de 1983, e diversos artigos de imprensa sobre o conflito, nomeadamente na minha coluna de opinião no Diário de Notícias. Wilson dos Santos, e também Jonas Savimbi, como vim a saber depois, conheciam aquele trabalho.
         Há 30 anos, o jornalismo português não estava preparado como hoje para reportagens de guerra. A leviandade com que parti para esta aventura jornalística revela a minha ingenuidade e irresponsabilidade, mas também as de quem dirigia a agência NP. Levei um saco com roupa de Verão e meia dúzia de coisas mais. A máquina fotográfica que levei era a minha, uma boa Voigtländer dos anos 70, que comprei com 14 anos, mas que não aguentou a trepidação dos carros tipo Unimog nas picadas. Semanas depois, a UNITA disponibilizou-me uma máquina russa apropriada numa acção militar.
         O aeroporto de Kinshasa foi o meu primeiro contacto com África. Era de noite e fazia um calor húmido e intenso que eu desconhecia. Andámos por zonas estranhas do aeroporto, porque esta viagem não seguia trâmites normais. Foi ali que encontrei os dois outros europeus que seriam meus companheiros nas seis semanas seguintes: um repórter de The Scotsman, que conhecia bem o problema angolano, e um operador de câmara, também escocês. O seu objectivo era fazer um documentário de televisão e artigos de imprensa. Poucos anos depois, o repórter da imprensa escrita assinou um texto que desagradou a Savimbi e a UNITA denunciou que ele tinha recebido quaisquer quantias para qualquer coisa, não me recordo bem. Nunca apurei a verdade, pois já não tinha contacto com o jornalista nem com nada que se relacionasse com Angola.
         O transbordo em Kinshasa era uma informação proibida. Fez parte do acordo que não poderíamos divulgar o acesso à Angola da UNITA através do então Zaire. Durante anos perguntaram-se se tínhamos entrado pela África do Sul, como se fosse a única possibilidade, dado o apoio de Pretória à UNITA.
         Do avião de grande porte, passámos para um pequeno jacto com uns dez lugares, pilotado por um português. O voo nocturno amedrontou-me. Lá do alto, via relâmpagos constantes, e julgava que era guerra. Não era. Aterrámos já de manhã numa pista de terra batida, a alguns quilómetros da “capital” da UNITA, a Jamba. Antes de mim, tinha lá estado um único jornalista português, do semanário Tempo, por uns dias. Eu fui o primeiro que ali permaneceu durante semanas e assistiu a um acto de guerra. Depois, começou o que, num artigo no diário A Tarde, em 1986, chamei as “Jamba Tours”: jornalistas e políticos em grupos foram visitar as “terras libertadas” da UNITA. Quando regressei, em Dezembro, cruzei-me na mesma pista aérea com José Manuel Barata-Feio, da RTP, acabado de chegar.
         O primeiro contacto com Angola foi ali. No percurso de jipe para a Jamba, senti a paisagem do Cuando Cubango, quase junto à Namíbia, com entusiasmo inebriante: a savana vizinha do deserto, os insectos gigantes, o Sol a pique. Na Jamba, uma primeira acção de propaganda: danças, canções. Muitas acções de agitprop se seguiriam, com mais música e dança, discursos, poesia,  espíritos afastados por soldados.
 
 
Espírito com máscara numa acção de agitprop.
 
 
 

                                                                                                   Soldado afasta espírito com um ramo.
 
 
 
Grupo de canto e dança em sessão de agitprop.
 
 
         Na chegada à Jamba, “capital provisória” das “Terras Livres de Angola”, na província de Cuando Cubango, um primeiro encontro, breve, com Jonas Savimbi. Era um soba. Estatura normal, esperto e experiente, político que se mostra e que se esconde, barriga proeminente, com ar de chefe, um carisma africano cultivado por ele e pelos seguidores.
         Nas semanas seguintes, fizemos a ronda da Jamba, como se estivéssemos na Revolução Cultural de Mao no meio de nada. Não havia edifícios em tijolo e cimento, todos eram em materiais efémeros. Levaram-nos à escola onde um professor dos tempos coloniais ensinava a gramática desse tempo — e latim.
 
 
Salve, Dux Savimbi!. Aula de latim na Jamba.
 
 
Passámos num “cruzamento” com um polícia sinaleiro. Visitámos uma quinta de produção hortícola, o Gabinete de Operações, o “Hospital Central”, a unidade de fabrico de fardas militares. Falámos com um padre, que me entregou um texto seu intitulado “A Igreja de Angola na Hora do Holocausto”. Vimos milícias de tropa regular da UNITA em parada e exibindo-se numa trincheira como as da Primeira Guerra Mundial.
 
 
 
Soldado numa trincheira para treino.
 
 
 
Soldado camuflado numa parada.
 
 
 
Pedi para nos levarem às minas de diamantes que, supostamente, a UNITA explorava, mas não me satisfizeram o pedido. Estivemos com cerca de 20 prisioneiros checos, um encontro patético na savana entre europeus dos dois lados da Cortina de Ferro. Entrevistei-os, bem como ao único prisioneiro cubano em poder da UNITA. Assistimos ao encontro tipo “photo opportunity” entre Savimbi e duas missionárias canadianas. Encontrámo-nos com cinco prisioneiros, cinco pessoas cujo crime era não serem bem angolanos: quatro portugueses, ou luso-angolanos, que viviam nas terras de ninguém por escolha própria, e um cabo-verdiano. Tenho uma memória incerta sobre o episódio, mas registo que Savimbi desprezava aqueles homens e não se fez fotografar com eles. Os portugueses que ali se deixaram ficar depois da independência foram os primeiros exemplares que conheci do que me diziam ser a “cafrealização”: viviam como os negros, um deles dizia-se casado em Portugal, vivendo com uma negra, e, como Oliveira da Figueira, era pequeno comerciante, cantineiro. Tentavam desenfiar-se à sua maneira, entre o colonialismo e o pós-colonialismo, a mata e a guerra.
 
 
 
Prisioneiros, um cabo-verdiano e quatro portugueses.
 
 
 
         Houve um grande comício na Jamba, preparado para os jornalistas verem. A escola de latim e de gramática de pouco servia: os discursos foram falados em língua africana e traduzidos para os visitantes. Savimbi era um bom orador de massas, mas não extraordinário. Ou teriam as massas que o ouviam a sabedoria de aderir apenas o suficiente para continuarem vivas?
 
 
(Continua)
 
 
Eduardo Cintra Torres
 
 
 
 

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