A Teresa tem muitas saudades de Kiev
e eu tenho muitas saudades da Teresa. Continua a Leste, e irá andar sempre a
Leste daquilo que é supérfluo e nos inferniza os quotidianos. A Teresa procura centrar-se no
essencial das coisas, e passará o resto da vida nessa demanda, ingénua ou demencial. Mas tem razão, a Teresa. Do acessório pouco ficará na memória.
Já
aqui falei de Douwe Draaisma, professor da Universidade de Groningen, autor de
um livro traduzido em português, Porque é que a Vida Acelera à Medida que se Envelhece. Os temas que aborda e o seu apelido
fazem pensar que se trata de um guru de auto-ajuda ou uma versão um pouco mais
elaborada (o que não é difícil) do formidável Gustavo Santos. Nada disso, longe
disso. Bem mais perto do essencial das coisas. Draaisma voltou à carga com um livro
extraordinário, The Nostalgia Factory, Memory, Time and Ageing. Nas primeiras páginas, entra a matar com uma
história encantadora. Uma vez, uma equipa de investigadores universitários procurou saber qual era a memória viva mais
antiga da Holanda. Foram falar, obviamente, com a senhora mais idosa dos Países
Baixos. Hendrikje Schipper nascera em 1890. Nascera prematuramente, o que à
época significava morte certa. Mas não, sobreviveu mais 115 anos. Hendrikje, a anciã
neerlandesa, sobreviveu porque a sua avó a levou recém-nascida para junto da
lareira, onde a amparou ao colo durante semanas. Quando foi entrevistada, em
2005, a memória mais antiga de Hendrikje era dessa avó. Lembrava-se dela quando
tinha três anos de idade, um episódio de criança para sempre guardado nos esconsos
da sua mente. Os académicos que a entrevistaram não tiveram a certeza, como é
evidente, se a recordação íntima de Hendrikje Schipper correspondia a um facto
real ou não passava de algo que foi sendo impresso na sua memória à força de
tanto o lembrar e contar, ano após ano. Que os mais velhos se recordam
sobretudo da infância é algo sabido desde há muito. O que fizeram na véspera
esfuma-se nas brumas do Alzheimer e doutras tormentas. Mas aquilo que é mais antigo,
aquilo que remonta à infância mais precoce, é o que lembram de forma mais
vívida e intensa. Nós, que estamos imersos na espuma quotidiana, na lufa-lufa
da semana que agora terminou, temos de fazer um esforço para gravar na memória este ou aquele
episódio, como ainda hoje me lembrava uma operária da fábrica da nostalgia.
Os
álbuns de fotografias sempre foram um antídoto contra o esquecimento,
breviários íntimos pejados de imagens que, como dizia a publicidade, servem para mais tarde recordar.
Já agora, da vasta bibliografia sobre o tema destaco um livro, Photographic Memory. The Album in the Age of Photography. E, também já agora, uma pequena observação sobre o nosso tempo,
tão contraditório: do mesmo passo que procuramos guardar a memória nos lugares
mais perecíveis e efémeros, como telemóveis e outros artefactos techno, nasceu
a moda, bem ao gosto twee, de
coleccionar álbuns antigos de fotografia. Tenho alguns, mas raramente os mostro
por sentir que não tenho o direito de o fazer, que seria uma devassa
ignóbil, uma intrusão abusiva na intimidade alheia, na biografia dos que já morreram.
Há
quem tenha encontrado uma forma de aumentar ainda mais a carga emocional da
observação de retratos velhos. Recorre-se ao follow-up, mostrando o antes e o depois, o passado e o presente. A
Teresa tem saudades da Ucrânia. A jornalista Daisy Sindelar resolveu a coisa de
forma mais expedita. Recolheu memórias familiares num arquivo a que chamou My Ukraine. Memory and Identity. São, por ora,
quinze histórias, contadas como um pequeno conto, emolduradas por fotografias
de antes e de agora. Cada história melhor do que a outra, sobretudo porque, como diz
a autora, em quase todas há alegria e há esperança, ao contrário da imagem
terrífica que temos de uma terra tão martirizada. Sim, houve risos e festas na
Ucrânia, almoçaradas que duraram horas, música e vinho a copo, mesmo nos piores momentos. Houve momentos-Kodak na cidade e no campo, com
histórias que, se amanhã chover, vale a pena ler.
Que post tão bom. Obrigada.
ResponderEliminarNo Dia da Poesia, os meus parabéns à Teresa
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